Ano 2 nº 01/2021: O Conceito de Imperialismo em Amílcar Cabral - Luciana Dias

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Memória operária ...

 

O CONCEITO DE IMPERIALISMO EM AMÍLCAR CABRAL

 

Luciana Dias

Mestra em História de África pela Universidade de Lisboa1

 

amilcar cabral

Fonte: https://www.geledes.org.br/amilcar-cabral/

 

Amílcar Cabral (1924-1973), secretário-geral do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), descrevia o imperialismo como um estágio muito avançado do desenvolvimento do capitalismo, “resultado da concentração gigantesca do capital financeiro nos países capitalistas através da criação dos monopólios”. Neste estágio, o capital financeiro, “representado pelos monopólios e os bancos”, tenderia a prevalecer sobre o capital de livre concorrência. Das crescentes necessidades de novos mercados e matérias-primas, e da “sede insaciável de mais-valia”, nasce a dominação imperialista do mundo: a criação de monopólios no interior dos países imperialistas é acompanhada da conquista e da monopolização de colônias por estes países (CABRAL, 2013, p. 240).

Segundo Cabral, Portugal – país em relação ao qual o PAIGC reivindicava a independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde – não era imperialista, mas “um país colonialista atrelado ao imperialismo”, que nunca atingira um nível de desenvolvimento que se pudesse classificar de imperialista. Nas suas colônias africanas, Portugal era apenas um intermediário da exploração realizada por capitais dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Bélgica ou da Alemanha Ocidental (CABRAL, 2013, p. 239). Tais colônias só teriam continuado sob o domínio português, “apesar da inveja selvagem dos verdadeiros países imperialistas”, graças à proteção da Inglaterra, país do qual Portugal seria uma semicolônia desde o século XVIII (CABRAL, 2013, p. 240-241).

Os leitores que conhecem Lênin certamente terão notado que a noção de imperialismo de Cabral baseia-se fortemente em Imperialismo, estágio superior do capitalismo (LENIN, 2012). Até mesmo a caracterização de Portugal como dependente da Inglaterra desde os anos 1700, por intermédio da qual teria conseguido preservar as suas possessões africanas, consta da obra de 1916.

Mas reproduzir também é criar; produzir novamente. Este pequeno artigo discute como a teoria leninista do imperialismo ganhou vida nas formulações de Amílcar Cabral.

Desde 1963, o PAIGC empreendia na Guiné uma guerra de libertação contra o colonialismo português. Conforme Cabral, tratava-se de uma luta para “expulsar a dominação imperialista” daquela “terra”. No Seminário de Quadros de 1969, na Guiné-Conacri, Cabral distinguia o imperialismo propriamente dito da dominação imperialista. O primeiro teria lugar nos países do núcleo do sistema capitalista mundial, onde se verificava “a concentração de capitais, monopólio, reino de pequenos grupos de gente, porque têm muito dinheiro e podem comprar, conquistar, fazer aquilo que querem pela força do seu capital, por todos os meios, incluindo a força das armas.” Na periferia do sistema capitalista – em vastas áreas da África, da América Latina e da Ásia – existiria a “dominação imperialista, ou seja, a violação da independência dos povos, a dominação por Estados estrangeiros, uma economia orientada consoante os interesses dos estrangeiros, a exploração da sociedade dos filhos da terra, para orientar os homens no sentido de servirem cada vez mais o estrangeiro” (CABRAL, 2014, p. 312).

errotar a dominação imperialista num país ou numa região não significava liquidar o imperialismo; este poderia continuar a existir no centro do sistema e, assim, retornar mais tarde, “sempre agressivo”, perpetrando “agressão política, militar, cultural e social.” Segundo Cabral, para a liquidação do imperialismo, seria necessária a união de três forças, sendo a primeira delas “o maior inimigo do imperialismo, o Estado socialista. Esta é a importância grande da criação do primeiro Estado socialista no mundo pela grande Revolução de Outubro”. A segunda seria “a força dos trabalhadores, da gente que ganha a vida vendendo a sua força de trabalho, o movimento operário de cada país, que é inimigo do imperialismo, porque quer acabar com o capitalismo.” A terceira força seria representada pelo “movimento de libertação nacional, gente que se levanta na sua terra, para correr com a dominação imperialista, ajudando assim tanto os socialistas como o movimento operário mundial a acabar com o imperialismo lá onde ele existe. Esta é a perspectiva da luta anti-imperialista” (CABRAL, 2014, p. 313).

Desta interligação entre as lutas contra o imperialismo é que se compreende que, ao listar as fontes de auxílio do PAIGC, Cabral declarasse que o Vietnã os apoiava “dando o seu sangue cada dia, sacrificando-se pela defesa da nossa luta comum contra o imperialismo, o que já é uma grande ajuda” (CABRAL, 2014, p. 314). Aos olhos de Cabral, os vietnamitas, ao combaterem com armas nas mãos a dominação imperialista, enfrentando na altura uma guerra contra os Estados Unidos, ajudavam tanto o PAIGC quanto os países que lhes forneciam armas, dinheiro ou outro apoio material.

Mas, se, por um lado, a luta anti-imperialista mundial era “uma e a mesma” (CABRAL, 2013, p. 242), por outro lado cada povo deveria ocupar-se da luta na sua terra: “O capitalismo que existe na França é com os franceses, nos Estados Unidos é com os americanos, não conosco. (…) Não somos contra o capitalismo em Portugal, pois não é problema nosso, é um assunto dos portugueses” (CABRAL, 2014, p. 315).

 

Colonialismo português e imperialismo

 

Enquanto tática discursiva, frisar o atraso de Portugal, que, mesmo tendo colônias, sequer teria atingido o nível de imperialista, era uma forma de desmoralizar o país enquanto potência colonizadora. Portugal não conseguia desenvolver econômica e socialmente nem a si mesmo – com uma taxa oficial de analfabetismo de “46% da população” e uma infraestrutura econômica “subdesenvolvida” –, e menos ainda era capaz de realizar nas colônias. A crítica ao atraso português servia como um reforço à crítica ao colonialismo em geral: se o colonialismo era ruim, o colonialismo português era ainda pior; “o mais atrasado de todos os colonialismos” (CABRAL, 2013 p. 242).

Conforme Cabral, em conferência proferida na Finlândia, a dominação do capital imperialista poderia efetuar-se “sob uma forma de colonialismo, neocolonialismo ou de semicolonialismo” (CABRAL, 2013, p. 241). Devido ao seu fraco desenvolvimento econômico, Portugal seria um “país demasiado atrasado para pretender neocolonizar”, e por isso não realizava “um processo de descolonização” (CABRAL, 2013, p. 242). Em 1971, ano da citada conferência, Portugal estava empreendendo uma guerra colonial há dez anos, primeiro em Angola (1961), depois na Guiné-Bissau (1963) e em Moçambique (1964). Dialeticamente, para Cabral, a perseverança de Portugal não decorria da sua força enquanto potência colonizadora, mas da sua fraqueza. Era por não poder concorrer com as outras potências do mundo, praticando neocolonialismo, que Portugal se agarrava à sua condição de intermediário das grandes potências. Cabral também afirmava que Portugal não realizava a guerra colonial por capacidade própria, mas pela ajuda dos seus poderosos aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Além de expor a fraqueza do lado português, esta argumentação funcionava como uma denúncia dos apoiadores do colonialismo e como um apelo para que cessassem a ajuda a Portugal.

Cabral gostava de frisar que a luta do PAIGC contra o colonialismo português não era uma luta contra o povo português, de quem se considerava um amigo sincero. Dentro do PAIGC, defendia a utilização da língua portuguesa na Guiné e em Cabo Verde, e o estabelecimento de boas relações com Portugal após a independência (CABRAL, 2014, p. 274-277).

Dialogando com o público português em 1966, declara que “o povo português desempenhou um papel determinante no percurso da humanidade”, abrindo “novos mundos ao Mundo”, e que “isso corresponde a uma responsabilidade de um povo”, a qual deveria ser retomada, livrando-se “da dupla vergonha do fascismo e do colonialismo” (CABRAL, 2018, p. 197-198). Cabral ressignifica e inverte o discurso imperial português, disputando o sentido de um período histórico muito caro à subjetividade nacional portuguesa, as Grandes Navegações. Enquanto no passado ter sido grande foi abrir novos caminhos à humanidade, no presente estar à altura daqueles feitos era libertar a si mesmo e ser solidário com a libertação do próximo.

Ainda no discurso de 1966, Cabral expressa o seu apoio às lutas dos trabalhadores portugueses, e mostra-se solidário à – digamos assim – questão nacional portuguesa, sugerindo que o povo português deveria tomar nas suas mãos as riquezas do país, algumas delas “inexploradas”, outras “nas mãos dos estrangeiros.” Mobilizando o conceito de luta comum e interligada, dentro da sua perspectiva anti-imperialista, afirma que a luta dos povos das colônias portuguesas e a luta do povo português contribuíam uma com a outra (CABRAL, 2018, p. 198).

A concepção de imperialismo é basilar em Amílcar Cabral. Estudá-la permite-nos interpretar a dimensão estratégica que ele atribuía à luta que liderou, bem como analisar alguns dos recursos táticos que nela empregou.

 

REFERÊNCIAS

 

CABRAL, Amílcar. “A estrada larga da esperança”. In: ______. A luta criou raízes – intervenções, entrevistas, reflexões, artigos 1964-1973. Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2018, pp. 193-204. Mensagem ao povo português na emissora A Voz da Liberdade, Argel, 2 de julho de 1966.

CABRAL, Amílcar. “Desenvolver o trabalho no plano exterior”. In: ______. Pensar para melhor agir – intervenções no seminário de quadros, 1969. Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2014 [1969], pp. 270-320.

CABRAL, Amílcar. “Portugal é imperialista?”. In: ______. Unidade e luta. Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2013 [1971], pp. 239-242 (Obras escolhidas, vol. 2: A prática revolucionária).

LENIN, Vladimir Ilitch. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. São Paulo: Expressão Popular, 2012 [1916].

 

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

 

DIAS, Luciana. Amílcar Cabral e o marxismo: dos anos de Lisboa à liderança do movimento de libertação durante a Guerra Fria (1948-1973). 2020. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2020. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/43529.

 

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