Ano 01 nº 01/ 2020: Panelaço e a Esquerda - Vivian Ayres; Imperialismo na Cultura - Rosa Gomes

MARIA ANTONIA

EM QUARENTENA

Boletim do GMARX-USP | São Paulo | Ano 1 nº 1 | Março 2020


A conjuntura...

PANELAÇO E A ESQUERDA

Vivian Nani Ayres

Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo

Eu sei que muitas pessoas (aquelas que podem, em função da desigualdade brutal que existe no país) estão fazendo quarentena. Eu sei que não há a menor condição de acontecer uma manifestação presencial, pois o único irresponsável que incentiva esse tipo de coisa nesse contexto é o excrementíssimo presidente.

Eu sei que esse governo é cada dia mais absurdo (nunca imaginei que chegaríamos a esse ponto), e que está colocando a vida das pessoas em risco, principalmente a dos mais vulneráveis, sob a justificativa de que a economia brasileira está colapsando (exceto para os grandes empresários e financistas, que nunca enriqueceram tão rapidamente – aliás, é justamente por isso que a economia está entrando em colapso). Eu sei que eles não dão a mínima para a vida da população, ao contrário, eles querem mesmo é que os pobres morram. Eu sei de tudo isso...

Mas eu tenho uma questão: eu não fui, não sou e jamais serei uma paneleira. Acho válido que as pessoas expressem a sua insatisfação dessa forma nesse contexto muito específico, mas não acho que isso deva ser feito sem críticas.

Motivo 1:

Essa cultura do impeachment sem uma reflexão mais profunda é bem preocupante, pois estamos falando disso no contexto da democracia liberal burguesa, e não de uma democracia direta, realmente universal e socialista, na qual os representantes do povo poderiam e deveriam ter suas funções revogadas caso fosse necessário. Estamos falando de impeachment em um contexto que tirou uma presidenta legitimamente eleita não por causa de crimes verdadeiros ou de suas decisões equivocadas e antipopulares (principalmente do segundo mandato), mas, ao contrário, pelas mínimas concessões que o governo petista fez à população pobre. 

Já é clichê, mas não deixa de ser verdadeiro: o motivo do impeachment da Dilma foi a insatisfação da classe média e da burguesia brancas em dividir aeroporto com pobre. 

Concordo que o governo do Bozonazi é insustentável e não estou dizendo que sua saída não é necessária. Só acho que precisamos fazer isso com a devida consciência. Primeiramente porque esse mecanismo começou contra nós e pode se voltar contra nós novamente. Em segundo lugar, o vice-presidente do Bozo são as Forças Armadas. Alguém já parou para refletir sobre o que faremos se o Bozo cair?

Motivo 2:

As pessoas estão normalizando tirar os presidentes eleitos (mesmo que na lógica da democracia burguesa) da sala de suas casas com panelas nas mãos... Ou seja, não há um debate político qualificado e sequer um esforço real de mobilização. É só ir até a cozinha, pegar uma panela e fazer barulho. Depois, vida normal, cada um no seu canto cuidando dos seus problemas pessoais...

Motivo 3:

Não vou dar a mão para bolsominion arrependido e muito menos perdoá-los por terem votado no candidato que representava seus preconceitos e desumanidade. Eles não gostam de pobre, de negros, de mulheres, de indígenas, de qualquer pessoa que não se enquadre no padrão heteronormativo, enfim, de ninguém que não seja branco burguês (pequeno ou milionário). E muitos deles só estão batendo panela agora porque não podem viajar para a praia ou para a Europa, não porque eles perceberam que o capitalismo, o neoliberalismo e o fascismo matam. Eles sabem que eles estão no topo da cadeia alimentar. Jamais darei as mãos a uma pessoa como a Janaína Pascoal.

Motivo 4:

A luta da esquerda não é contra o Bolsonaro em si, mas contra tudo o que ele representa e pratica. O nosso inimigo é o capitalismo, o neoliberalismo e o fascismo. Se o Bozo cair, nós estamos seguros de que as políticas econômicas vão mudar? Da minha parte, tenho certeza que não.

Enfim, sei que grande parte das pessoas que estão batendo panelas no atual contexto não é formada por paneleiros de plantão, nem por bolsominions arrependidos. Mas eles também estão lá e nós estamos usando os seus recursos de mobilização. Se esse é o único recurso possível nesse momento, posso até aceitar. Mas vamos pensar um pouco. A direita ganha em termos de mobilização na era da internet e das redes sociais justamente porque eles esvaziam o debate transformando a política em memes e em ações virtuais. Nós não somos assim. A esquerda só está nesse campo (ou deveria estar) porque acredita que algo tão complexo como a sociabilidade humana e a organização das sociedades devem ser pensadas de forma profunda e com a participação real das pessoas. A solidariedade se constrói no contato, no debate e na reflexão... não com panelas na mão, cada um de sua janela…

Por fim, é preciso começar a pensar antes de agir. O que vai acontecer com o país depois que as panelas forem ouvidas?


Mundo acadêmico...

Imperialismo na Cultura: escolhas para a memória coletiva

Rosa Rosa Gomes

Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo

(texto escrito em 2017, antes do fogo na Catedral Notre-Dame)


Nas teses sobre a Comuna da Internacional Situacionista, discute-se um episódio da Comuna de Paris (1871) em que os communards se dirigem à Catedral Notre-Dame para a incendiar e são detidos por artistas e intelectuais que argumentam sobre a importância estética daquele monumento que, portanto, deveria ser preservado. Segundo os situacionistas:

A anedota dos incendiários, nos últimos dias, vindos para destruir Notre-Dame, e que se chocam contra o batalhão armado dos artistas da Comuna, é rica de significados: ela é um bom exemplo de democracia direta. Ela demonstra também, mais adiante os problemas ainda irresolutos na perspectiva do poder dos conselhos. Esses artistas unânimes tinham razão de defender uma catedral em nome de valores estéticos permanentes e, finalmente, do espírito dos museus, ao passo que outros homens queriam justamente alcançar a expressão naquele dia, traduzindo por essa demolição seu desafio total a uma sociedade que, na derrota presente, rechaçava suas vidas ao nada e ao silêncio? Os artistas partidários da Comuna, agindo como especialistas, encontravam-se já em conflito com uma manifestação extremista da luta contra a alienação. É preciso reprovar aos homens da Comuna de não ter ousado responder ao terror totalitário do poder com a totalidade do emprego de suas armas. Tudo leva a crer que fizeram desaparecer os poetas que traduziram nesse momento a poesia em suspense na Comuna. A massa dos atos inacabados da Comuna permite que se tornem "atrocidades" os atos esboçados, e que as recordações sejam censuradas. A frase "aqueles que fizeram revoluções pela metade não fizeram mais que cavar-se uma cova" explica também o silêncio de Saint-Just.1

Diante da massa, os especialistas se postaram como guardiões de uma história que deveria ser preservada por se constituir como história da humanidade e de suas potencialidades estéticas. Mas, segundo os situacionistas, a Comuna não deveria ter se detido por esse discurso, deixando incompleta a sua tarefa de construção de um mundo completamente novo.

Nessa anedota, deparamo-nos com a questão: deve-se preservar tudo o que o passado nos relegou ou a constituição de uma nova sociedade exige um acerto de contas com o passado que implica uma destruição parcial?

Atualmente e dentro do campo da preservação, a questão aparece de outra forma. Vivemos intensas contradições sociais, o vandalismo e o descaso com o patrimônio histórico são a norma, o que é mais evidente em países periféricos. Além disso, a "amnésia social" fortalece-se pela construção de uma narrativa oficial através do patrimônio, apagando o sujeito popular. Este segundo ponto é visível também nos países centrais quando a própria Paris faz questão de dissipar seu passado insurrecional e popular para apresentar o monumental, o grandioso.

Mantendo o foco na periferia do capitalismo, em São Paulo, por exemplo, encontramos uma profusão de monumentos que remetem à história da colonização e do imperialismo: estátua do Padre José de Anchieta, na Praça da Sé, estátua do Borba Gato, Monumento às Bandeiras, a Estação da Luz, os prédios espelhados da Av. Paulista construídos sobre os casarões do século XIX. A grande maioria foi construída no século XX glorificando o passado colonial como o próprio Pátio do Colégio, tido como marco inicial da cidade, mas cuja configuração atual é dos anos 1970. Alguns dos edifícios citados não são considerados patrimônios, por enquanto, ao contrário são símbolos de uma cidade sem memória, mas estão aqui listados para completar a história de um território: colonizados por portugueses, dominado por ingleses, subjugado pelo mercado financeiro. Etapas da acumulação do capital tal como Rosa Luxemburgo a entende.

O enaltecimento de um suposto civilizador se repete em outros lugares do Brasil e do mundo, na política de preservação da arquitetura colonial nos anos 1930 ou no Padrão dos Descobrimentos em Portugal, construído pela ditadura Salazarista e complementado com uma Rosa-dos-Ventos oferecida pelo governo do apartheid da África do Sul.

Em geral, trata-se de construir uma memória que enalteça os brancos colonizadores, padrão de desenvolvimento e civilização do mundo ocidental.

Diante do quadro arquitetônico apresentado, o que resta da herança indígena, escravizada e operária nos países periféricos? São elas consideradas parte da cultura, da memória, da história desses espaços? Três casos parecem interessantes para pensarmos essas questões.

O primeiro deles é a reforma do Pelourinho em Salvador. Pelourinho era uma coluna de madeira ou pedra usada para castigar criminosos. Foram implantados no Brasil durante o período colonial e eram usados para castigar escravizados. Ele marcava a sede municipal, cidade ou vila, e ficava próximo à casa de câmara e à cadeia2.

No caso do pelourinho de Salvador, ele mudou de lugar mais duas vezes terminando por se estabelecer na praça Castro Alves. O pelourinho em si foi destruído por manifestantes depois da Independência, mas o bairro permaneceu com seu nome.

Inicialmente, a região era habitada pela aristocracia da cidade que abandonou o local quando a estrutura de transporte e saneamento de outras regiões se tornaram mais atraentes. O resultado foi o abandono do espaço pelo poder público e sua ocupação pela população mais pobre que tinha menos condições de arcar com os custos de locomoção entre trabalho e moradia.

Com o tempo, a situação de abandono do Pelourinho começou a importar porque o turismo se tornou uma significativa fonte de renda para a cidade e a região histórica é parte dele. Nos anos 1990, o projeto de revitalização da área foi levado a cabo, o que terminou com a total gentrificação do espaço, expulsando os antigos moradores, pessoas sem posses, e incorporando um comércio que tem como um de seus principais produtos a cultura afro-brasileira.

As contradições desse processo são inúmeras. Alguns dos expulsos do bairro reivindicam sua importância na manutenção daqueles prédios antes da intervenção do poder público que não os incluiu no processo de melhorias físicas, pelo contrário, os segregou do espaço dando lugar a uma paisagem turística vendável que inclui a cultura afro, presente na região desde há muitas décadas, dentro dos limites permitidos pelas autoridades3.

Dentro do cenário restaurado, a violência do passado e do presente ficam escondidas e só podem ser percebidas se há tempo para olhar para as relações ali constituídas com mais acuidade. De um modo geral, os monumentos apenas se apresentam como um passado colonial colorido, escondendo as marcas da violência estrutural do nosso presente e passado.

Um segundo caso, mais recente, é o Cais do Valongo encontrado na reforma do Porto Maravilha no Rio de Janeiro, projeto apresentado para os grandes eventos que aconteceram na cidade recentemente: a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

A região fora abandonada pelo poder público no começo do século XX com as reformas de Pereira Passos. Cem anos depois, interesses imobiliários se voltaram de novo para o local levando a concepção de um projeto de revitalização que tornasse a área atrativa para investimentos comerciais. O projeto do Porto Maravilha gerou e gera inúmeros debates entre poder público, investidores e população. Dentre os debates encontra-se o Cais do Valongo.

Durante o processo de escavação para a reforma, pesquisadores encontraram o antigo porto de desembarque de escravos (Cais do Valongo) e um cemitério de escravos (Cemitério dos Pretos Novos). O achado levou a outros conflitos entre poder público e população. Pesquisadores se dedicaram a estudar os restos arqueológicos contando com o apoio de terreiros de religiões de matriz africana para entender o significado e a importância de diversos objetos4.

Diante da insistência, a prefeitura prometeu suporte para que a região fosse patrimonializada e que os objetos encontrados fossem para um museu, onde contariam com uma equipe de pesquisa.

A prefeitura de fato deu um suporte e, hoje, a região do Valongo está incluída no espaço do Porto Maravilha com um roteiro de visita próprio. No entanto, alguns movimentos negros reivindicam o espaço como um memorial da cultura e história negra do Brasil, o que a prefeitura não concretizou. E ainda apresenta, no atual roteiro, a herança cultural africana no passado, no período da escravização. O que restaria da influência negra seria apenas o aspecto religioso da população que atribui tal valor ao local5.

Nessa perspectiva, além de sofrer o mesmo processo de gentrificação como no caso do Pelourinho, o Porto Maravilha ainda apresenta claramente a proposta que se tem para o patrimônio cultural: ele serve a uma memória específica e lembrar o papel de outros povos na construção do país não está no horizonte, muito menos relembrar o passado violento e suas relações com o presente.

No caso do Rio de Janeiro, há ainda outro elemento: a preocupação com o moderno, com o futuro, concretizado no Museu do Amanhã, construído na região, em um país que se recusa a entender o seu passado.

O terceiro caso é a pichação, em setembro de 2016, de dois monumentos da cidade de São Paulo: O Monumento às Bandeiras e a estátua de Borba Gato.

O Monumento às Bandeiras é uma obra idealizada nos anos 1920 e inaugurada nos anos 1950, de autoria de Victor Brecheret. A obra tem 11m de altura, 8,4m de largura e 43,8 de profundidade, esculpida em granito e alocada em frente ao Parque Ibirapuera, região nobre da cidade.

O Monumento representa o que seriam os fundadores do Brasil, a partir da perspectiva paulista, com os bandeirantes à frente, os grandes heróis, seguidos por negros e indígenas carregando uma canoa a pé enquanto os bandeirantes estão a cavalo. Encarar essa peça como expressão de uma identidade brasileira é defender um processo de expansão do território português (já que o que hoje é Brasil era ainda colônia na época das bandeiras) baseado na violência e espoliação das populações locais.

Na obra, indígenas e negros estão colocados no lugar que a sociedade colonial lhes deu: servindo aos brancos. Essa representação em uma peça feita para celebrar uma memória oficial aponta também qual o lugar que a sociedade que a produziu relega a negros e indígenas.

Outra obra que celebra o bandeirante paulista é a estátua do Borba Gato, na zona sul da cidade de São Paulo. Inaugurada nos anos 1960, a obra é de Júlio Guerra, artista plástico paulista.

Manuel de Borba Gato viveu entre os séculos XVII e XVIII e comercializava indígenas como escravos, principal função dos bandeirantes. Entrou mais a fundo nas regiões do que hoje são os estados de Minas Gerais e São Paulo e é celebrado nesta estátua.

Assim como o Monumento às Bandeiras, a celebração de um agente da captura e escravização indígena significa também exaltar esse passado sem problematizar a colonização e a expansão bandeirante como um processo violento.

Esses dois monumentos amanheceram completamente pichados em setembro de 2016, o que levou a várias manchetes, discussões e uma nota do Instituto Victor Brecheret publicada na imprensa com o seguinte teor:

O Instituto Victor Brecheret – IVB vem a público manifestar sua perplexidade e indignação pelos atos de barbarismo, ocorridos nesta madrugada (30/09), que atingiram, entre outros monumentos da cidade, o “Monumento às Bandeiras”, de autoria de Victor Brecheret. É uma violência cometida contra uma das mais importantes obras artísticas do país.
O Monumento às Bandeiras pertence ao Povo Brasileiro. Como símbolo, deve ser respeitado e sua preservação garantida por todos nós.
O Instituto Victor Brecheret – IVB espera a restauração completa da obra, para que ela possa permanecer para as próximas gerações.6

Resta perguntar qual o "povo brasileiro" que tem uma relação de pertencimento com essa obra? Qual o seu simbolismo afinal? A pichação é considerada um "ato de barbarismo", mas não o conteúdo da obra. Afinal, o que devemos preservar? Há sentido em insistir na preservação de monumentos quando a comunidade os rechaça? Por outro lado, e quando a comunidade rechaça por desconhecimento?

Retomando os três casos, percebemos que nos dois primeiros temos um espaço abandonado pelo poder público por décadas que se torna interessante para a economia da cidade e, por isso, precisa ser retomado e gentrificado. No primeiro caso, usou-se o discurso da preservação patrimonial valorizando a cultura afro-brasileira ali presente. No segundo caso, a ideia inicial era modernizar totalmente a região, mas achados arqueológicos e a pressão da população forçaram a inclusão do patrimônio material de matriz africana no escopo do projeto.

O terceiro caso é a violação do patrimônio por pessoas comuns que causou grande impacto em um setor da comunidade paulistana. A questão do vandalismo em edifícios históricos é recorrente e ponto de pauta da educação patrimonial.

Qual o problema comum aqui a ser levantado?

Comecemos pela história que se quer contar com esses projetos e monumentos. Uma história de harmonia entre brancos, índios e negros, relegando a estes últimos um lugar no passado, e somente nele. Segundo, o apagamento da violência em toda a história do Brasil, enquanto colônia, Império e República. Lembremos a posição que a região sempre teve dentro do mercado internacional, colocada na periferia do sistema onde o processo de acumulação tem como métodos "o sistema de empréstimos internacionais, a política das esferas de influência e as guerras. Aí a violência aberta, a fraude, a repressão e o saque"7 são a normalidade.

Nesse sentido, muito do patrimônio cultural edificado, mas também móvel, é usado para celebrar ou justificar as diversas formas de dominação. Por isso, a sua profanação pode ser uma crítica dessa história oficial e uma negação da subjugação em busca de autonomia, resgatando uma memória que tenha representatividade para uma população mais ampla.

É importante lembrar que o patrimônio edificado tem efeito para a história oficial, porque junto com ele se estabelece um discurso que também justifica o uso da violência como forma de civilização, tanto no passado como na atualidade.

A partir daí, há muita reflexão sobre as normas de conduta em conservação que colocam sempre o problema do vandalismo e a necessidade da educação patrimonial e da punição para resolvê-lo. No entanto, quais as origens do vandalismo? O monumento não é apenas algo representativo de uma época, ele tem força também no presente, ele impõe um discurso. Assim, todos devem ser preservados?

A preservação e a conservação, embora demandem conhecimentos técnicos, são práticas que envolvem decisões políticas e sociais – o que se preservar? – e que se relacionam a visões históricas, visto que essas também são influenciadas por escolhas políticas e sociais. Assim, a decisão de construir e preservar um monumento que subjuga indígenas e negros foi tomada em algum momento e, por isso, não pode mais ser questionada? Mas, então, destruiríamos todo o patrimônio colonial porque podem ser considerados monumentos a barbárie?

É preciso entender o que se quer contar. Ao observarmos os três casos, vemos que querem apagar o indesejável, estabelecendo uma linha evolutiva necessária e camuflando a barbárie do processo. Quando a comunidade se apresenta pela valorização na história da presença negra no Brasil, ela força a lembrança, força outra versão da história que implica na quebra da ideia de evolução. O caso do vandalismo também é um questionamento do que está posto, pois demonstra uma indiferença com o edifício e, às vezes, até uma afronta quando a pichação se remete àquilo que é representado.

E a pergunta permanece: quem determina o que é representado? Quem determina o que é preservado?

Em alguns casos, a pressão social surte algum efeito, mas não completamente, pois interesses mais capitalizados estão envolvidos no processo. Por isso, a memória coletiva que se estabelece acaba sendo a do dominante mesmo que ele faça concessões. Como diz David Harvey, o próprio capital tem que aceitar certas formas de estabelecimento da singularidade se quiser continuar acumulando e nisso abre espaço para movimentos sociais, o que também é incorporado ao circuito capitalista8.

Frisa-se aqui a memória e não a história, seguindo a diferenciação feita por Meneses9 de que a memória é filha do presente e responde a suas expectativas enquanto a história exige distanciamento e possibilita a ruptura entre passado e presente. A memória pode basear-se em uma história oficial, mas ela é construção do presente e pode ser reinventada e reafirmada continuamente a depender das necessidades daqueles que dominam sua difusão.

Por isso, a forma como o patrimônio colonial e os monumentos levantados para contar essa história são tratados nas ex-colônias exprime uma dominação imperialista no nível cultural.

O imperialismo aqui é entendido, como já citado, de acordo com a teoria de Rosa Luxemburgo: uma etapa de desenvolvimento da acumulação capitalista em que o sistema de crédito, os espaços de influência e a violência são os veículos fundamentais para as áreas que Luxemburgo classifica como mercados externos.

Nessas fronteiras externas do capitalismo, o principal instrumento da exploração, espoliação e rendimento é a violência. Mas os estados independentes não podem se apresentar assim, propagando um discurso de pacificação gradual do território que empregaria apenas a força necessária para a sua conversão à civilização.

O patrimônio cultural faz parte desse processo tanto no sentido econômico, como veículo do enriquecimento do capital, quanto no sentido ideológico e é esse o aspecto que frisamos aqui para levantar a questão: o que estamos preservando? Para quê e por quê?

Citando novamente David Harvey, as singularidades atualmente são fonte de renda para o capital e o urbanismo atua para apresentar as cidades como objetos únicos, prontos para ser consumidos, ao mesmo tempo, elas não podem ser tão particulares que não possam ser comparadas e precificadas, necessitando de um aspecto moderno que seja familiar a todo o mundo ocidental. Essa contradição talvez se expresse de forma clara no segundo caso, a reforma do Porto Maravilha. Ali, a cidade moderna apresentada no projeto inicial precisou se conciliar com a cidade particular, histórica, e as duas foram incorporadas à circulação do capital. Nesse sentido, a preservação parece ser mais um dos instrumentos para a produção de commodities para o capitalismo contemporâneo.

Como meio ideológico, as escolhas do que se preservar e como apresentar o patrimônio que remete à colonização e ao imperialismo têm se guiado pela reafirmação da Europa como ideal civilizatório e obscurecido o quanto daquela civilização se ergueu sobre a barbárie perpetrada nas colônias. Assim, as escolhas da memória coletiva são reflexo do imperialismo que quer se apresentar como salvador, pacificador, o ápice de desenvolvimento escondendo a exploração.

Atualmente, talvez seja importante que os muros de Notre-Dame, voltando à história dos communards, permaneçam de pé para lembrar a história de opressão e suas diversas permanências na estrutura social de muitas ex-colônias e, também, nas relações do mercado internacional, mas não como celebração desse passado e sim como questionamento dele e do presente.

Referências

ALAMBERT, Clara Correia d'. Conservação: Postura e Procedimentos. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1998.

BRAGA, Alencar Santana. O Poder Político do Município no Brasil Colônia. Revista Brasileira de Direito Constitucional. [online], v. 18, 2008, p. 169-232. <http://esdc.com.br/seer/index.php/rbdc/article/view/199&gt; data de acesso 28 dez 2016.

CARNEIRO, Sandra; PINHEIRO, Márcia. Cais do Valongo: patrimonialização de locais, objetos e herança africana. Religião & Sociedade. [online], n. 2, v. 35, 2015, p. 384-401. <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-85872015000200384&script=sci_…; data de acesso 28 dez 2016.

DEBORD, G; KOTÀNYI, A; VANEIGEM, R. Teses sobre a Comuna: Internacional Situacionista. Mouro: revista marxista. São Paulo: Ideographos, ano 5, n. 8, dez 2013, p. 121-127.

HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Anablume, 2005.

LUXEMBURG, Rosa. A Acumulação do Capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

MENESES, Ulpiano. A História, Cativa da Memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 34, 1992, p. 9-23.

SUZUKI, Júlio Cézar. Campo e Cidade no Brasil: transformações socioespaciais e dificuldades de conceituação. Revista Nera. São Paulo, n. 10 (10), jan-jun 2007, p. 134-150. <http://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/1429&gt; data de acesso 28 dez 2016.

ZANIRATO, Sílvia Helena. A Restauração do Pelourinho no Centro Histórico de Salvador, Bahia, Brasil. Potencialidades, limites e dilemas da conservação de áreas degradadas. História, cultura e cidade. História Actual Online. [online], n. 14, 2007, p. 35-47. <http://historia-actual.org/Publicaciones/index.php/haol/article/view/21…; data de acesso 28 dez 2016.

1DEBORD, G; KOTÀNYI, A; VANEIGEM, R. Teses sobre a Comuna: Internacional Situacionista. Mouro: revista marxista. São Paulo: Ideographos, ano 5, n. 8, dez 2013, p. 124.

2Ver BRAGA e SUZUKI.

3Ver ZANIRATO.

4Ver CARNEIRO; PINHEIRO.

5Sobre o Cais do Valongo, ver CARNEIRO; PINHEIRO (2015).

6"Monumentos aparecem pichados com tinta colorida em SP". G1. São Paulo, 30 set 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/monumentos-amanhecem-pich…;. Acesso em: 25 dez 2016.

7LUXEMBURG, 1985, p. 309.

8HARVEY, 2005.

9MENESES, 1992.


Expediente


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