Ano 01 nº 14/ 2020: - Saindo das Sombras? O Trabalho Reprodutivo na Quarentena - Marcela Piloto

Boletim 14


A conjuntura ...

SAINDO DAS SOMBRAS? O TRABALHO REPRODUTIVO NA QUARENTENA

 

Marcela Piloto

Graduanda em  História - USP

 

Vivemos hoje um momento ímpar. De súbito todos nós fomos surpreendidos por uma pandemia que atingiu todo o globo. Se antes nos questionávamos sobre o que poderia interromper a fúria das cidades, o gigantesco tráfego aéreo, o trânsito das avenidas, o vapor das indústrias e o movimento dos bares, hoje temos uma mostra da fragilidade da sociedade em que vivemos. De alguma forma, a pandemia do Covid-19 paralisou o mundo1 e, com isso, trouxe à tona uma série de contradições do capitalismo contemporâneo, temas que há tempos já vinham sendo discutidos nos grupos de esquerda, mas que, nesse momento atípico, ganham maior evidência.

Algumas dessas questões são óbvias: a falência do neoliberalismo, o problema da dependência de insumos básicos vindos do exterior gerada pela globalização, a importância de um sistema público de saúde, o papel do Estado e dos líderes que ocupam os principais cargos... há outras, no entanto, que são menos evidentes, mesmo para aqueles indivíduos comprometidos com o estudo da sociedade capitalista e suas contradições, mas que, ainda assim são essenciais para sua compreensão. Essas questões às quais me refiro, são aquelas vividas no nosso cotidiano, no chamado âmbito privado, pois, no final das contas, se existe um trabalho que, em nenhum lugar do mundo paralisou, este é o trabalho realizado no interior das casas.

O trabalho doméstico-reprodutivo, isto é, o cuidado da casa e da família que proporciona e assegura a sobrevivência desses indivíduos para que possam trabalhar fora de casa, vem sendo entendido, desde os primórdios do mundo moderno, como uma vocação feminina. O que se tem lançado luz desde a década de 1960 é que o ato de reproduzir a vida no capitalismo consiste em um trabalho não remunerado que serve de sustentáculo para acumulação de capital2.

Sua naturalização enquanto destino biológico feminino e, por decorrência disso, seu completo ocultamento das relações de produção, foram as armas que possibilitaram a não remuneração deste trabalho, economizando quantias gigantescas para o capital3, ou melhor, proporcionando sua estabilidade e continuidade. Ao mesmo tempo, é justamente a sua não remuneração, que mais dificulta a luta das mulheres do reconhecimento deste trabalho e do valor que produz para sociedade.

Federici

Mural com famosa frase de Silvia Federici em Buenos Aires, Argentina, 2020. Foto da autora.

Ao ser identificado como um feitio feminino, o trabalho doméstico esteve invisível para os próprios habitantes do sexo masculino da casa. Ao serem obrigados a ficarem em casa, esses mesmos homens foram obrigados a perceber – talvez pela primeira vez – o número de horas que suas mães, esposas e irmãs ficam consumidas pelas tarefas domésticas, ainda que muitos prefiram ignorar a recente constatação.

Aqui, no caso do Brasil, outro fator ainda se soma a essa problemática: a massiva quantidade de funcionárias domésticas. Uma parcela da classe média4, ao liberar suas funcionárias domésticas para o isolamento social, se depara com sua completa inabilidade para as tarefas do lar. Enquanto a outra parcela, juntamente à elite brasileira, com sua dezena de funcionários, se recusa a assumir as tarefas da casa.

O trabalho doméstico só é visto quando não é feito, isto é, quando aquele copo deixado no quarto não desaparece magicamente, ou quando o lixo do banheiro está lotado, o chão empoeirado. E, assim, de um dia para o outro, tudo aquilo que se resolvia por de baixo dos olhos dos moradores da casa passa a se tornar um verdadeiro estorvo da quarentena.

O cuidado com as crianças é outro aspecto central da quarentena na vida das mulheres. Sem creches ou escolas, as mães agora se deparam com a situação de estarem enclausuradas com suas crias. Logo, o trabalho reprodutivo que era em parte, pelo menos durante algumas horas do dia, delegado às instituições de educação, se multiplica. E se multiplica ainda mais pelo próprio estado de ânimo de uma criança em quarentena. Isso sem contar a completa novidade que tal situação é para algumas dessas mães que sempre delegaram boa parte desse trabalho a uma terceira, que agora, possivelmente, também está em quarentena.

As relações conjugais também são colocadas à prova: o que significa, para casais que se encontravam na maioria dos dias apenas para dormir, estar na presença do outro 24 horas por dia? Nesse aspecto específico, a misoginia mostra sua face mais brutal: conforme as estatísticas revelam, há um crescimento exponencial do feminicídio, das agressões físicas e sexuais desde o início do isolamento. Em São Paulo, as taxas de feminicídio dobraram no período da quarentena, se comparado ao mesmo período do ano passado5. Essa é a tendência, em maior ou menor proporção, da violência contra a mulher em todo mundo durante o período de isolamento. As explicações para essa escalada da violência contra a mulher são múltiplas, mas se concentram em um duplo fato: 1. os homens estão passando por dificuldades, sejam elas emocionais, sociais ou financeiras; e 2. os homens se sentem autorizados a descontar seu sofrimento e frustração em suas parceiras.

Assim, tem-se que a mãe-esposa, que trabalha fora de casa ou não, só viu seu trabalho se multiplicar nesse período e, mais do que nunca, as mulheres têm se desdobrado para cumprir todas as funções que englobam o sujeito da mãe-esposa: “donas de casa, prostitutas, enfermeiras e psiquiatras, essa é a essência da esposa ‘heroica’ celebrada no Dia das Mães”6. Os homens, de quarentena ou não, continuam a se apoiar nas duas antigas justificativas: de que eles não têm tempo ou de que eles não sabem fazer, ou seja, de que para elas é mais fácil, é natural. Entretanto, uma vez que a atual conjuntura impõe uma nova realidade a milhares de famílias, de alguma forma, esses homens, ao serem obrigados a passarem mais tempo em casa, têm o valor do trabalho reprodutivo escancarado a olhos nus7.

Em cada casa a quarentena trouxe a problemática do trabalho doméstico à tona. Seja na reorganização de uma família perante as tarefas, ou mesmo na evidência da sobrecarga feminina, ou na constatação do trabalho não feito. Inclusive, entre as elites e determinadas parcelas das classes médias, a conjuntura é reveladora: mesmo amedrontados com o coronavírus, não dispensam suas funcionárias para praticarem o isolamento social, porque se sentem ainda mais amedrontados em ter que, pela primeira vez na vida, limpar suas privadas. E são essas mesmas famílias, que temem profundamente a ideia de não terem trabalhadores em suas casas, que saem às ruas, em suas caminhonetes e SUV’s, esbravejando pelo fim do isolamento social, porque não toleram a ideia de ter que mudar um aspecto sequer de seu modo de vida.

Ainda que o trabalho doméstico no Brasil tenha significado e peso substancialmente diferentes para o proletariado e para as classes médias, no fim do dia, o almoço, o trato das crianças e idosos e a louça suja ainda aparecem como tarefas naturalmente femininas, afinal foi assim que eu, você e as outras mulheres que conhecemos fomos socializadas. A figura da dona de casa é, apesar do quanto queiramos nos distanciar dela, parte constitutiva de como nós aparecemos na sociedade, e o valor desse trabalho continua, século após século, oculto, não remunerado e desconsiderado.

A questão aqui não é ter a esperança ingênua de que a atual conjuntura provoque algum tipo de mudança na forma como nossa sociedade se organiza em relação ao trabalho reprodutivo. Mas, reconhecer que aqui se abre uma brecha na qual um pequeno feixe de luz ilumina essa questão que é tão sensível e fundante do nosso capitalismo patriarcal. Cabe à nós, comprometidas com a construção de um nova realidade, não deixarmos passar, nem por mais um dia, a discussão do trabalho reprodutivo — afinal, quem mais ganha com o nosso silêncio é, também, nosso principal inimigo, o capital, que “ganhou e ganha dinheiro quando cozinhamos, sorrimos e transamos”8.

Vassoura

 

1Notícias publicadas em finais de março apontam que cerca de um terço da população mundial está de quarentena. No Brasil, entre 50% e 60% da população está em isolamento social. Notícias recentes sobre a capital paulista, apontam para uma diminuição drástica no trânsito de automóveis. Esses dados ilustram o efeito da pandemia covid-19 no mundo. Ver: CORONAVÍRUS: um terço da população mundial está sob quarentena; veja 4 tipos de restrição. BBC News Brasil, 25 mar. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52040808&gt;. Acesso em: 24 abr. 2020; STAFANO, Fabiane. Por coronavírus, 57% da população brasileira está em isolamento. Exame, 1 abr. 2020. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/por-coronavirus-57-da-populacao-brasi…;. Acesso em: 24 abr. 2020; MORENO, Ana Carolina. Coronavírus: SP segue tendência de respeito à quarentena em feriados e trânsito cai. G1 São Paulo, 21 abr. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/21/coronavirus-sao-pa…;. Acesso em: 24 abr. 2020.

2Para um melhor aprofundamento do tema, recomenda-se a leitura das seguintes autoras: Angela Davis, Roswitha Scholz e Silvia Federici.

3Segundo dados divulgados no relatório da Oxfam publicado em janeiro de 2018, Recompensem o Trabalho, Não a Riqueza, “as mulheres fornecem, anualmente, US$ 10 trilhões em cuidados não remunerados para sustentar a economia global”. Em <https://oxfam.org.br/publicacao/recompensem-o-trabalho-nao-a-riqueza/&gt;.

4Como é sabido, ao mesmo tempo que parte das funcionárias domésticas conseguiu garantir seu direito de isolamento social remunerado, muitas domésticas estão na luta. O caso das diaristas, que não possuem vínculo empregatício formal, é ainda mais delicado.

5MARIANI; Daniel; YUKARI, Diana; AMÂNCIO, Thiago. “Assassinatos de mulheres em casa dobram em SP durante a quarentena por coronavírus”. Folha de São Paulo, 16 abr. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/assassinatos-de-mulhere…;. Acesso em 24 abr. 2020.

6FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Editora Elefante, 2019, p. 49.

7Essa percepção dá-se, principalmente, àqueles homens que estão em quarentena. Entretanto, mesmo os homens que continuam a trabalhar fora de casa, sem o futebol ou o bar com os seus pares, isto é, sem a possibilidade de outras formas de entretenimento, também estão passando mais tempo em casa.

8FEDERICI, Silvia. Op. cit., p. 48.


Expediente

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