Ano 01 nº 27/ 2020: Classe Média Vai ao Paraíso - Fernando Ferreira; Rosa Gomes

Boletim 27


A conjuntura ...

 

CLASSE MÉDIA VAI AO PARAÍSO

 

Fernando Sarti Ferreira

Mestre e doutorando em História Econômica - USP

Rosa Rosa Gomes

Mestre em História Econômica - USP

 

Uma Organização Social foi escolhida para gerir com “independência e sem burocracia” uma instituição pública cultural representativa da alta elite intelectualizada, dos quatrocentos deste Brasil. Em meio à crise da pandemia, coloca-se a seguinte situação: os funcionários responsáveis pela limpeza, segurança e manutenção, os considerados terceirizados e desvalorizados de um modo geral – mesmo que o discurso seja de integração, sabemos bem o que ocorre nas instituições – estão com seus salários e benefícios em dia; enquanto isso, o considerado “corpo técnico”, de profissionais bem treinados, educados, com experiência no exterior, ensino superior etc. está sem salário, sem benefício, a ver navios. O “novo normal” diz mais coisas sobre a sociedade brasileira e o capitalismo do que consta no anedotário dos jornais.

A crise, como afirma Jorge Paulo Lemann e outros tantos por aí, traz oportunidades. E a corona crise embala o senso de oportunidade de importantes setores da sociedade brasileira. Em troca de seus direitos mais básicos, o cidadão garante o rebaixamento de seus rendimentos e ainda agradece ao empresariado bem feitor e solidário. A corona crise acelerou a precarização generalizada da vida de quem vive do trabalho nesse país, levando nessa onda um importante e novato personagem.

Para que as coisas fiquem mais claras, recorramos à história. Jacob Gorender, em seu livro clássico, Combate nas Trevas, afirmou que “O golpe direitista de 1964 arrancou os véus que disfarçavam a violência do Estado burguês no Brasil”, elevando esta a um patamar nunca visto. Ainda segundo Gorender, uma das inflexões desta transformação foi o fato de que “(...) cessaram os privilégios da classe média nos meandros do aparelho repressor (...) Nem mesmo relações familiares de alto nível no meio militar conseguiam aliviar a situação dos suspeitos de subversão”. Neste 1964 sui generis que vivemos, o ajuste da taxa de lucro da burguesia brasileira, ao que parece, poderá provocar uma inflexão em algo semelhante. Da mesma forma que a violência do Estado brasileiro atingiu a classe média durante a Ditadura Militar, a violência do mercado – ou a violência da economia política da burguesia brasileira - , que assim como a do Estado, massacra há 500 anos os pobres deste país, irá chegar na classe média sob o bolsonarismo. Suspensão dos contratos e redução dos salários são sinais claros de que o próximo e inevitável degrau será o auxílio emergencial.

O que a crise da instituição cultural aponta para os bem educados técnicos de seu corpo de funcionários é que eles também são terceirizados e estão suscetíveis a todas as falcatruas dessas empresas que ficam meses sem pagar seus funcionários e depois abrem concordata. Os trabalhadores ficam meses ou até anos para receberem alguma coisa, nunca aquilo que de fato é devido, enquanto os donos ou gestores das empresas vão embora para uma próxima, repetindo o mesmo ciclo.

Se toda crise traz oportunidades, esta traz a oportunidade para os técnicos bem treinados oriundos da classe média entenderem que a sua “maior qualificação”, responsável por lhe garantir “vantagens no mercado de trabalho”, não é resultado de sua competência, mas principalmente de uma posição financeira pretérita, ancorada em um cruel processo de acumulação de capital em que os mais pobres são superexplorados garantindo assim algum nível educacional e material aos estratos médios. Mesmo que, no final, todos estes estejam pagando a conta de seus patrões.

Este cenário é também uma oportunidade de perceber que não existe salvação individual frente a um processo histórico e social. Não adianta tomar soluções, previstas em leis, para enfrentar a situação com um processo judicial individual, não estamos sob o império da lei, se é que um dia estivemos neste país. Mas é fato que atualmente, é o império dos patrões independente das possibilidades legais e às vezes até das decisões jurídicas. É momento de se entender como classe, portanto, coletivamente. Mas principalmente, é a oportunidade deste grupo perceber de uma vez por todas – ou pelo menos de maneira mais consistente – que seu destino dentro das atuais condições de reprodução social está mais próxima dos de baixo que dos de cima.

Envaidecida em meio às suas convicções e valores, que não passam de uma coleção de ilusões preconceituosas e obtusas, a classe média, sem perceber, se vê agora presa aos círculos infinitos de CNPJs que compõem o inferno da precarização e do rebaixamento do custo da força de trabalho. Antes, orgulhosa de sua pessoa jurídica, com salário supostamente pomposo porque sem os encargos trabalhistas, agora, preocupada com a quebra de contrato sem ressarcimento financeiro substancial. Percebem quão precários são quando o home office se torna inviável por não poderem mais pagar a conta da banda larga.

 

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Expediente

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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