Ano 01 nº 29/ 2020: Não Estamos no Mesmo Barco - Amanda Raimundo

Boletim 29


A conjuntura ...

 

NÃO ESTAMOS NO MESMO BARCO: OS DIREITOS DA MULHER DURANTE A PANDEMIA

 

Amanda Beatriz Raimundo

Graduanda em História - USP

 

Falar sobre os direitos das mulheres no Brasil é falar de uma longa história de lutas, enfrentamentos e impedimentos. Ainda hoje ocupando baixíssimas posições nos rankings de “melhores países para ser mulher”1, nossa situação se agrava quando temos de lidar com um cenário de pandemia. Se o isolamento social é uma das medidas mais eficazes no combate ao coronavírus, para um grande número de mulheres ele se coloca como um problema e um perigo, uma vez que o lar é o lugar que oferece maior risco para aquelas que sofrem violência doméstica. Num cenário de crise e incerteza como o de agora, paira a pergunta: como ficam os direitos das mulheres brasileiras durante a pandemia?

Com mais de 15.000 óbitos e mais de 230.000 casos confirmados, o Brasil vive um momento caótico, que se agrava com o grupo fascista e genocida no poder. Os direitos das mulheres vinham sofrendo diversos ataques debaixo do atual (des)governo, que colocou Damares Alves como ministra para cuidar dos assuntos relacionados à mulher. Além do aumento do número de casos de violência doméstica e feminicídio, o acesso a contraceptivos gratuitos diminuiu consideravelmente durante a pandemia e, em alguns locais do país, sumiu por completo. Soma-se ao cenário o fato de que o corpo de profissionais da saúde e da limpeza são compostos majoritariamente pelo sexo feminino – o que as coloca na linha de frente do combate ao vírus, ao passo que as torna mais vulneráveis à doença.

remedios

Bordando o manto da Terra”. Tela de Remedios Varo

Só em São Paulo a violência contra a mulher aumentou 45% durante a pandemia2, dados que revelam o cenário de mais de um mês atrás – no momento atual, é provável que esse número esteja ainda maior. Em alguns Estados, como o Acre, Mato Grosso, Pará e Ceará, os números diminuíram, porém isso se deve às dificuldades em relatar as violências, uma vez que canais de denúncia e delegacias físicas não estão funcionando regularmente, acarretando em subnotificação. Com o fechamento de escolas e o isolamento social, o trabalho doméstico cresce, o que significa sobrecarga de tarefas para as mulheres, dada a divisão desigual das responsabilidades do lar. Por conseguinte, além de lidar com o acúmulo de trabalho e do cuidado com os filhos, as mulheres em situação de violência ainda precisam sobreviver aos parceiros que agora se encontram por perto por mais tempo ou por tempo integral.

gravida

Fonte: https://istoe.com.br/a-angustia-de-estar-gravida-em-tempos-de-coronavir…

O acesso a métodos contraceptivos também foi impactado durante a pandemia da covid-19. Podemos traçar um paralelo entre a pandemia do coronavírus com o Zika, que teve um estouro no número de casos em 2015. Nesse período foi colocada em pauta uma ação que exigia direitos para as mulheres afetadas pela doença, incluindo a interrupção da gravidez. A ação foi votada no STF apenas esse ano – e pior, foi rejeitada. Tal resposta é muito clara: os direitos reprodutivos da mulher e o empoderamento sobre seu próprio corpo não são relevantes ou de interesse do poder público. Até aí nada de novo. Com o coronavírus, os hospitais e postos de saúde diminuíram ou pararam de disponibilizar contraceptivos para a população.

A Secretaria Municipal de Saúde de SP suspendeu desde março os procedimentos considerados não urgentes, já a inserção do DIU pelo SUS foi temporariamente suspensa em algumas maternidades do Rio de Janeiro3. As grávidas são consideradas grupo de risco na pandemia, porém como proteger a população feminina sem disponibilizar métodos para não engravidar? Vale lembrar que, dos métodos contraceptivos disponíveis no SUS, vários Estados não oferecem todos eles (como é o caso do DIU) e, durante a pandemia, esse acesso fica ainda mais precário. Serviços de ginecologia e obstetrícia também estão enfraquecidos no momento.

Uma última consideração sobre mulher e pandemia são as profissionais da saúde e da limpeza. Na divisão sexual do trabalho, a mulher ocupa o lugar de cuidado e, nas profissões que requerem esse tipo de trabalho, o uso de mão de obra feminina é maior. No Brasil, 85% dos profissionais de saúde são do sexo feminino4, enquanto que no mundo esse número é de 70%. Não é novidade a precariedade que os profissionais da saúde enfrentam no momento, os problemas vão desde cargas horárias abusivas, falta de EPI’s até a contração em larga escala de coronavírus por conta da exposição. No Brasil, foram registrados 31,7 mil casos confirmados de profissionais da saúde infectados e outros 199.678 casos de suspeita de covid-195. A maior parte dos casos está concentrada em auxiliares de enfermagem e enfermeiros, categorias compostas majoritariamente por mulheres segundo o Cofen.

Outra categoria afetada pela pandemia é a dos profissionais de limpeza. Esse trabalho envolve tanto os espaços públicos e privados de empresas, hospitais, escolas etc., quanto a esfera doméstica, caso das empregadas domésticas. Em hospitais, as trabalhadoras que cuidam da limpeza estão diretamente em contato com o vírus, tão expostas quando as profissionais da saúde. Apesar de correr os mesmos riscos, os números referentes a esse grupo são mais raros de encontrar, dado que mostra a invisibilidade da qual sofre todo o setor.

As empregadas domésticas, por sua vez, depararam-se com diversas ameaças nesta pandemia: muitas perderam ou tiveram uma diminuição considerável de suas fontes de renda, pois foram dispensadas das casas onde trabalham. Enquanto outras tiveram de continuar trabalhando, sendo expostas no trajeto de ida e volta e no próprio local de trabalho - geralmente de pessoas da elite, que foram as primeiras infectadas no país. Durante uma pandemia, a burguesia prefere colocar pessoas e até mesmo suas próprias vidas em risco a ter de limpar sua própria sujeira, como bem pontuou Marcela Piloto no boletim n. 14 deste mesmo boletim. É imprescindível enfatizar que as mulheres negras são as principais vítimas dessa conjuntura.

O cenário atual apenas escancara a desigualdade que permeia toda a população, os recortes de classe, gênero e raça fazem com que a pandemia seja vivenciada de maneiras bem diferentes. Longe de ser uma “doença dos ricos”, a covid-19 se espalha pela população mais fragilizada, como as mulheres e, em especial, as negras e pobres. Num momento em que uma doença assola a todos, o trabalho que envolve cuidado se torna mais necessário, porém causa morte, uma morte seletiva, que tem sexo, cor e classe.

 

Alguns portais e aplicativos ajudam a reconhecer e denunciar a violência contra a mulher. Se estiver em situação de risco ou identificar alguém que esteja, utilize os links:

 

arte

Arte de Paula Cruz

 

1 Para mais detalhes, ver o relatório de 2018 do Fórum Econômico Mundial. Disponível em: <http://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2018.pdf>.

4 Sobre o assunto, ver o relatório do Cofen e da Fiocruz, disponível em: <http://www.cofen.gov.br/perfilenfermagem/blocoBr/QUADRO%20RESUMO_Brasil_Final.pdf>.

 


Expediente

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