Ano 01 nº 03/ 2020 - Ensaio Sobre um Pesadelo em Meio à Pandemia - Gustavo Rolim

MARIA ANTONIA

EM QUARENTENA

Boletim do GMARX-USP | São Paulo | Ano 1 nº 3 | Março 2020


A conjuntura...

ENSAIO SOBRE UM PESADELO EM MEIO À PANDEMIA

 

Gustavo Rolim

Historiador da UFRGS

Costuma-se dizer, sobre sonhos, que nunca lembramos de seu início, apenas do desenrolar da história criada pelo nosso subconsciente. Algo semelhante ocorre com a relação da nossa população com o governo federal. Pela enésima vez, acusa-se que Bolsonaro foi “longe demais”, que ultrapassou a cota, e que agora sim está desmascarado perante a população brasileira. Em que pese o fato de uma pandemia ser capaz de alertar a população, com capilaridade suficiente para que o conjunto de nossa sociedade possa comparar, por um lado, as necessárias políticas de isolamento adotadas por municípios e unidades da federação e, por outro, as manifestações estapafúrdias de nosso chefe de Executivo, nem tudo está resolvido. Precisamos retomar o início e as origens deste pesadelo.

Bolsonaro-Mascara

O discurso da esquerda brasileira, considerando aquela que já esteve no governo e aquela que lhe foi oposição, abandonou de vista em todos os aspectos algo fundante e fundamental para o debate político marxista: a processualidade. Não se trata aqui de sugerir que o debate político, a Realpolitik e mesmo o “boca a boca” com a população brasileira esteja pautado nas mais altas palavras de ordem e na mais rígida teorização – algo ridículo. Trata-se de ser coerente e honesto com o momento histórico que vivemos. E tudo deve remontar (no mínimo) a 2016.

A avalanche direitista iniciada pelos derrotados nas eleições de 2014 e infladas pela formação do partido togado sediado em Curitiba reduziu as nossas instituições democráticas a pó. O “pacto social”, tão problemático e cheio de contradições aberto nos anos 1980 e consolidado em 1988, não pode mais servir de parâmetro para as relações desta república nascente (ou agonizante). Que é tarefa da esquerda a defesa da constituição e dos sistemas públicos de educação e saúde, isso não está em discussão. Apenas trata-se de percebermos que: (i) sofremos uma derrota histórica entre 2016 e 2018 (digo apenas uma, pois o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro não podem ser vistos de forma separada); (ii) desde então abrimos uma nova etapa histórica, que deve ser compreendida em sua totalidade – sob a pena de não tomarmos conhecimento das tarefas históricas que se colocam à nossa frente.

Primeiramente, temos que ter em conta que o Golpe de 2016, consolidado na forma de um impeachment, teve, por si só, uma forma processual. O resultado apertadíssimo das urnas foi conquistado pelo Partido dos Trabalhadores a partir de discursos fortes e contundentes da então candidata à reeleição Dilma Rouseff. A voz das ruas havia sido escutada, a mobilidade urbana e o direito à cidade seriam alvos do governo; não haveria nenhuma mudança nos direitos trabalhistas e previdenciários. Uma vez eleita, a plataforma de governo caracterizou-se em aplicar cortes severos e ajustes econômicos fortíssimos com a justificativa de não realizar as (contra)reformas estabelecidas pelos seus “aliados”. O grande problema é que o “aliado” era um Cavalo de Troia. O PMDB procurou se estabelecer como uma garantia da continuidade do programa "Aécio", just in case. And it was the case, e partiram para uma pressão oposicionista ainda dentro do governo. Quanto mais apertavam o PT, mais ele trazia para dentro de sua gestão figuras da oposição, conservadores e apertavam o garrote na classe trabalhadora. Chegamos em um momento que o governo apresentava ministros propostos pelo PSDB, partido que fazia cartas elogiando o PT por incorporar e aplicar o seu programa. Após a eleição, nos deparamos com Dilma, montada em um dragão, atacando seu próprio cavalo, como desenhado de forma brilhante pela cartunista Laerte.

Entretanto, as políticas então aplicadas não foram o suficiente para os anseios da burguesia brasileira, inflada pela sua capacidade de, pela primeira vez em muito tempo na história do Brasil, realizar atos massivos com teores reacionários – tática estudada com a direita terrorista venezuelana e aplicada ao Brasil em atos que teriam vida em 2015 e 2016, já com a bandeira do Impeachment.

A resistência ao Golpe mostrou a fragilidade, a incapacidade e a leviandade. Por um lado, amplos setores da esquerda seguiam, ou iludidos com características aparentemente progressistas da Lava Jato, ou, ainda, recusavam-se a aceitar que um golpe de estado poderia ocorrer no país. Por outro lado, a tão propalada “capilaridade social” do PT e seus aliados nunca foi utilizada. O coordenador geral do MST, que havia prometido uma guerra civil caso Aécio Neves ganhasse as eleições, em uma perspectiva de ruptura institucional, não repetiu a ameaça.

O Golpe se consolida, Temer sobe ao governo e sua posse tem ares tanto de uma grande trama elaborada, quanto de um grande acidente histórico que poderia ter sido evitado. A camarilha golpista organizada por Temer e PMDB tinham uma tarefa histórica: realizar contrarreformas suficientes para garantir os lucros de uma parcela específica de nossa burguesia. Frigoríficos, construtoras, estatais mistas e empresas nacionais de tecnologia e informática foram, nos últimos 10 a 15 anos, a “burguesia nacional” dos “projetos de nação” do PCdoB e do PT (estes ainda dependentes do financiamento internacional), mas que, entretanto, ganharam alguma independência usando o montante dos trabalhadores do país, isto é, dinheiro público, BNDES (e cabe elogio ao PT por usar isso como contrapartida a a ajuda internacionalista em Venezuela e Cuba). Todavia, outras, que não detinham esse acesso, grandes comerciantes de varejo, empresas de serviços e bancos (estes procurando acossar o papel e as isenções dadas às empreitadas estatais), altamente dependentes do arrocho da classe trabalhadora, em parceria com a milícia e o narcotráfico, queriam reformas muito mais contundentes e acesso ilimitado ao mesmo tipo (e até maior!) de transações econômicas e taxas de lucro. Desta forma, vimos já com Temer que as portas da institucionalidade começaram a ser abertas para figuras que representariam aquela direita bisonha que ocuparia o governo em 2019 – cortando a burocracia do centrão, subindo ao palco e proclamando-se dono do país e dos meios de governá-lo. A cereja do bolo dos descalabros golpistas (após as contrarreformas trabalhistas e previdenciárias), a PEC do teto de gastos, pode ser vista como uma das grandes destruidoras da Nova República. Realizou-se lei que, na prática, anula todo o componente social da Constituição de 1988. Há pouco tempo atrás dizia-se que levaríamos alguns anos para realmente perceber o estrago causado por tal PEC. Hoje, em momentos de pandemia, começamos a ter esta noção... mas, dos vinte planejados, estamos recém no terceiro...

Entretanto, nem tudo foram flores. O governo de Temer tinha legitimidade frágil. As greves de 2017 e 2018, as maiores greves gerais em cem anos no Brasil, tiveram dois aspectos: se por um lado mostraram que a classe trabalhadora poderia complicar as aplicações de contrarreformas e ameaçar seriamente a estadia de Temer no Palácio do Planalto (relembremos os pedidos de impeachment, os discursos de “eu fico” e demais acontecimentos); por outro lado, também mostraram aos donos de nosso país que outra figura, mais legítima e mais dura em todos os aspectos seria necessária para enterrar de vez os entraves à acumulação de capital sem freios em nosso país.

Assim, para manter o aspecto de legalidade, as eleições de 2018 nunca estiveram ameaçadas. Do ponto de vista dos detentores do poder e dos vitoriosos de 2016, existia a necessidade de referendar o Golpe através de eleições gerais (uma vez que nas eleições municipais já havia sido atingido este objetivo). O que não havia era um candidato certo que derrotasse, então, o ex-presidente Lula. Sua prisão selou o favoritismo ao grande caudatário (e maior entusiasta) da escalada direitista de 2014-16, Jair Bolsonaro. Uma das situações mais atípicas e sem precedentes ocorreu em nosso país: a prisão ilegítima de um candidato à presidência; uma eleição que ocorreu na normalidade interna usual ao mesmo tempo em que sofria uma manipulação externa de grandes empresas, através das já famosas fake news, mas também de parcela da grande mídia e mesmo de sérias ameaças do alto comando militar; somado ao maior número de abstenções já vistas em uma eleição da Nova República. Assim consolidou-se, em 2018, 2016. Parece que cada uma das contradições presentes na nascença da Nova República (centrão, militares, paramilitares, direita tradicional e radicalizada, afastamento da população do jogo democrático) voltou para cravar-lhe uma facada em seu corpo já moribundo.

Quando se realizou as matérias jornalísticas do The Intercept Brasil, conhecidas como #vazajato, mais do que evidentes, ficaram comprovadas a formação do partido togado, suas relações com forças que almejavam o poder político do país e sua interferência explícita na campanha eleitoral.

OReiEstaNu

Novamente recorro à Laerte: o rei estava nu... mas isto pouco importa em terra de cego. Estamos no quarto ano de um segundo governo ilegítimo em nosso país…

2016 marcou o início de uma derrota histórica. 2018 a consolidou. Uma derrota histórica caracteriza-se por um refluxo de médio a longo prazo na correlação de forças, perdas de direitos a níveis de terra arrasada, entre outras características. A falta de entendimento de que não estamos mais na Nova República foi um dos fatores a estabelecer as derrotas nas lutas de 2019. Por muito tempo acostumamos a realizar reivindicações esperando obter do Estado auxílio ou contrapartida. A greve dos petroleiros foi a melhor sucedida experiência de movimentação popular recente, pois fugiu dessa dicotomia, acabando por desenvolver um (semi)projeto de Nação (mesmo que nos limites regidos pela sua categoria e pelas suas reivindicações). Senão, vejamos: o preço do combustível está intimamente ligado à produção e desenvolvimento nacional (radicalmente alterado após mudanças na política de preços da Petrobrás ainda sob o governo Temer); a queda do custo liga intimamente as reivindicações da categoria ao dia a dia do povo brasileiro; e, finalmente, a defesa da Petrobrás naquele momento (e talvez em todos) leva à abertura de mais empregos e melhoria da qualidade dos atuais trabalhadores da estatal. Em apenas um movimento, procurava-se resolver problemas da Nação, do povo e do trabalhador. Nessa ordem. Somado ao fato de que a movimentação destes trabalhadores causava impacto econômico real. As movimentações das demais categorias ainda existentes que não se guiarem por uma demonstração de melhoria na vida de toda a população e apresentação de seu projeto de Nação ao conjunto da sociedade brasileira muito possivelmente estarão fadadas ao fracasso.

Antes da pandemia, certas perguntas pairavam no ar: o governo Bolsonaro-Guedes-Moro está, já na destruição do estado democrático de direito, em que nível de sua destruição/reestruturação? Quais as reais mudanças da superestrutura estatal que podem vir a alterar a nossa própria relação social, entre a sociedade, as classes e o próprio aparato estatal? Não apenas isto, outra questão importantíssima tomou conta dos nossos debates: o do fascismo. Bolsonaro é fascista? Nosso país é fascista? O regime de governo é fascista? Se somarmos as perguntas acima, vemos que temos urgentemente que responder a estas questões. Qual a demora para a instalação de um regime fascista?

A crise que se deflagrou por conta da pandemia já se apresenta como a primeira crise social dentro dos moldes deste novo momento histórico, e não mais da Nova República. Nunca desde 1930 (início da Era Vargas), atuou-se de forma tão federalista. Na prática, uma comitiva de governadores, Rodrigo Maia e STF assumiram as rédeas do país. Bolsonaro, também não sabendo como entrou neste momento (tal qual não se costuma recordar do início de um sonho), tomou a única medida política possível em seu ideário fascista: negação e promoção do caos.

Não existe, como bem salientou o professor Lincoln Secco, a possibilidade de Bolsonaro governar sem caos. O caos social e mental gerado pelas suas ações e pronunciamentos é a própria estrutura de sua autoridade. Entretanto, diante de uma pandemia, a população não quer caos, quer ordem. Bolsonaro encontra-se quase que completamente isolado em sua cadeira: e, pela primeira vez desde que surgiu nacionalmente nos holofotes nacionais, na posição defensiva. Ele deve defender o contrário do que todos defendem, ou então não será mais uma figura de aparência antissistema. Ele não poderá não convocar atos de rua, ou então não será mito. Conseguiu transformar a pauta humanitária em pauta política. Centrais sindicais, organizações populares e de esquerda alertam, como alertariam normalmente, para os riscos de classe da pandemia. Entretanto, Bolsonaro conseguiu fazer com que esta defesa da vida tenha contornos de projeto político e projeto de Nação. A defesa do SUS atingiu um novo patamar e novamente exigimos a destruição da PEC do Teto de gastos.

As armadilhas já se desenvolvem enquanto as movimentações seguem. Os capítulos anteriores da história brasileira sugerem fortemente que quando os estados possuem tal liberdade perante o governo federal, o próximo chefe de Executivo a tentar centralizar novamente a administração estatal pode acabar por precipitar banhos de sangue. E Bolsonaro também segue aproximando militares favoráveis a si em seu governo enquanto afasta as outras facções. Até mesmo saiu às ruas para cumprimentar comerciantes.

E quanto à esquerda? Com a Nova República já em seu quarto ano de morte, vejo com certo lamento que diversos setores progressistas encontrem no pacto social montado pelos militares nos anos 1980 a saída para a atual crise. Urge realizarmos em conjunto uma interpretação compreensiva do período, analisarmos as causas internas e externas do Golpe (as novas políticas de interferência estadunidense, por exemplo), como se deu a ascensão desta nova classe gerencial do estado brasileiro e as facetas tupiniquins do fascismo. Temos de saber como chegamos a este novo momento histórico, para alinhar nossas pautas de construção da Nação: não como mero arremedo da Nova República, mas para já deixarmos em gérmen as novas estruturas democráticas que devem nascer deste pesadelo ensandecido que tem sido o Brasil na transição de períodos históricos.

 


Expediente
 

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