Ano 01 nº 33/ 2020: Crimes Sem Rastros - Vivian Ayres

Boletim 33


A conjuntura ...

 

CRIMES SEM RASTROS: UM PAÍS SEM PRESENTE E SEM FUTURO

 

Vivian Nani Ayres

Doutora em História Econômica - USP

 

No dia 5 desse mês, o governo federal decidiu mudar o formato de divulgação dos dados epidemiológicos da pandemia de Covid-19, chocando todo o país – ou, pelo menos, a parte dele que ainda conserva um pouco de humanidade. Não bastassem as subnotificações e a falta de testes desde o aparecimento dos primeiros casos, criando uma situação na qual nunca saberemos, de fato, o número de atingidos pelo vírus e a quantidade real de mortes que ele causou, o governo considerou razoável escamotear ainda mais os crimes que vem cometendo contra a população brasileira. Desnecessário tecer comentários, o fato fala por si.

No entanto, essa política de esconder os crimes que vêm sendo cometidos através da manipulação de dados ou da não elaboração deles não se restringe apenas à pandemia atual, ela é muito mais profunda e atinge diversos setores. Em função da dureza dos números e da nossa falta de familiaridade com eles, esse tema não tem sido tratado com a atenção que merece. A verdade é que muitas informações estatísticas importantes sobre o país só estão disponíveis até 2016 – “coincidentemente”, o ano do nosso mais recente golpe de estado.

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Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/gestao-bolsonaro-acumula-ao-menos-13-medidas-para-reduzir-transparencia-oficial.shtml

 

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Fonte:https://epoca.globo.com/brasil/brasil-destaque-no-mundo-por-esconder-dados-de-mortes-por-covid-19-oms-cobra-transparencia-24468531

 

Um exemplo bem atual foi a decisão do Bozonazi de retirar do ar os dados sobre as violações de direitos humanos praticadas por policiais do balanço do Disque 100.1 Dados estes que mostravam a brutalidade policial e a sua principal vítima, a população negra. Também não existem mais dados sobre o trabalho infantil ou o trabalho escravo no site da Secretaria do Trabalho do atual Ministério da Economia. Há meses, a página que deveria conter essas informações está indisponível. Segundo matéria publicada no portal G1, em setembro de 2019 – uma das poucas fontes de informação a respeito do tema –, o número de fiscalizações de trabalho infantil foi o menor registrado nos últimos 10 anos.2 O mesmo se passa com as estatísticas a respeito do desmatamento da Amazônia e com uma das fontes mais importantes sobre a sociedade brasileira, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, que a partir de 2017, traz dados fragmentados e organizados de forma quase incompreensível.

 

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Fonte: http://www.novoeste.com/index.php?page=destaque&op=readNews&id=37800

 

Ou seja, vivemos uma situação em que as estatísticas não são sequer produzidas, e quando o são, não são divulgadas. Mas qual o grau de gravidade dessa questão? Por que as estatísticas são tão importantes? Os principais motivos são elencados por todos aqueles que se detêm sobre elas para refletir sobre a realidade e propor as mudanças necessárias. Primeiramente, o mais óbvio: para que se saiba o que acontece no país, identificando os fenômenos em detalhes. Por exemplo, sabemos que o Brasil é um país violento, mas a 13ª edição do Anuário da Violência, divulgada em 2019 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), – estudo que trabalha com os dados dos registros policiais sobre criminalidade, o sistema prisional e os gastos com segurança pública –, mostrou que 75,4% das vítimas da violência policial no Brasil são negras.3

Uma análise sistemática dos dados apresentados nas Pesquisas Nacionais por Amostras de Domicílio (PNAD) do IBGE mostra, por exemplo, que a população negra e parda, além de se concentrar nas faixas mais baixas de renda, não consegue envelhecer, ao contrário da população branca: nascem mais pessoas negras e pardas do que pessoas brancas, mas, por volta da faixa etária dos 30 anos de idade, as curvas começar a se inverter, mostrando que grande parte das pessoas que envelhecem é branca e de alta renda. Se nos detivermos sobre os dados de saúde – comorbidades e mortalidade – veremos que as mulheres negras morrem predominantemente por problemas de saúde facilmente tratáveis, que praticamente não atingem as mulheres brancas, deixando claro o descaso a que as mulheres negras são submetidas. Ou seja, através da análise dos dados estatísticos, o racismo estrutural brasileiro é incontestável. Os números falam por si.

Esses exemplos poderiam se estender a diversas áreas da sociedade brasileira, mas não cabe aqui detalhar todas, esses casos bastam para indicar a importância da elaboração e da análise de dados estatísticos para destrinchar as opressões e as violências cotidianas sofridas por grande parte da população. Escondê-las é tão criminoso quanto cometê-las.

Por outro lado, e como decorrência do primeiro motivo, essas informações são fundamentais para que se elabore políticas públicas que revertam essas realidades. Não é possível transformar sem que se conheça em detalhes o que se passa. No entanto, os dois lados da questão indicados – identificação e resolução – claramente não são problemas que interessam aos governos pós-golpe de 2016, muito ao contrário, interessa a eles, claramente, o extermínio dos setores mais vulneráveis da população em favor do aumento dos lucros das empresas e do capital financeiro. Esse é o elemento mais básico da cartilha neoliberal e o principal motivo de luta que deveria unir a esquerda brasileira.

Mas as consequências dos crimes do governo Temer e, sobretudo, do governo Bozonazi, não se restringem apenas ao presente, elas se estendem também ao futuro, ou melhor, ao passado do futuro. Além de levar a população aos limites mais baixos da existência humana no presente, esses governos, ao não elaborar e divulgar as estatísticas, apagam seus crimes da memória das gerações futuras. Dessa forma, eles não são responsabilizados pelas atrocidades que cometem e sua narrativa oficial se mantém como a única voz a descrever a realidade – ou a falsificação dela. Quando os historiadores e demais pesquisadores do futuro forem olhar para o seu passado, não encontrarão as provas de tais crimes.

O extermínio das populações negra e indígena, é sabido, remonta ao período colonial, antes mesmo da constituição do Brasil enquanto país – não obstante, é igualmente conhecido o fato do quanto vem se intensificando nos últimos anos. O PT, por exemplo, tem sido e será responsabilizado por suas falhas em relação a isso, pois cometeu tais crimes, mas não impediu que as estatísticas fossem feitas. Para regozijo de seus detratores e vergonha de seus apoiadores, os dados estão lá como provas irrefutáveis, disponíveis para o presente e para o futuro.

No contexto atual, em que o período mais violento e brutal da nossa história, a ditadura militar, vem sendo esvaziado de seu conteúdo e resgatado como um passado glorioso, ao qual é necessário retornar, fica cada vez mais claro que a história é escrita no presente. A ideia de que durante a ditadura não existia corrupção, desigualdades nem violência, embora pareça absurda aos olhos dos mais atentos, está arraigada no senso comum, pois esses fenômenos foram escondidos com a força das armas e não ficaram registrados na memória coletiva. Quando nossa humanidade sofreu um golpe fatal na votação do impeachment da presidenta Dilma, na Câmara dos Deputados, com a fala do atual presidente dedicando seu voto a um dos maiores assassinos da história do Brasil, a maior parte da população não se deu conta da gravidade da situação. E não se trata aqui de passar pano para fascista, mas não é possível afirmar que todos os apoiadores do impeachment e eleitores de Bolsonaro – embora mergulhados em ignorância e preconceito – tinham plena consciência do crime que estavam cometendo.

 

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Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/06/14/como-a-ditadura-militar-tentou-esconder-epidemia-de-meningite-no-brasil.htm?cmpid=copiaecola

 

Nós perdemos a batalha pela memória da ditadura, pois nunca conseguimos reverter o quadro pintado durante aquele período na memória coletiva, e pouco mais de 30 anos depois, o representante mais chulo e grotesco dessa história chegou ao poder pelo voto. Agora, ele reescreve a história, mais uma vez, apagando, sem que ninguém perceba, o passado das gerações futuras. Sabemos que o fascismo vai sair do primeiro plano, pois ele não dura com tanta intensidade por muito tempo, mas sabemos também que ele não morre jamais. Basta que o capital entre em crise, para que ele seja mobilizado e retorne com toda força que lhe é característica. E, mais uma vez, não teremos provas dos crimes que ele cometeu, pois eles estão sendo apagados da memória coletiva e não ficarão registrados dos anais da história, para que possam ser resgatados por algum historiador.

Não são só números. São vidas, são provas de crimes, são armas de luta que estão sendo jogados na lata do lixo da história.

 

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Fonte: https://www.conversaafiada.com.br/brasil/bolsonaro-volta-a-exaltar-o-sa… 

 

1 GUIMARÃES, Juca. Violação de direitos de negros cresce 17% e governo esconde dados sobre violência policial. Yahoo Notícias, 15 ju. 2020. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/violacao-de-direitos-de-negros-cresce-17-e-governo-esconde-dados-sobre-violencia-policial-181456992.html>.

2 CAESAR, Gabriela. Nº de fiscalizações de trabalho infantil é o 2º menor registrado nos últimos 10 anos. G1, 1 set. 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/09/01/no-de-fiscalizacoes-de-trabalho-infantil-e-o-2o-menor-registrado-nos-ultimos-10-anos.ghtml>.

3 GUIMARÃES, Juca. Violação de direitos de negros cresce 17% e governo esconde dados sobre violência policial. Yahoo Notícias, 15 ju. 2020. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/violacao-de-direitos-de-negros-cresce-17-e-governo-esconde-dados-sobre-violencia-policial-181456992.html>.

 


Expediente

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