Ano 01 nº 41/ 2020: A Generalização da Informalidade: uberização do trabalho no Brasil e no mundo - Adriana Marinho e Marcela Piloto

boletim 41


Mundo acadêmico ...

 

A GENERALIZAÇÃO DA INFORMALIDADE: UBERIZAÇÃO DO TRABALHO NO BRASIL E NO MUNDO

 

Adriana Carneiro Marinho

Graduanda em História - USP

 

Marcela Piloto de Proença

Graduanda em História - USP

 

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade.

(Walter Benjamin, Teses sobre o conceito da História)

 

Com o advento da pandemia de Covid-19, bem como da necessidade de isolamento social, a deflagração dos serviços de entrega enquanto uma atividade essencial – aliada às recentes greves dos entregadores de aplicativo – colocou na ordem do dia o debate sobre a chamada “uberização do trabalho”. Outros elementos vêm contribuindo para isso, tais como as discussões sobre a crise no mundo do trabalho, o aumento do desemprego e o recrudescimento da precarização.

Tendo isso em vista, em junho desse ano, o GMarx organizou um debate com Ludmila Costhek Abílio sobre o fenômeno da uberização, tema ao qual a pesquisadora vem se dedicando a partir de questões levantadas em seu trabalho de doutorado sobre as revendedoras de cosméticos no Brasil. Ludmila Costhek é cientista social com graduação e mestrado pela Universidade de São Paulo e doutorado pela UNICAMP, onde atualmente vem desenvolvendo seu pós-doutorado sobre os motofretistas em São Paulo, junto ao Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit). Para compor a atividade, o GMarx nos indicou como debatedoras, e o professor Lincoln Secco como mediador. O debate foi realizado virtualmente, via transmissão ao vivo na página do grupo no Facebook, onde ainda pode ser acessado.

O presente texto é uma tentativa de reconstituição das principais questões discutidas no referido evento, bem como de uma sistematização do trabalho da pesquisadora, tendo como base dois de seus artigos que, em alguma medida, sintetizam suas pesquisas acerca do tema que aqui nos interessa: “Uberização e viração: mulheres periféricas no centro da acumulação capitalista”, publicado no ano de 2018 pela revista Margem Esquerda e “Uberização: a era do trabalhador just-in-time?”, publicado em abril de 2020 pela revista Estudos Avançados, do IEA-USP. Ademais, pretendemos ainda contribuir para a continuidade dessas reflexões, ampliando o leque de elementos a serem levados em conta, especialmente no que se refere às “novidades” trazidas pela a atual conjuntura.

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Cartaz de divulgação do debate com Ludmila Costhek Abílio

 

O trabalhador informal, o precarizado, o que faz bico, o autônomo, o subproletariado, o marginal... todos esses sujeitos são constituintes da formação da classe trabalhadora brasileira, ou seja, apesar de serem uma herança colonial, não são um resíduo, mas uma permanência deliberada e um destino do projeto político econômico da sociedade brasileira. É isso que nos mostra o texto O Sentido da informalidade de Lincoln Secco, um balanço da historiografia brasileira – em especial da uspiana – acerca da informalidade: como ao longo do tempo o trabalhador informal e suas categorias adjacentes foram interpretadas pelos pensadores brasileiros.

No Brasil, as conquistas da classe trabalhadora nunca puderam ser compartilhadas com todos os trabalhadores, o gigantesco exército de reserva de mão de obra – que atinge hoje números extraordinários – sempre conviveu, em plena harmonia (pelo menos para o capital) com o trabalhador registrado, assalariado. No período colonial, “o trabalho livre urbano concorria com o de escravos de ganho e as ligações entre livres, escravizados e senhores fluíam em inúmeras formas. Escorriam pelos interstícios sociais” (SECCO, 2020). Todos os trabalhadores hoje e ontem, escravizados, informais, assalariados ou registrados, fizeram e fazem parte de um mesmo todo, uma mesma realidade social.

Ao nos debruçarmos hoje sobre as transformações no mundo do trabalho (afinal, ainda faz sentido tal categoria?) e na própria classe trabalhadora, que estamos assistindo desde o começo do século, é preciso atentar-se para não descartar o passado histórico e compreendê-las como um processo inteiramente novo. Faz-se necessário, portanto, compreender o que é o fenômeno da uberização em âmbito global e de que forma ele se relaciona com as relações de trabalho informal existentes no Brasil e na periferia do capital.

 

Uberização do trabalho: características norteadoras

 

De acordo com Ludmila Costhek Abílio, verifica-se ao longo dos últimos anos uma tendência no mundo do trabalho que nos permite pensar em uma consolidação dos trabalhadores como trabalhador just in time (ABÍLIO, 2020). Esse fenômeno social é chamado pela autora de uberização, uma vez que foi por meio da empresa Uber que essas relações de trabalho ficaram mais visíveis aos olhos da sociedade civil. No entanto, o fenômeno da uberização não se restringe apenas aos trabalhadores da Uber – e nem mesmo aos entregadores de aplicativo. Abílio argumenta que essa tendência permeia o mundo do trabalho de maneira generalizada, contemplando, em âmbito global, diversas ocupações, setores da economia, níveis de qualificação e segmentos da classe trabalhadora.

Ademais, conforme já sinalizamos, a uberização traduz-se como um processo que, muito embora contenha em si mudanças qualitativas importantes, está ainda estreitamente ligado ao processo histórico da informalização do trabalho. Nesse sentido, não devemos compreender o fenômeno enquanto, por exemplo, um mero resultado da inovação tecnológica, como querem algumas análises, mas antes, como uma “generalização de características estruturantes da exploração do trabalho na periferia, que foram comumente obscurecidas e tratadas como marginais e agora revelam mais claramente sua centralidade no modo de produção capitalista” (ABÍLIO, 2020). Posto isso, cabe então questionar: quais são precisamente as características peculiares da uberização? Ludmila aponta quatro elementos-chave para o entendimento do conceito, que demonstraremos a seguir.

Em primeiro lugar, temos que o trabalhador passa a ser uma espécie de autogerente subordinado e disponível de forma a viabilizar um trabalho utilizado e remunerado na medida exata da demanda – o que a cientista social afirmou, em nosso debate, tratar-se basicamente da realização do sonho do capitalista de que falava Marx em O Capital (isto é, o sonho de poder contar com o “trabalhador por encomenda”, inteiramente disponível ao trabalho e remunerado estritamente pelo que produz).

Ainda sobre esse ponto, é importante frisar que tal tipo de relação de trabalho implica que seja transferida ao trabalhador uma parte do gerenciamento da produção, isentando as empresas de uma série de custos e riscos. Naturalmente, esse gerenciamento permanece controlado e subordinado, com todas as regras do jogo – critérios de distribuição e valor da remuneração – ditadas e operadas pelas empresas, promovendo novas formas de disciplinarização e engajamento por parte dos trabalhadores, com vistas a aumentar sua produtividade (ABÍLIO, 2020). Com efeito, o trabalhador just in time não possui nenhum tipo de garantia no que diz respeito a remuneração e carga de trabalho, resultando na obrigação de cumprir extensas jornadas para atingir uma remuneração que seja suficiente à manutenção de sua sobrevivência. Por conseguinte, segundo a autora, “aquele hoje denominado empreendedor é na realidade o trabalhador solitariamente encarregado de sua própria reprodução social” (ABÍLIO, 2020).

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Por fim, uma das condições para a criação do trabalhador just in time é o poder de monopolização com o qual essas empresas próprias do chamado capitalismo de plataforma vêm contando. A autora demonstra que disso decorre, por exemplo, que milhares de motofretistas em São Paulo tenham que aderir a uma das três ou quatro empresas que dominam o setor na cidade, a fim de garantir sua sobrevivência.

Essa característica insere-se ainda no segundo elemento-chave proposto por Ludmila para a definição do fenômeno da uberização: as empresas mediadoras e o gerenciamento algorítmico. O poder de monopolização permite que, no lugar de várias empresas com número limitado de funcionários, haja um punhado delas contando com milhares ou milhões de trabalhadores plenamente disponíveis. A particularidade da tecnologia na uberização traduz-se numa situação em que o gerenciamento algorítmico eleva a outro patamar a capacidade de administração da informalidade por parte do capital. Nas palavras da autora, “o gerenciamento algorítmico conta com a possibilidade de cruzar e administrar uma ampla gama de dados em tempo real, pautar a atividade dos trabalhadores e ao mesmo tempo extrair das estratégias individuais novas definições e procedimentos” (ABÍLIO, 2020). Além disso, sabemos que a simples obtenção de dados dos milhões de trabalhadores e consumidores é por si só uma fonte de acumulação que alimenta o poder de monopolização das empresas, além de constituir um entrave à privacidade e, consequentemente, à capacidade de mobilização e resistência da classe trabalhadora frente a essa máquina de exploração.

Uma terceira característica desse processo seria aquilo que chamamos de crowdsourcing. O termo, cunhado em 2008 pelo jornalista Jeff Howe, propõe um novo patamar para antiga categoria outsourcing, terceirização em português, no qual a multidão (crowd) consiste na “nova fonte das terceirizações” (ABÍLIO, 2020). Compreendida muitas vezes sob o olhar positivo da economia compartilhada1, o crowdsourcing, na realidade, é a transferência do trabalho da empresa a dois conjuntos de “trabalhadores”: uma multidão de trabalhadores disponíveis quem aderem àquela atividade (o já referido trabalhador just in time) e uma multidão de consumidores vigilantes. Por um lado, esses trabalhadores disponíveis, que não são contratados ou selecionados para vaga, executam as tarefas sem qualquer garantia de direitos ou remuneração justa, assumindo, portanto, riscos e custos. Por outro lado, parte da vigilância, do gerenciamento e da avaliação sobre os trabalhadores é transferida para os usuários consumidores daquela empresa, que através das plataformas digitais, atuam como “colaboradores” ao avaliar a qualidade do trabalho realizado.

Essa dupla transferência de responsabilidade da empresa para os trabalhadores e consumidores, além de garantir as altas taxas de lucratividade da empresa (que não se compromete mais com nada), proporciona a valorização da marca (ABÍLIO, 2020), uma vez que a confiabilidade daquela marca foi atestada por uma multidão de consumidores (trabalhadores?). Portanto, ao tratarmos de uberização e, mais especificamente, do crowsourcing – que talvez pudéssemos aportuguesar para uma dupla transferência de responsabilidade, trabalho e gerenciamento – precisamos nos dar conta da flexibilização que rege esse tipo de trabalho, de forma que, cada vez mais, perde-se de vista as barreiras entre o que é trabalho e o que não é, fenômeno este que, apesar de não se uma completa novidade para o mundo do trabalho, traz novas complicações para se pensar a categoria trabalho, e uma “nova solução” (da ideologia neoliberal) a ser combatida: a chamada economia compartilhada.

Por último, o trabalhado amador e a generalização das características tipicamente femininas formam o quarto elemento do processo da uberização. Esse novo modo de informalização do trabalho tem como característica essencial a perda das formas do trabalho, isto é, o desmantelamento de suas características socialmente regulamentadas, como visto com o advento do crowdsourcing. Isto, no entanto, não é exclusividade da uberização, pelo contrário, esse novo cenário do mundo do trabalho generaliza caraterísticas que, antes, estavam associadas aos trabalhos tipicamente femininos e ao trabalho periférico. Assim, compreender essas formas de trabalho é indispensável para compreender o processo de uberização.

O termo amador refere-se àquele trabalho que, pela ausência de características socialmente estabelecidas acerca do que é o trabalho (regulamentação Estatal e mediações publicamente reconhecidas, por exemplo), não confere uma identidade profissional. Uma categoria de trabalho amador pesquisada pela autora, que envolve hoje centenas de mulheres brasileiras, é a de revendedoras de cosméticos. A revendedora de cosméticos possui tal maleabilidade e flexibilidade em sua atividade que, muitas vezes, combina essa atividade com outras remuneradas e as próprias fronteiras entre vida privada e trabalho se desmancham, formando uma grande nebulosidade, endossada pela falsa ideia de se poder “optar” pelos horários de trabalho e horários de lazer. Essas características são típicas do trabalho amador e também do trabalho tipicamente feminino e são o cerne da flexibilização do trabalho que vem ocorrendo de maneira global: indistinção do que é e do que não é trabalho, imbricações do ambiente doméstico no espaço de trabalho, impossibilidade de mediações publicamente instituídas na regulação do trabalho, indistinção das horas de trabalho.

O trabalho tipicamente feminino é aquele em que as funções exercidas pela mulher aparecem apenas como uma extensão de suas tarefas naturais, isto é, das tarefas domésticas e reprodutivas as quais acredita-se ser um destino biológico feminino. Sendo assim, trabalhos como o de uma costureira em domicílio ou de uma empregada doméstica são considerado trabalhos tipicamente femininos, uma vez que suas tarefas parecem ser exatamente as mesmas das tarefas “naturalmente” femininas, ou seja, aquelas da mulher-esposa/mãe/cuidadora.

Desde os princípios do capitalismo, houve um processo de naturalização e ocultamento do trabalho que chamamos de reprodutivo, que é, na verdade, o trabalho responsável pela reprodução e manutenção da vida da família, isto é, desde a procriação e criação de crianças até as tarefas da casa. Esse ocultamento permitiu sua não remuneração, condição que reproduz a submissão e exploração feminina no capitalismo.

Sendo esse trabalho reprodutivo invisível e não remunerado, as mulheres, em especial as mulheres proletárias, estiveram, desde os princípios do capitalismo, possibilitando a acumulação de quantias imensas de capital, e não é coincidência que, mesmo após uma inserção maior da mulher no mercado do trabalho, os trabalhos chamados tipicamente femininos continuem a ser vistos como extensão da tarefa doméstica submetendo-as, assim, às formas mais precarizadas de exploração do trabalho. Nesse sentido, é preciso compreender que as mulheres trabalhadoras têm frente a si uma dupla tarefa: a de reivindicar o trabalho reprodutivo enquanto trabalho produtor de valor e a de lutar contra as todas as características do trabalho flexibilizado.

Em realidade, é preciso se ter em conta que a viração é característica de grande parte da mão de obra brasileira, não apenas nos dias atuais, mas em toda nossa história. Segundo Ludmila “a identidade e a composição da classe trabalhadora brasileira passam menos pelos referenciais fordistas e mais pela viração: o autogerenciamento permanente e estratégias de sobrevivência em um mundo que é do trabalho – e não do emprego” (ABÍLIO, 2018).

O que vem acontecendo com a uberização é que esses fundamentos da flexibilização, historicamente constituintes do trabalho feminino e periférico, estão hoje se generalizado e atravessando todo o mundo do trabalho, de cima a baixo. Assim, aquela forma de acumulação periférica está, agora, no centro da cena e da acumulação capitalista. Isso não significa que o próprio trabalho da mulher periférica não esteja também à mercê das novidades da uberização. Os aplicativos de diaristas, por exemplo, mostram como a racionalização e a transferência de riscos também estão afetando essas mulheres, conforme apresentado no documentário Gig – uberização do trabalho.

 

A conjuntura: uberização e pandemia

 

Conforme discutimos com Ludmila Costhek Abílio no debate promovido pelo GMarx, falar sobre a uberização do trabalho no momento em que vivemos implica na denúncia das condições de trabalho cada vez mais degradantes dos entregadores de aplicativo, categoria que vem trabalhado mais, e sendo menos remunerada, para cumprir uma função crucial no combate à pandemia, que é garantir o isolamento social até onde ele pode chegar – ou até onde o capital permite. Isso é o que demonstra uma pesquisa coordenada por membros do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), dentre os quais Ludmila Costhek: 60% dos entregadores de aplicativo entrevistados responderam que tiveram diminuição de salário em relação ao período anterior à pandemia, e 27,6% disseram que o salário se manteve basicamente o mesmo, apesar do boom na demanda por esses serviços – como era de se esperar, o número de entregas aumentou consideravelmente nos últimos meses. Em outras palavras: 89,7% dos entrevistados não tiveram aumento de salário apesar do aumento na carga de trabalho.

Em meio a esse estado de coisas, os entregadores têm se organizado para reivindicar melhores condições de trabalho e remuneração para a categoria. No dia 1° de julho, realizaram uma greve inédita em várias cidades do Brasil, por meio da qual pediam mais transparência no que tange às formas de pagamento adotadas pelas empresas, além de aumento dos valores mínimos das entregas, mais segurança e abolição dos sistemas de pontuação, bloqueios e exclusões injustificadas.

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Foto: Caio Guatelli. Fonte: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/um-mes-dentro-do-grupo-dos-entregadores-antifascistas-politica-solidariedade-e-empoderamento/

 

Sem nenhuma resposta das empresas, para além de justificativas e defesas utilizando dados questionáveis2, os entregadores organizaram um segundo breque, no dia 25 de julho. O silêncio das plataformas persiste, mas os entregadores ganharam voz. Merece destaque aqui a liderança de Galo3 (Paulo Lima), ativista do movimento Entregadores Antifascistas, que vem divulgando, nas ruas e redes sociais, a realidade do entregador, denunciando os inúmeros abusos cometidos pelas empresas plataformas e chamando a categoria para reconhecer seus direitos e reivindicar condições melhores de trabalho.

Outra faceta da uberização do trabalho para a qual devemos nos atentar na atual conjuntura diz respeito ao trabalho remoto, ou home office. Isso porque a tática de choque levada a cabo em momentos de guerra para aprovar medidas que em outros tempos sofreriam resistência pode ser utilizada em diversas instâncias na crise sanitária em que vivemos. A possível generalização do home-office torna fundamental a discussão sobre quais são as consequências desse regime de trabalho para a classe trabalhadora.

O teletrabalho parece ser um bom exemplo de uberização porque não necessariamente diz respeito a trabalhadores não qualificados e periféricos – como havíamos mencionado, o fenômeno da uberização é uma tendência generalizante no mundo do trabalho. Cabe enfatizar, portanto, que Ludmila insere o trabalho remoto nessa perspectiva, ao elegê-lo como caso emblemático no que se refere à prática das empresas de transferirem parte do gerenciamento da produção aos trabalhadores, eliminando riscos e custos (ABÍLIO, 2020). Ocorre que, para além disso, o teletrabalho pode ser bastante lucrativo às empresas tendo em vista que, no lugar do relógio de ponto, o controle do trabalho se dá pelo cumprimento de metas, aumentando substancialmente a produtividade do trabalhador.

Ainda sobre essa questão, discutida de forma mais aprofundada no nosso debate, Ludmila coloca que a Reforma Trabalhista cumpriu um papel preponderante ao “formalizar a informalidade”. De acordo com a cientista social, a Reforma é refinada e criou um cardápio de opções ao empregador. No que se refere ao home office, ela legaliza que a empresa não é obrigada a arcar com os meios de trabalho – equipamentos e estrutura adequada – além de não responsabilizá-la pelos possíveis acidentes e riscos aos quais o trabalhador está suscetível. De forma geral, o que parece é que a pandemia do novo coronavírus e o decorrente isolamento social aceleraram tendências já em curso no mundo do trabalho, tornando ainda mais urgente a reflexão sobre o tema.

Essas flexibilizações nas relações de trabalho – precarização, inserção de plataformas digitais, trabalhador just-in-time, terceirização, uberização –, têm sido interpretadas, em debates dentro do marxismo, como uma crise da sociedade do trabalho e, ainda, como uma crise do valor4. Tais pensadores acreditam que valor e trabalho são categorias em crise no mundo atual e que não são mais os protagonistas na análise da nossa sociedade. Entretanto, como se pensar em uma perda de centralidade do trabalho em uma sociedade em que se trabalha cada vez mais?

O debate colocado é relevante e, como afirmou Ludmila durante sua exposição, possui consequências políticas importantes. Aqui, na periferia do capital, os referenciais fordistas de emprego e assalariamento foram sempre mais um horizonte que uma realidade e, no entanto, mesmo como horizonte acabaram por ocultar todo um mundo do trabalho que não correspondia a essas referências – colocando, portanto, a informalidade como um resíduo, uma exceção. No Brasil, a exceção é a regra e a informalidade é constituinte de nossa sociedade. Portanto, o que está em jogo aqui é, para além de um debate teórico, um debate político: como vamos interpretar o trabalho informal no modo de produção capitalista? Afinal, como afirma Lincoln Secco no encerramento de seu texto: “Não é tão difícil reconhecer a informalidade que nos uniformiza. Difícil é conferir-lhe sentido” (SECCO, 2020).

Se, então, principalmente nos países centrais do capitalismo se fala hoje em crise do trabalho, isso é, na realidade, o reflexo da periferização das relações de trabalho. Talvez fosse mais preciso, então, falar em crise do emprego ou dos referenciais fordistas de trabalho, uma vez que na periferia a viração e a informalidade estiveram sempre presentes, fosse na forma da revendedora de cosmético, no ambulante, no bóia-fria ou no rappi. Se hoje a acumulação capitalista periférica está também no centro da acumulação capitalista, isso significa apenas que, na disputa capital-trabalho, nós estamos perdendo.

 

1A economia compartilhada que é, por definição, uma nova organização do trabalho com o objetivo de construir valores de uso comuns ao invés de privados, abarca, em muitos casos, o trabalhador uberizado. Sendo assim, a pessoa que decide não comprar um carro, pois pode utilizar o uber, é muitas vezes compreendida como uma colaboradora dessa nova organização do trabalho, supostamente mais sustentável e horizontal. O que não é visto, entretanto, é que existe um trabalhador precarizado nessa relação.

2 A plataforma Ifood publicou, em resposta ao breque, texto “Abrindo a cozinha”, sobre a relação da empresa com os entregadores. O texto foi comentado por Galo, liderança do movimento Entregadores Antifascistas. Cf.: <https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/07/01/em-meio-a-greve-ifood-divulga-texto-no-app-sobre-relacao-com-entregadores.htm> Acesso em: 6 jul. 2020

3A Intercept Brasil publicou, em 10 de junho de 2020, um vídeo apresentando Paulo Lima, sua organização e as reivindicações dos Entregadores Antifascistas. Disponível em :<https://www.youtube.com/watch?v=iTVhpgxH8dY>. Acesso em: 6 jul. 2020

4 A crise do valor é uma teoria elaborada por alguns estudiosos, dentre eles Robert Kurtz, e consiste na ideia de que a atual crise do capitalismo não é apenas uma outra crise de superprodução, mas que chegamos a um ponto no qual existe uma contradição estrutural entre produtividade material, isto é a mecanização cada vez mais eficiente do trabalho, e a redução do trabalho (humano) nas atividades produtivas - derivada dessa própria tendência de substituir o trabalhador pela máquina. Sendo assim, o valor de troca (que é, segundo a teoria marxista, determinado pela quantidade de tempo socialmente necessário para produção de determinado bem) não mais seria o mediador das relações de produção. Essa crise também é caracterizada pela perda de centralidade do trabalho nas sociedades capitalistas.

 

Referências

ABILIO, L. C.. Uberização e viração: mulheres periféricas no centro da acumulação capitalista. Margem Esquerda, v. 31, p. 54-61, 2018.

ABILIO, L. C.. Uberização: A era do trabalhador just-in-time?. Revista Estudos Avançados (online), 2020.

OLIVEIRA, Felipe. Artigo: iFood lança texto para rebater críticas dos entregadores em greve. Tilt UOL, 01 jul. 2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/07/01/em-meio-a-greve-ifood-divulga-texto-no-app-sobre-relacao-com-entregadores.html. Acesso em: 06 ago. 2020.

SECCO, L. O sentido da informalidade. A terra é redonda, 27 abr. 2020. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-sentido-da-informalidade/. Acesso em: 21 jun. 2020.

SOUZA, Felipe; MACHADO, Leandro. Artigo: Coronavírus – entregadores de aplicativo trabalham mais e ganham menos na pandemia, diz pesquisa. BBC, 07 mai. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52564246. Acesso em: 06 ago. 2020.

Uberização do trabalho. Live com Ludmila C. Abílio, Lincoln F. Secco, Adriana Marinho e Marcela Proença, organizada pelo GMarx-USP. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/live/?v=619773652222158&ref=watch_permalink . Acesso em: 11 ago. 2020.

 


Expediente

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