Ano 01 nº 44/ 2020: Vamos Falar Mais do Branco! - Lucas Julião

boletim 44


Mundo acadêmico ...

 

VAMOS FALAR MAIS DO BRANCO!

 

Lucas E. S. de S. Julião

Professor e Historiador - Unifesp

 

policia

Colagem por Canellas

 

Pode parecer contraintuitivo, mas uma boa tática para resolver as tensões sociais e raciais no Brasil talvez seja, também, falar mais do branco. E o autor desse artigo, como historiador negro, espera não ser “cancelado” por proferir tal infâmia.

Pode-se levantar, frente a tal provocação, uma justa questão: o branco na História do Brasil e do mundo já não é supervalorizado? O certo não seria falar mais do negro?! Sim. Também, melhor dizendo. Não é uma questão tão simples.

Vamos do começo. Você, caro leitor, responda rápido: quem é o branco na História do Brasil? Se a sua resposta para tão simples pergunta é um senhor ou traficante de escravos sua resposta está só meio certa. É óbvio que a infinita maioria dos senhores de escravos e daqueles que do além mar, das fortalezas portuguesas e do atlântico em diante controlavam o lucrativo comércio de escravos, eram brancos. Isso não tem como negar. E é justamente desses brancos que tanto se fala. O que propomos é uma abordagem um pouco diferente.

Mas antes um alerta: caso você, caro leitor branco, tenha pensado: “Mas nem todo branco!” ou “Mas isso foi a quinhentos anos...” ou outra reza comum de nossos tempos para se expiar os pecados da consciência e da alma dos erros ancestrais que teimam em assombrar a sociedade contemporânea, sinto lhe informar, mas é provável que esses pecados estejam tão profundamente enraizados no espírito, que dificilmente escaparia das chamas do inferno da História, caso existisse algum ardor eterno em tão nobre ciência.

Mas conferindo alguma razão para essas afirmações pouco saudáveis, de fato, resumir a presença portuguesa no Brasil só aos cruéis captores de escravos tem sido um erro crasso.

A memória da população branca brasileira ao longo dos 520 anos de Brasil se baseou na identidade dos coronéis e traficantes de escravos. O que só é verdade para uma ínfima minoria da população que se beneficia das desigualdades sociais provindas da escravatura. Nomeadamente, um pequeno punhado de milionários, latifundiários de toda espécie e, atualmente, uma corja parasitária de pastores. No demais, esquece-se que a infinita maioria dos brasileiros brancos são provenientes de degredados: judeus, homossexuais, prostitutas, hereges, mendigos, bruxas e ciganos. Os indesejados de Portugal.

Esses rejeitos da Europa que se tornaram um dos pilares da colonização, apesar das condições infinitamente melhores que a dos negros e indígenas, foram forçados a uma diáspora. No novo mundo, nesse grande exílio, foram forçados à sobrevivência em um continente estranho contra a sua vontade. Porém, é nessa terra brasilis, que tiveram uma rara oportunidade que nunca encontrariam em lugar nenhum da Europa: ser eles mesmos! Gostando ou não, o Brasil tornou-se a terra da “segunda vida” para os odiados pobres do reino lusitano. Era nesse imenso purgatório, pelas palavras de Laura de Mello e Souza, que esses rejeitados poderiam construir uma vida longe do peso da coroa e da igreja. Mesmo que contra sua vontade.

Um destino infinitamente mais tranquilo, mas não menos épico que os demais atores do espetáculo das raças.

O problema é que a História dos rejeitados não é contada. Pouco se ensina e se estuda sobre as bruxas e mães solteiras na colônia. Judeus? Só quando isso pode ajudar os interesses geopolíticos de Israel ou de alguma igreja evangélica. Isso para não falarmos de homossexuais ou uma das mais esquecidas etnias do brasil, os Cálon (que se você não sabe o que é, é prova que são invisíveis).

A consequência é catastrófica. A memória social do branco é deslocada das vilas e pequenas propriedades rurais para a casa grande e o leme do navio negreiro. Esse é o branco no Brasil e a agressão aos monumentos monolíticos dos bandeirantes nada mais é do que uma agressão ao próprio branco. Pobre homem branco.

Em um país marcado por uma clara e profunda divisão étnica isso tem uma consequência trágica. Como a escravidão criou uma ideia definida do que é negro ou branco, bem evidente pelas armas da polícia e pela sala de RH de qualquer empresa, diga-se de passagem, toda e qualquer autoafirmação do negro é uma afronta à memória tão cuidadosa e delicadamente construída da casa grande. Mas como a memória do branco não é a memória da ralé que lutou por uma nova vida, mas a de ricos senhores de escravos que perderam poder pela alforria, a oposição se alarga.

Se a memória negra se volta com força contra 1% de uma escória indesejada de milionários, em sua maioria brancos, facilmente essa mesma escória consegue trazer para o seu lado os outros 47% da população. Diga-se de passagem, também explorada social e historicamente por essa mesma casta de poderosos que nós já nomeamos aqui. Mesmo que para esses 47% de brancos (levando em consideração os dados do IBGE sobre a população com ausência de melanina e excluindo a participação das tênias da conta) o seu passado de ricos fazendeiros com uma próspera “propriedade” de gente ou um passado de desbravadores bandeirantes seja tão fantasiosa quanto qualquer outro conto de fadas.

O que fazer? Desconstruir a imagem da presença portuguesa no Brasil. É preciso falar mais dos degredados. Anotar na História a presença de ciganos, bruxas, hereges, judeus, gays e sublinhar essa lembrança que geralmente se passa na escola só como “O pior de Portugal é o que veio para o Brasil”. Em suma, colocar a presença europeia na “terra de Vera Cruz” também dentro das disputas de classe e raça que marcam a sociedade brasileira.

E nunca se esquecer de falar mais e mais da História da África e dos afrodescendentes, assim como a dos ameríndios, ainda pouco lembrados e falados além de escravos ou selvagens a serem colonizados.

 

Dica de livro: Vadios e ciganos, heréticos e bruxas do historiador: Os degredados no Brasil Colônia de Geraldo Pieroni.

 


Expediente

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