Ano 01 nº 05/ 2020: Coronavírus e a Alemanha - Felipe Lacerda

MARIA ANTONIA

EM QUARENTENA

Boletim do GMARX-USP | São Paulo | Ano 1 nº 5 | Abril 2020


A conjuntura...

CORONAVÍRUS E A ALEMANHA

 

Felipe Lacerda

Doutorando em História Econômica - USP

"O homem só é verdadeiramente livre entre homens igualmente livres; e como ele só é livre a título humano, a escravidão de um único homem sobre a terra, sendo uma ofensa contra o próprio princípio da humanidade, é uma negação da liberdade de todos.”

Mikhail Bakunin, Catecismo Revolucionário

AlemanhaCorona

Não há o que se fazer, senão praticar o isolamento social. Qualquer outra atitude seria ingênua, tola, impensada ou seria abertamente antissocial, criminosa e um atentado contra a humanidade. Por isso, na parcela privilegiada do mundo, as medidas para a contenção do espraiamento do novo Coronavírus – Covid 19 ou Sars-CoV-2 – têm sido, ao que tudo indica, bem-sucedidas para desacelerar a propagação da doença, gerando menor pressão nos sistemas de saúde e risco mais brando à população. “Ao que tudo indica”, pois, de qualquer ponto do globo que se fale, estamos diante de um cenário mais ou menos obscuro e que se altera dia a dia.

Diferente dos casos mais alarmantes dos parceiros de União Europeia, Itália e Espanha, a Alemanha parece manter ao mínimo possível o alastramento da nova doença e, assim, minimizar as consequências acima mencionadas. Mais uma vez, “parece”, pois o fato de se tratar de um processo ainda inconcluso recomenda prudência ao se tirar conclusões. Por ora, não há o que se fazer, senão praticar o isolamento social.

Desde o dia 23 de março, o país vive um lockdown em escala federal, antecipado em poucos dias pelo mesmo procedimento na escala provincial (Bundesländer). Algumas observadoras e observadores criticaram uma certa letargia da administração federal em determinar a medida para todo o país. É certo que o governo da chanceler Angela Merkel, do partido conservador CDU, já fazia esforços para determinar a obrigatoriedade do isolamento. Afinal, não há o que se fazer, senão praticar o isolamento social, e, seja por bom senso, por algum princípio – muito – básico de humanidade ou simplesmente pelo cálculo político que qualquer governante faria de não desejar ter em suas mãos o sangue de suas e seus compatriotas, não há qualquer outra medida sensata a se tomar. O fato é que o decreto generalizado para toda a Alemanha talvez tenha demorado a vir à luz seja pela característica da atual crise – as mencionadas incertezas e alterações cotidianas do quadro geral – seja porque a autonomia do federalismo alemão foi colocada à prova: como as medidas sanitárias só podem, por imposição regulamentar, ser decretas no âmbito dos Bundesländer, a chanceler foi obrigada a costurar um acordo com todas as e todos os representantes daqueles antes que pudesse realizar a medida em escala nacional.

Mas é preciso dizer: se o vírus é “novo”, como sugere o nome que circula nos meios de comunicação, o fenômeno que convencionamos chamar de crise não sugere exatamente “novidades”. No interessante artigo “Sobre a Situação Epidêmica”, Alain Badiou, após recordar as diversas epidemias que se alastraram globalmente nas últimas décadas, aponta que “fica claro que a epidemia atual não é de forma alguma o surgimento de algo radicalmente novo ou sem precedentes”i. A simplicidade das medidas a serem tomadas no atual estágio da pandemia – praticar o isolamento – advém, ao que tudo indica, da definição básica e estrutural do fenômeno. Como apontou ainda Badiou, de forma cirúrgica: “Uma epidemia se torna complexa pelo fato de ser sempre um ponto de articulação entre as determinações naturais e sociais. Sua análise completa é transversal: é preciso compreender os pontos em que as duas determinações se interceptam e tirar conclusões”ii. Assim, o fato de o fenômeno, por um lado, não ser inédito e, por outro, ser relativamente simples não significa que não encerre complexidade, como ocorreria com qualquer fenômeno social.

Os dados de infectadas e infectados na Alemanha são divulgados diariamente pelo Instituto Robert Koch, responsável pelos assuntos relativos à disseminação de doenças no país. Alternativamente, o John Hopkins Institut, dos Estados Unidos da América, divulga dados – também diários – sobre a disseminação da doença, mas as duas bases costumam divergir. De toda forma, as informações do instituto alemão parecem mais confiáveis, pois este trabalha com a alimentação de dados dos governos locais, que informam diretamente àquele órgão. Alguns pequenos problemas surgiram ao longo dos dias, seja por falhas técnicas dos meios de alimentação de dados, seja porque, ocasionalmente, há um pequeno atraso no envio das informações por parte dos governos locais, especialmente nos fins de semana.

Os números divulgados pelo Instituto Robert Koch apontam, para o dia 2 de abril de 2020, um total de 73.522 casos confirmados e a ele submetidos pelas autoridades de saúde locais. Destes, 6.156 são os novos casos em relação ao dia anterior. O total de mortes relacionadas à doença alcançou o número de 872 e a proporção para cada cem mil habitantes é de 88 para todo o território alemão. A partir dos dados em nível nacional, as conclusões mais importantes são: 1) Apesar da enorme quantidade de casos confirmados da doença, a sua difusão parece já não ocorrer em crescimento exponencial, mantendo uma taxa de novos casos que – apesar de muito alta – tem se mantido estável; por conseguinte, ainda não há um recuo no número de infecções. O instituto tem também trabalhado com bastante prudência para tirar conclusões a partir dos dados, devido à característica intrínseca ao fenômeno – bastante simples – de que os sintomas da infecção do vírus possuem uma média de dois a catorze dias para se manifestar, de forma que, pensando de forma otimista, apenas após duas semanas a partir de um ponto inicial – por exemplo, o início do isolamento obrigatório em âmbito federal – pode-se, de fato, começar a pensar em qualquer análise do quadro geral. 2) O número de casos fatais da doença no âmbito alemão, apesar de altíssimo, afinal, 872 mortes jamais poderiam ser consideradas como um número baixo, segue como um dos mais baixos dentre os países que já se encontram num momento crítico da difusão da doença. Também em relação a esse fenômeno, o Instituto Robert Koch recomenda prudência na análise. Conforme explicação do diretor do instituto, ainda é demasiado cedo para se tirar conclusões acerca dos motivos do quadro nesse quesito; apesar de se poder considerar que o fato de o sistema de saúde alemão ser um dos mais bem servidos do mundo, há uma diversidade de condicionantes que podem ter influenciado na formação desse quadro. Por fim, ainda é necessário levar em conta que a doença tem se espraiado de maneira diferente nas diversas regiões do país, concentrando-se e atingindo números ainda mais alarmantes nas regiões de Bayern (18.496), Baden-Württemberg (14.662), Nordrhein-Westphalen (15.427), ou com proporções consideravelmente altas para cada cem mil habitantes em cidades como Hamburgo – que é também um Bundesland – (131).

COVID-19: Fallzahlen in Deutschland und weltweit

Fallzahlen in Deutschland

Stand: 2.4.2020, 00:00 Uhr (online aktualisiert um 08:10 Uhr)

Bundes­land

Elektro­nisch über­mittelte Fälle

 

An­zahl

Dif­fe­renz zum
Vor­tag

Fälle/ 100.000 Einw.

Todes­fälle

Baden-Württem­berg

14.662

+1.252

132

241

Bayern

18.496

+1.999

141

268

Berlin

2.970

+216

79

19

Brandenburg

995

+114

40

7

Bremen

327

+16

48

6

Hamburg

2.406

+95

131

14

Hessen

3.707

+262

59

27

Mecklenburg-
Vor­pommern

438

+32

27

3

Niedersachsen

4.695

+313

59

45

Nordrhein-West­falen

15.427

+1.076

86

161

Rhein­land-Pfalz

3.132

+233

77

26

Saarland

1.020

+191

103

11

Sachsen

2.183

+149

54

18

Sachsen-Anhalt

804

+54

36

8

Schles­wig-Holstein

1.335

+89

46

11

Thüringen

925

+65

43

7

Gesamt

73.522

+6.156

88

872

Fonte: Página do Robert Koch-Institut, disponível no link abaixo. Acesso em 2 abr. 2020. https://www.rki.de/DE/Content/InfAZ/N/Neuartiges_Coronavirus/Fallzahlen.html

 

Como se pode notar, apesar da simplicidade do fenômeno, determinados aspectos só podem ser corretamente avaliados por especialistas experientes no estudo da difusão de doenças. A nós, que não o somos, só nos resta apoiar enfaticamente o financiamento em grande escala da pesquisa científica e, de resto, seguir as orientações das e dos especialistas. Isto é: Não há o que se fazer, senão praticar o isolamento social.

De todo modo, uma série de tensões surgiu na Alemanha em decorrência da difusão da doença. Não são exatamente novidades. Já há algum tempo, tem-se observado uma tendência para a precarização de diversos setores da área da saúde e dos cuidados sociais. Enquanto governos, serviços de telecomunicação e empresas vêm publicando seus agradecimentos a “heróis” e “heroínas” que estão na linha de frente do combate à pandemia, surgem pontualmente os relatos de algumas e alguns “heróis” que, apesar de agradecerem o apoio, apontam que gostariam mesmo é de receberam salários justos e dignos por sua força de trabalho.

Em grande medida, a tendência à precarização é consequência das políticas neoliberalizantes dos últimos anos, especialmente no que diz respeito à privatização do setor de saúde. Apesar de, mais uma vez, ter-se que notar que o sistema de saúde alemão ainda é um dos melhores do mundo, ele está dos pés à cabeça crivado por privatizações. A título de exemplo, toda a população é obrigada a possuir uma espécie de plano de saúde, seja ele parcialmente “público” (as gesetzlichen Krankenkassen, ou “caixas de saúde”) ou totalmente privado (as privaten Krankenversicherungen). Para uma ou um estudante, o valor mensal gira em torno de cem euros, para os demais setores, pode-se chegar ao dobro desse valor. Assim, apesar da qualidade relativa do sistema de saúde e da posição ocupada pelo país como centro de afluxo da mais-valia produzida em escala global, uma observadora ou observador de proveniência brasileira pode se chocar com a grande superioridade do Sistema Único de Saúde (SUS) de seu país, caso raro, se não único, dentre os países capitalistas, em que existe um sistema de saúde único, gratuito, integrado nacionalmente e universal, obviamente, com a grande desvantagem de padecer de uma baixíssima destinação de recursos.

De qualquer modo, o que se tem aqui chamado de “solidariedade” tornou-se palavra de ordem cotidiana no país. Enquanto parte da população se coloca diariamente às nove horas da noite nas sacadas de suas casas para aplaudir os “heróis” e as “heroínas” do combate à doença, vêm surgindo em várias localidades grupos de pessoas – sobretudo mais jovens – que se têm colocado à disposição para ajudar àquelas e àqueles que têm mais dificuldade – ou que fazem parte dos grupos de maior risco – para realizar as tarefas diárias: em especial, as tarefas externas de ir ao supermercado ou à farmácia, ou ainda, enfim, passear com animais de estimação.

UEPorco

Mas a solidariedade que se tornou corriqueira nas palavras e nas pequenas ações cotidianas não atingiu grandes consequências na política. O que, uma vez mais, não é qualquer novidade. A situação epidêmica demonstrou a fragilidade da União Europeia – já tão desgastada pelo Brexit – e as fronteiras, que deveriam ser apenas formais, do Espaço Schengen parecem ter sido reerguidas nas bases de meados do século XX. A “crise” da pandemia assumiu escala global – como todas as anteriores e, certamente, todas as que virão –, mas as medidas têm sido tomadas estritamente nos espaços nacionais. O fenômeno mais importante, com o qual já se conta antecipadamente, será a crise econômica posterior à volta da população às ruas. Enquanto o Estado alemão já se prepara para suprir as demandas da economia estagnada nos dias de isolamento, anunciando o maior pacote de ajuda econômica da história, no espaço europeu ela se recusa taxativamente a ser a fiduciária de uma dívida em escala continental, que o parasitismo financeiro já renomeou de Eurobônus para Corona-bônus e que poderia auxiliar os países da Europa meridional a se recuperar do impacto do período conturbado. Se nem na escala continental há uma mínima capacidade de cooperação para frear uma crise – que se desdobra por cima de outra crise anterior, que é apenas o resultado de uma crise anterior, e assim por diante... – o que se pode esperar do futuro dos países de economia dependente, agroexportadora, que outrora se chamava, com razão, de Terceiro Mundo?

Em resumo: apesar de não vermos aqui tampouco qualquer novidade, o quadro da atual pandemia deverá se constituir em mais um degrau na tendência de aumento da desigualdade na Divisão Internacional do Trabalho com consequências seculares. Aquilo que se apresenta apenas como números em quadros e tabelas para o conformismo que nos oprime, significa, na prática, milhares ou milhões de mortes de toda uma massa que verá qualquer gota restante de dignidade escorrer pelo ralo.

iAlain Badiou, “Sobre a Situação Epidêmica” em Mike Davis et al., Coronavírus e a Luta de Classes, s.l., Terra sem Amos, 2020, p. 37.

iiIdem, p. 36

 


Expediente
 

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
Endereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000

Email: mariaantoniaedicoes@riseup.net