Ano 01 nº 51/ 2020: Resenha crítica da obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de Max Weber - Adriana Marinho

boletim 51


Mundo acadêmico ...

 

RESENHA CRÍTICA DA OBRA "A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO", DE MAX WEBER

 

Adriana Marinho

Graduanda História - USP

lutero

Colagem por Canellas

 

O presente estudo tem por finalidade uma síntese da obra de Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. A partir de então, pretende-se ainda tecer algumas considerações acerca do suposto idealismo presente na obra do autor, à luz do diálogo com o campo marxista, em que a relação entre base e superestrutura é o fator preponderante.

Considerado um dos fundadores da sociologia, Max Weber nasceu em 1864, em Erfurt. Dedicou-se a estudos nas áreas da filosofia, teologia, história, economia e direito. Publicada em 1905, sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, é uma referência fundamental nos estudos sobre religião e sociedade. O intuito consiste em ponderar a influência da Reforma Protestante, especialmente das doutrinas protestantes de cunho ascético, na formação do capitalismo moderno. Com efeito, o autor defende uma relação entre a ética concernente a tais crenças e o que ele chama de espírito do capitalismo. Tal espírito se expressa, grosso modo, num ideal de conduta por parte do homem moderno, diante das novas perspectivas decorrentes do processo de racionalização alavancado pelo advento do capitalismo industrial.

A obra é dividida em duas partes, sendo a primeira dedicada a considerações sobre a ligação entre religião e economia; a apresentação do seu objeto de investigação – o espírito do capitalismo; além da concepção de vocação, à luz das mudanças trazidas pela Reforma Protestante no que diz respeito ao sentido moral do trabalho secular. Na segunda parte, Weber se debruça sobre as doutrinas protestantes firmadas em ideais ascéticos, às quais pode ser atribuída uma relação estrita com o espírito do capitalismo.

Tendo em vista tal estrutura, o autor inicia seu estudo partindo de um questionamento acerca das diferenças nas condições e no comportamento, num sentido econômico, por parte de católicos e protestantes. Assim, Weber enfatiza que os últimos ocupavam altos escalões no âmbito social moderno e a explicação para este fato tinha raízes históricas – no entanto, apenas essa perspectiva não dava conta de todo o fenômeno. Na medida em que os católicos demonstravam preferência por trabalhos artesanais, os protestantes viam-se atraídos por algumas posições de destaque nas fábricas modernas. Isto se devia, para o autor, às particularidades espirituais decorrentes do meio – mais especificamente, ao “tipo de educação propiciado pela atmosfera religiosa da comunidade e da família, que determinava a escolha da ocupação e, através dela, da carreira profissional.” (WEBER, 2001, p. 21).

Ainda nesse contexto, o texto evidencia como não eram marginais os casos em que famílias de religiões protestantes compunham os círculos comerciais e eram imbuídos de um senso empreendedor capitalista. Em tal cenário, destacava-se a influência, principalmente, do calvinismo.

Em se tratando do Capítulo II, sobre o espírito do capitalismo, temos uma tentativa de apresentar este objeto, muito embora o autor afirme que o conceito definitivo tenha de aparecer no fim da análise e não no início – em virtude da necessidade de construí-lo gradativamente, na medida em que se insere numa dada realidade histórica. Há, aqui, portanto, um pontapé inicial no que se refere à definição do objeto. Em termos gerais, Weber entende por espírito do capitalismo (e aqui falamos do capitalismo moderno), mais do que uma determinada conduta pautada por um bom senso comercial – um ethos específico do modo de produção capitalista em sua fase industrial, no qual o dever do sujeito em relação ao ganho de capital é tomado como um fim em si mesmo. Mais tarde, o autor demonstra como o próprio trabalho é tomado como um fim em si mesmo.

No entanto, não se pode inferir que isso se resuma a um simples impulso de fazer dinheiro. Weber tem o cuidado de peculiarizar esse espírito frente à auri sacra frames, apontando para o fato de que não há, aqui, um instinto inescrupuloso, egoísta e aventureiro na busca pelo lucro – sendo tais características concernentes, antes, a um estágio atrasado do capitalismo. Com efeito, o espírito do capitalismo é marcado por intensa disciplina, tendo em vista uma utilização racional do capital, bem como uma organização racional da empresa capitalista.

A fim de ilustrar o fenômeno, são bastante elucidativas algumas máximas de Benjamin Franklin: “[...] O dinheiro pode gerar dinheiro e seu fruto pode gerar mais, e assim por diante”; “[...] Depois do trabalho árduo e da parcimônia, nada contribui mais para a criação de um jovem que a pontualidade e a justiça em todos os seus negócios”; “Guarda-te de pensar que tens tudo o que possuis e de viver de acordo com isso” (WEBER, 2001, p. 26). Vemos aqui, destarte, atitudes morais pautadas em um utilitarismo – a exaltação de virtudes úteis ao fim último, que é ganhar dinheiro cada vez mais, a partir de uma conduta racional e disciplinada.

Já no Capítulo III, Weber demonstra como a vocação é vista segundo os valores da Reforma Protestante. Assim, temos que o conceito acompanha uma atribuição de sentido religioso à conduta secular. Segundo o autor, a Reforma dá ao trabalho secular e profissional uma exaltação moral. No entanto, aponta-se para o fato de que em Lutero, o conceito de vocação permaneceu em seu sentido tradicional – para ele, trabalho vocacional dizia respeito a uma ordem divina, à qual os sujeitos deveriam adaptar-se.

O autor enfatiza, aliás, que Lutero não pode ser identificado com o espírito do capitalismo em nenhum sentido e que o próprio teria rejeitado veementemente uma mentalidade como a Benjamin Franklin. É principalmente no calvinismo e nas seitas batistas, mas também no pietismo e no metodismo, que observamos o fenômeno do espírito do capitalismo – com isso chegamos à segunda parte da obra, que trata das doutrinas ascéticas do protestantismo. Antes, ainda no que concerne à vocação, o autor salienta que no puritanismo evidenciava-se um poderoso apego ao mundo, de maneira que não poderia ser encontrado no luteranismo.

Por conseguinte, adentramos na segunda parte e nas doutrinas ascéticas. A mais relevante delas, o calvinismo, é vista pelo autor como a crença cujo dogma mais característico é a ideia de predestinação. Segundo esse dogma, haveria de antemão, a partir da vontade divina, pessoas que seriam agraciadas com a salvação e pessoas que não a alcançariam. Nesse sentido, diferentemente do que pregava o catolicismo, as boas obras e os sacramentos não levariam ninguém à salvação – aliás, tal ideia é um acinte, na medida em que “aplicar padrões de justiça terrena aos Seus [de Deus] desígnios soberanos é desprovido de sentido e é um insulto à Sua Majestade, uma vez que Ele, e apenas Ele, é livre, não está submetido a lei nenhuma” (WEBER, 2001, p. 57).

Muito embora o indivíduo não possa mudar essas leis e alterar o destino de sua salvação ou condenação, o trabalho vocacional secular pode promover indícios de que ele será ou não salvo, e era ainda muito importante na medida em que representava uma glorificação de Deus na terra, que era dever de todos. Nas palavras do autor:

Por outro lado, a fim de alcançar aquela autoconfiança, uma intensa atividade secular era recomendada, como o meio mais adequado. Ela, e apenas ela, afugenta as dúvidas religiosas e dá a certeza da graça (WEBER, 2001, p. 61).

Dessa forma, a simples realização de boas obras não era sinal de salvação, e sim as manifestações de prosperidade na vida do sujeito, decorrentes de um intenso trabalho secular. Nesse processo, que reflete a busca por autoconfiança e certeza de salvação, era extremamente necessário abandonar os impulsos e o gozo espontâneo e infrutífero da vida, e isso era previsto nas normas de conduta dos calvinistas, pautadas em um comportamento ético sistematizado e racionalizado.

Destarte, após pormenorizar os elementos essenciais de doutrinas ascéticas secundárias, como o pietismo e o metodismo – além de apontar para um forte movimento ascético ao lado do calvinismo, expresso nas seitas batistas – Weber constrói um último capítulo relacionando o ascetismo dessas doutrinas com o espírito do capitalismo. O autor afirma que:

No que se refere à produção da riqueza privada, a ascese condenava tanto a desonestidade como a ganância instintiva. A ânsia de riqueza como um fim em si era condenada como cobiça, “avareza” etc., pois a riqueza em si era uma tentação. Aí surgia, todavia, o ascetismo como o poder que “sempre quer o bem quando cria o mal”, o mal sendo no caso a posse e as suas tentações. Isto porque, ele não se limita a encarar, de acordo com o Antigo Testamento e com a avaliação ética das “boas obras”, como altamente repreensível a ambição pela riqueza em si; e, como sinal da bênção divina, a sua conservação através do trabalho profissional. Mas, o que era ainda mais importante: a avaliação religiosa do infatigável, constante e sistemático labor vocacional secular, como o mais alto instrumento de ascese e, ao mesmo tempo, como o mais seguro meio de prova da redenção da fé e do homem, deve ter sido presumivelmente a mais poderosa alavanca da expansão dessa concepção de vida, que aqui apontamos como espírito do capitalismo. (WEBER, 2001, p. 94).

Isso posto, temos em Weber uma íntima relação entre a ascese característica dessas doutrinas protestantes e o espírito do capitalismo. O mais importante, contudo, é identificar precisamente em que se baseia essa relação. Não é incomum ouvirmos falar em um idealismo marcante nessa obra de Weber, no sentido entendido pela supervalorização de elementos superestruturais, tidos como determinantes de processos históricos – nos quais as condições objetivas e econômicas ocupam papel secundário. Tendo isso em vista, pelo menos duas questões se colocam: Max Weber estabelece uma relação de causa e efeito entre a ética protestante e o espírito do capitalismo? Além disso, o autor considera que o espírito do capitalismo – sendo um fator superestrutural –, tenha criado o modo de vida intrínseco ao capitalismo moderno ou determinado as bases de sua expansão?

A primeira formulação parece não se legitimar. Após criticar o economicismo, negando a possibilidade de se interpretar a Reforma como uma consequência necessária frente condições materiais, o autor pondera:

Contudo, não se pode sequer aceitar uma tese tola ou doutrinária segundo a qual o espírito do capitalismo (sempre no sentido provisório que aqui usamos) teria surgido como consequência de determinadas influências da Reforma, ou que, o Capitalismo, como sistema econômico, seria um produto da Reforma. [...] Nosso desejo é apenas verificar se, e em que medida, as influências religiosas participaram da moldagem qualitativa e da expansão quantitativa desse “espírito” pelo mundo, e quais aspectos concretos da cultura capitalista resultem delas. (WEBER, 2001, p. 49).

Com efeito, por meio dessa e de outras passagens, não parece se comprovar uma hipótese de que o autor tenha estabelecido uma relação de causa e efeito entre Reforma e espírito do capitalismo, sobrevalorizando, assim, um elemento superestrutural. Sobre isso, também é elucidativo como Michael Löwy ressalta que o conceito de Wahlverwandtschaft, usado por Weber, aponta, na verdade, para uma relação recíproca – ou reforço recíproco – entre o protestantismo ascético e o espírito do capitalismo. (LÖWY, 2014).

No que tange ao segundo questionamento, a perspectiva parece mudar de figura. Na página 36, o autor pontua categoricamente que a mola da expansão do capitalismo moderno foi o desenvolvimento do espírito do capitalismo, nos termos aqui explicitados, em detrimento da acumulação de capital. Em outra passagem, na página 39, Weber enfatiza ainda que a ideia pautada na atividade dirigida para o lucro – isto é, o espírito do capitalismo – “determinou o modo de vida do empreendedor, sua fundamentação ética e sua jurisdição”. Ademais, na página 99, o autor defende que, “desde que o ascetismo começou a remodelar o mundo e a nele se desenvolver, os bens materiais foram assumindo uma crescente e inexorável força sobre os homens, como nunca antes na História”. Ora, isso que Weber atribui ao desenvolvimento dos ideais ascéticos, não é senão outra coisa, para Marx, do que o fetichismo – processo decorrente de condições objetivas referentes à alienação do trabalho no capitalismo, e que acarreta em uma espécie de personificação das mercadorias, às quais os sujeitos se subordinam, reificando-se. (MARX, 1996, p.197 - 208).

De todo modo, no que se refere à questão da infra e superestrutura, é relevante mencionar que Max Weber exerceu uma importante influência no campo marxista, tendo ocupado um papel de destaque na construção das concepções do chamado marxismo ocidental da primeira metade do século XX. Diferentemente do marxismo tradicional, autores como György Lukács e Antonio Gramsci retomaram Hegel para enfatizar o caráter dialético que impera na relação entre base e superestrutura, observando agora uma potencialidade revolucionária que se expressa também no terreno das ideias. Para esses autores, as duas facetas formam uma totalidade concreta (em Lukács), ou um bloco (em Gramsci), e não há a sobreposição de um elemento sobre o outro. A despeito dos indícios de sobrevalorização de fatores superestruturais, conforme foi aqui demonstrado, Max Weber termina sua obra acenando a essa importante relação que marcaria os autores do marxismo ocidental:

Aqui apenas se tratou do fato e da direção de sua [do protestantismo ascético] influência em apenas um, se bem que importante, ponto de seus motivos. Seria necessário investigar mais adiante a maneira pela qual a ascese protestante foi por sua vez influenciada em seu desenvolvimento e caráter pela totalidade das condições sociais, especialmente pelas econômicas. Isto porque, se bem que o homem moderno seja incapaz, mesmo dentro da maior boa vontade, de avaliar o significado de quanto as ideias religiosas influenciaram a cultura e o caráter nacional, não se pode pensar em substituir uma interpretação materialista unilateral por uma igualmente bitolada interpretação causal da cultura e da história. Ambos são igualmente viáveis, mas, qualquer uma delas, se não servir de introdução, mas sim de conclusão, de muito pouco serve no interesse da verdade histórica. (WEBER, 2001, p. 100, grifos meus).

Destarte, percebe-se como Weber ao menos reconhece a importância de um estudo calcado na totalidade dos elementos infra e superestruturais, sem supervalorizar nenhum deles. A influência do autor para o marxismo ocidental foi bastante forte, ao ponto de ter sido a ele atribuído o termo marxismo weberiano. Sobre isso, Löwy chama atenção para o fato de Merleau-Ponty, o filósofo francês que criou o termo, ter defendido que “graças a Weber, o marxismo pôde se libertar do peso da visão determinista da história”(LÖWY, 2014).

 

Referências Bibliográficas

GRAMSCI, Antonio. “O materialismo histórico e a filosofia de Benedetto Croce”, in Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

LÖWY, Michael. O marxismo weberiano: uma das múltiplas expressões no campo intelectual brasileiro - Entrevista concedida à IHU On-Line em 2014. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/535782-o-marxismo-weberiano-uma-das-multiplas-expressoes-no-campo-intelectual-brasileiro-entrevista-especial-com-michael-loewy, data de acesso: 20/11/2018.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe, trad. Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MARX, Karl. O Capital, vol.1. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1996.

MUSSE, Ricardo. Ensaios recriam confronto entre Marx e Weber. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/3/12/mais!/19.html, data de acesso: 20/11/2018.

POLLAK, Michael. Max Weber: elementos para uma biografia sociointelectual (parte II). Rio de Janeiro: Mana, Estudos de Antropologia Social, 1996. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93131996000200004&script=sci_arttext&fbclid=IwAR3sm6oGqv6_qnpOUvNOBM3UYd_LZ_gDUHcgWdcVl2zoXO1tgzV63z4N7Rs#end, data de acesso: 20/11/2018.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 2ª ed. rev. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2001.

 


Expediente

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