Ano 01 nº 56/ 2020: Cloves, o grande camarada - Guiomar Lopes

boletim 56


Memória operária...

 

CLOVES, O GRANDE CAMARADA

 

Guiomar Silva Lopes

Médica, professora e militante

piquete

Fonte: http://memoriasoperarias.blogspot.com/

 

Cloves de Castro, aos 81 anos, não tinha aparência e nem um leve traço de desalento, comum às pessoas nessa idade, pelo contrário, o seu vigor e a audácia para mais uma tarefa ou um bom encontro festivo com os amigos eram sempre surpreendentes.

Para homenagear o camarada tão querido, me ponho a percorrer a memória da nossa amizade que durou mais de 45 anos e que, apesar de termos sido militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), fomos nos encontrar pessoalmente alguns anos depois das nossas prisões.

Cloves fora preso no final de 1969 e saiu no início de 1972. Na prisão, soube um pouco da sua história por meio das companheiras que visitavam seus familiares na ala masculina do presídio e traziam notícias e histórias. Fui encontrá-lo somente em 1974 após a minha libertação.

Nessa ocasião lembro da cidade um pouco destroçada com a construção do metrô, o centro de São Paulo parecia ter sofrido bombardeios, cercado por tapumes que escondiam as enormes crateras, a Praça Roosevelt em uma eterna reforma. Mas, aos olhos de quem busca alívios, o que chamava a atenção era a escassez de bares. Os poucos existentes se tornaram importantes para o encontro dos militantes de esquerda que amargavam o desemprego e os míseros centavos nos bolsos. O encontro, o bar, a bebida, a magia da noite tinham o sentido de lavar a alma, de se despir de uma memória cruelmente dura para se reencontrar naquele mundo. Nesse sentido, o cinema Belas Artes, o bar Riviera e, ao lado, um outro que chamávamos de Ponto 4 constituíam lugares de efervescência.

O Paulistano da Glória também compunha essa atmosfera. Era um imenso salão na Rua da Glória pertencente à Escola de Samba Paulistano da Glória que nos finais de semana organizava um samba quente com os integrantes da escola e com a presença majestosa de Geraldo Filme, compositor que se apresentava com o grupo de sambistas e um coro de cantoras. Era um espetáculo incrível e inesquecível. O salão tornava-se pequeno diante do número de pessoas e o empurra-empurra que quase nos impedia de beber uma cerveja ou dançar. O Paulistano da Glória virou o refúgio de ex-prisioneiros e, segundo me dizia um trabalhador do metrô, a maioria era “peão do metrô”. E foi no samba que estive pessoalmente pela primeira vez com Cloves rodeado de amigos. Ele valorizava muito a amizade e mostrava o enorme prazer em celebrar os laços, a afeição, com encontros festivos.

Até aquele momento, conhecia pouco da história da sua militância. Sabia que ele tinha pertencido ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e somente mais tarde tive a dimensão do trabalho político realizado no seu bairro, Vila Moraes. O golpe de 1964 tinha produzido um grande abalo no partido e as divergências tomavam conta da direção. Marighella se destacava pelas críticas e posições de confronto ao imobilismo da organização que estava à reboque da burguesia. Nessa ocasião, Cloves teve um papel muito importante na expansão do PCB na região do Bosque da Saúde, conseguindo organizar o distrital com 8 células, dando força às posições de Marighella, cujos aliados acabaram conquistando o Comitê Municipal e Estadual. O processo de luta interna terminou com a saída de Marighella e de outros dirigentes da Comissão Executiva.

Os princípios da luta armada já estavam desenhados e fortalecidos pelo apoio de Cuba, principalmente com a Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) e a Tricontinental.

A ALN foi organizada com dois setores vitais, o militar e o de massa que eram totalmente estanques. Cloves atuava no setor de massa organizando a propaganda da guerrilha e o apoio às manifestações e às greves operárias.

Após o encontro no Paulistano da Glória, fui reencontrar Cloves um ano depois na Paróquia da Vila Santa Catarina atuando no movimento de Oposição Sindical. Ele queria que eu e meu companheiro participássemos das atividades, como o cursinho popular e o trabalho político com a população da região, porém, o fato de me encontrar em liberdade condicional, sob vigilância permanente, tornava minha adesão perigosa ao grupo.

A luta da Oposição Sindical no final dos anos 1970 se expandiu com a adesão de diversas categorias, culminando com os movimentos dos metalúrgicos do ABC e a posterior fundação do Partido dos Trabalhadores (PT). Cloves participou intensamente das greves e da fundação do PT.

A vida nos distanciou, mas estávamos presentes nas manifestações e nos grandes encontros de esquerda.

Cloves dividia a sua intensa militância no PT com a atividade de livreiro. Ele tinha um escritório que abrigava os livros para a exposição e venda nos grandes eventos universitários, sindicais e de esquerda de um modo geral. Essa atividade demonstrou com muita evidência o compromisso político do Cloves, como um grande divulgador dos textos marxistas e de esquerda, fundamentais para a formação de militantes.

Há alguns anos eu e meu companheiro Takao organizamos um grupo juntamente com Cloves para escrever o livro sobre Joaquim Câmara Ferreira, o Velho, como o chamávamos. Realizamos a primeira etapa com diversas entrevistas. Insistimos por um tempo, mas o projeto acabou sendo interrompido. A publicação foi retomada somente por volta de 2010, com novos atores que incluíam alguns companheiros da ALN, tendo como figuras centrais Cloves, que cedia o seu escritório, e Ary Normanha, companheiro editor de longa e reconhecidíssima trajetória na publicação de esquerda. O projeto tinha por objetivo a criação de uma editora para elaborar livros paradidáticos e textos políticos de memória do período de luta contra a ditadura, além de um trabalho político com sindicatos e movimentos sociais. Tudo parecia estar bem concebido, tanto o objetivo do projeto como a capacitação das pessoas, mas questões de diversas origens impediram que prosseguíssemos com a empreitada.

Além do projeto da editora, a proximidade com Cloves se estreitou mais quando passei a cuidar de sua saúde e de sua companheira, Ana. Aliás, à sua companheira presto a minha homenagem, por ela tenho grande respeito pela força e dignidade com que enfrentou a militância, a prisão do Cloves, sustentando na ocasião os três filhos e se mantendo solidária em todos os momentos.

Uma característica marcante do Cloves que não posso deixar de mencionar era a generosidade que ele distribuía a todos que dele se aproximavam. Às vezes me via pensando se não teria alguém tentado se aproveitar de tanta generosidade e o prejudicar. Conversando com ele, descobri que era uma atitude consciente, era a sua grande virtude e não podia ser considerada um pecado.

Cloves foi o militante sério que se comprometeu com a luta e solidário aos amigos e companheiros.

Posso dizer que Cloves foi o autêntico amigo e camarada comunista.

 

Cloves

Fonte: https://smabc.org.br/nota-de-falecimento-cloves-de-castro-presente/


Expediente

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