Ano 01 nº 06/ 2020: Trotsky e o Nazismo - Osvaldo Coggiola

MARIA ANTONIA

EM QUARENTENA

Boletim do GMARX-USP | São Paulo | Ano 1 nº 6 | Abril 2020


A conjuntura...

TROTSKY E O NAZISMO

 

 Osvaldo Coggiola

Professor do Departamento de História  - USP

Asanálises de Trotsky sobre a ascensão do nazismo provocaram a admiração dos seus contemporâneos e obtiveram ampla divulgaçãoi devido à sua lucidez, mas poucos compreenderam que elas se inseriam dentro de um corpus teórico geral sobre a era histórica em pauta, a “era da revolução permanente”. Trotsky descreveu como poucos as consequências que, para a sociedade e a civilização humanas, tinha a nova etapa imperialista do capitalismo, definida por Lenin em 1916, em plena Primeira Guerra, como “época de guerras e revoluções”, “era da reação em toda a linha”. Na síntese de Trotsky: “A guerra explodiu, seguida pelo seu cortejo de violentas convulsões, crises, catástrofes, epidemias e retornos à barbárie. A vida econômica encontrou-se num beco sem saída. Os antagonismos de classe agravaram-se e apareceram a nu. Um após outro, viram-se explodir os mecanismos de segurança da democracia. As regras elementares da moral revelaram-se ainda mais frágeis do que as instituições democráticas e as ilusões do reformismo. A mentira, a calúnia, a corrupção, a venalidade, a violência, a coerção, o assassinato, assumiram proporções nunca vistas. Os espíritos simples, confundidos, acharam que se tratava de consequências momentâneas da guerra. Na realidade, esta manifestação era, e continua sendo, a manifestação do declínio do imperialismo. A decadência do capitalismo traz consigo a da sociedade moderna, com suas leis e sua moral”ii.

Trotsky

A transformação do “regime relativamente reacionário” da livre-concorrência para o “regime absolutamente reacionário” do monopólio, privava a expansão mundial do capital de qualquer traço de progressividade histórica, com consequências nefastas para os países atrasados: “Enquanto destrói a democracia, nas velhas metrópoles do capital, o imperialismo impede, ao mesmo tempo, a ascensão da democracia nos países atrasados. O fato de que, em nossa época, nem uma só das colônias ou semicolônias haja realizado uma revolução democrática - sobretudo no campo das relações agrárias - se deve por completo ao imperialismo, que se converteu no principal obstáculo para o progresso econômico e político. Espoliando a riqueza natural dos países atrasados e restringindo deliberadamente seu desenvolvimento industrial independente, os magnatas monopolistas e seus governos concedem, simultaneamente, seu apoio financeiro, político e militar aos grupos semifeudais reacionários e parasitas dos exploradores nativos. A barbárie agrária, artificialmente conservada, é hoje em dia a praga mais sinistra da economia mundial contemporânea. A luta dos povos coloniais por sua libertação, passando por cima das etapas intermediárias, se transforma na necessidade da luta contra o imperialismo e, desse modo, se põe de acordo com a luta do proletariado nas metrópoles. Os levantes e as guerras coloniais fazem oscilar, por sua vez, as bases fundamentais do mundo capitalista mais do que nunca, e fazem menos possível do que nunca o milagre de sua regeneração”iii.

Para analisar a nova época, marcada pela guerra mundial e pela crise geral do capitalismo de 1929, Trotsky viu-se obrigado a desenvolver a teoria sobre o desenvolvimento desigual do capitalismo, confrontando-se novamente, como no primeiro momento de elaboração da “revolução permanente”, com o próprio Marx que, segundo Trotsky, “imaginou de maneira demasiadamente unilateral o processo de liquidação das classes intermediárias, como uma proletarização no atacado dos artesãos, do campesinato e dos pequenos industriais”. A crise capitalista, na época monopolista, tivera, no entanto, consequências imprevistas: “O capitalismo arruinou a pequena burguesia a uma velocidade maior do que a proletarizou. Por outro lado, o Estado burguês agiu conscientemente durante muito tempo com vistas à manutenção artificial da camada pequeno-burguesa”. As decorrências políticas desse processo para a contrarrevolução contemporânea eram enormes: “Se o proletariado, por qualquer razão, demonstrara incapacidade para derrocar a ordem burguesa sobrevivente, o capital financeiro, na luta para manter a instável dominação, só poderia transformar a pequena burguesia, arruinada e desmoralizada por aquele, no exército pogromista do fascismo. A degeneração burguesa da socialdemocracia e a degeneração fascista da democracia burguesa estão unidas como causa e efeito”iv.

Enquanto os partidos comunistas “stalinizados” consideravam a vitória nazista como um “mal menor”, Trotsky já advertia sobre a horrenda originalidade do novo tipo de contrarrevolução, em 1932: “O fascismo põe em pé aquelas classes imediatamente acima do proletariado, e que vivem com receio de serem obrigadas a cair em suas fileiras; organiza-as e militariza-as às custas do capital financeiro, com a cobertura do governo oficial (...). O fascismo não é apenas um sistema de represálias, de força brutal, de terror policial. O fascismo é um determinado sistema governamental baseado na erradicação de todos os elementos da democracia proletária dentro da sociedade burguesa”.

Trotsky não se limitou a se opor à política stalinista diante da ascensão nazista; sua análise aprofundada desse fenômeno provocou a admiração de Perry Anderson: “Isolado numa ilha turca, ele escreveu, a certa distância dos acontecimentos, uma sequência de textos sobre a ascensão do nazismo na Alemanha que, como estudos concretos de uma conjuntura política, são de uma qualidade sem par no conjunto do materialismo histórico. Neste campo, o próprio Lênin nunca produziu qualquer trabalho de profundidade e complexidade comparáveis. Com efeito, os escritos de Trotsky sobre o fascismo alemão constituem a primeira análise marxista real de um Estado capitalista do século XX - o estabelecimento da ditadura nazista”v.

Trotsky não experimentou nenhuma confusão ou fascínio para com o espalhafatoso aparelho de símbolos e cerimônias que rodeava a mitificação da figura do Führer: “No início de sua carreira política, Hitler destacou-se somente por seu temperamento explosivo, sua voz mais alta que as outras e uma mediocridade intelectual mais autossuficiente. Ele não trouxe para o movimento qualquer programa preparado de antemão, se deixarmos de lado a sede de vingança do soldado insultado (...) Havia no país muita gente arruinada ou a caminho da ruína, portadora de cicatrizes e feridas recentes. Todos queriam bater com os punhos na mesa. E isto Hitler podia fazer melhor do que os outros. É certo que ele não sabia como curar o mal. Mas suas arengas ressoavam, ora como ordens de comando ora como preces dirigidas ao destino inexorável. As classes condenadas, ou as fatalmente enfermas não se cansam nunca de fazer variações em torno de suas queixas, nem de ouvir palavras de consolo. Os discursos de Hitler eram todos afinados nessa clave. Forma desleixada, sentimental, ausência de um pensamento disciplinado, ignorância paralela à erudição alambicada, todos esses defeitos transformados em qualidades. (...) O fascismo abriu as entranhas da sociedade para a política. Hoje, não apenas nos lares camponeses mas também nos arranha-céus das cidades convivem o século XX com o X e o XIII”vi.

Em última instância, a contrarrevolução capitalista e a contrarrevolução no “Estado Operário” (a URSS stalinista) respondiam ao mesmo padrão totalitário típico das necessidades de defesa do capital mundial no seu período de decomposição: “O fascismo, nascido da bancarrota da democracia diante das tarefas da época do imperialismo, é uma ‘síntese’ dos piores males desta época. Traços de democracia conservam-se apenas nas aristocracias capitalistas mais ricas: para cada ‘democrata’ inglês, francês, holandês, belga, trabalha um certo número de escravos coloniais; ‘sessenta famílias’ governam a democracia nos Estados Unidos, etc. Elementos de fascismo crescem rapidamente em todas as democracias. O stalinismo é, por sua vez, o produto da pressão do imperialismo sobre o Estado operário, atrasado e isolado, e constitui, de certo modo, o complemento simétrico do fascismo”vii.

Bem antes da “semiologia” nascer, Trotsky advertia que “se os caminhos do inferno estão cheios de boas intenções, os do III Reich estão cheios de símbolos”, pois “se todo pequeno-burguês encardido não pode virar Hitler, uma parte deste se acha em todo pequeno-burguês encardido”viii. O nazismo não só foi previsto, nas suas características essenciais e nas suas piores consequências, por Trotsky, mas também desmitificado na mesma análise. Fazendo isso, Trotsky não só contribuiu a salvar a teoria marxista da completa bancarrota nos “tempos sombrios”, como reconhece Perry Anderson, mas talvez também a salvar o pensamento social tout court, diante da barbárie consumada em um dos berços da civilização ocidental.

trostky-nazismo

Angela Irene. Fonte: https://www.esquerdadiario.com.br/Trotsky-e-uma-politica-para-derrotar-…

 

iEm janeiro de 1933, por exemplo, Mário Pedrosa traduziu e publicou, no Brasil, uma coletânea dos artigos de Trotsky a respeito, de 1931-32, republicada em 1979 sob o título Revolução e Contra-Revolução na Alemanha, São Paulo, Ciências Humanas.

iiLeon Trotsky. Moral e Revolução. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978 (1º ed. 1938).

iiiLeon Trotsky. O Marxismo de Nosso Tempo. São Paulo, Outubro, 1988 (1º ed. 1939).

ivLeon Trotsky. A 90 años del Manifiesto Comunista (1937). Escritos, Bogotá, Pluma, 1974.

vPerry Anderson. Considerações sobre o Marxismo Ocidental. Lisboa, Afrontamento, 1978, p. 127.

viLeon Trotsky. Revolução e Contra-Revolução na Alemanha, op. cit.

viiLeon Trotsky. Moral e Revolução, op. cit.

viiiLeon Trotsky. Qué es el nacional-socialismo? (junho 1933). In: El Fascismo. Buenos Aires, Cepe, 1973, pp. 70 e 83.

 


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