Ano 01 nº 60/ 2020: Quadro Eleitoral de 2020: uma avaliação de São Paulo - Vinicius Cione

boletim 60


A conjuntura ...

 

QUADRO ELEITORAL DE 2020: UMA AVALIAÇÃO DE SÃO PAULO

 

Vinicius Melleu Cione

Professor do ensino básico e Historiador - USP

 

eleicoes

Colagem por Canellas

 

No último dia 29 de novembro, foram concluídas as eleições municipais em todo o país. A quatro anos de um processo de ruptura constitucional que reúne, a um único e mesmo tempo, o golpe de Estado que derrubou a presidenta Dilma Rousseff e o golpe eleitoral em que o provável vencedor do pleito, o ex-presidente Lula, foi retirado da disputa pelo juiz de primeira instância Sérgio Moro (quem conseguiu, em troca, a posição de superministro da Justiça num governo que, em razão da manobra, legitimou a farsa), os resultados registrados não chegaram a ser uma surpresa. Inicialmente, é preciso registrar que de um universo de 147 milhões de pessoas aptas a votar, a quantidade de abstenções, votos brancos e nulos bateu novo recorde (45,14 milhões, no total), chegando à marca de 30,57% do eleitorado no primeiro turno e 29,5% no segundo. Em seguida, deve-se pontuar a previsível ascensão da direita mais conservadora – embora, no caso, não necessariamente identificada com o bolsonarismo – com uma projeção de partidos como DEM, PSD, PP e Republicanos e o refluxo de partidos tradicionais como PSDB, PMDB/MDB e PSB. Em comparação com 2016, às portas do golpe, houve crescimento leve da esquerda eleitoral (PT e PSOL) no legislativo das capitais, principalmente com a projeção de novos quadros políticos impulsionados por pautas identitárias, e no executivo de cidades médias e grandes, voltando o PSOL à prefeitura de Belém, por exemplo.

No que diz respeito às altas taxas de abstenção, a tese alardeada pela grande mídia corporativa, ecoando a fala oficial do presidente do TSE, o ministro Luís Barroso, é de que a causa seria a pandemia do coronavírus. Com efeito, a intenção é ocultar o desinteresse geral por um processo que se verificou viciado desde que a lumpemburguesia brasileira iniciou seus ataques ao (limitado) Estado democrático de direito antes existente no país. E, por fim, a crescente indiferença com as disputas político-eleitorais pode ser explicada pela crise orgânica do capital, uma vez que as candidaturas apresentadas não têm a capacidade de impedir ou reverter a piora na qualidade de vida das massas populares – intensificada no contexto pandêmico. Diante da crise estrutural do modo de produção, as eleições democrático-burguesas não apresentam “programas políticos” de concreto enfrentamento da situação, razão pela qual se produzem debates televisivos ou virtuais despolitizados que se reduzem a repetições de slogan de campanha, discursos estéreis ou tecnocráticos ou, no caso de candidatos “mais modernos”, “lacrações” [sic].

Sobre os movimentos eleitorais, faz-se necessária uma análise que aborde o quadro em 2012, antes das “jornadas de junho” – a manifestação local das revoluções coloridas – e do próprio golpe contra a presidenta Dilma; 2016, momento em que o trânsfuga Temer já havia tomado de assalto o Estado com o auxílio da burguesia neoliberal e da extrema direita em geral; e 2020, instante em que o país vive uma crise social, econômica e sanitária, agravada por medidas que têm retirado direitos historicamente conquistados e que drenam os recursos destinados ao parco Estado de bem-estar estruturado num país de capitalismo dependente por um chefe de Estado abertamente fascista.

Em 2012, os partidos que conquistaram mais prefeituras foram respectivamente PMDB (1022), PSDB (697), PT (636) e PSD (493). Em termos de capitais, o PMDB se fixou no Rio de Janeiro, o PSDB em Manaus, Boa Vista, Belém, Maceió e Teresina, o PT em João Pessoa, Goiânia, Rio Branco e São Paulo e o PSD conquistou Florianópolis. Por fim, cabe pontuar que o PT foi o partido que teve o melhor desempenho em cidades com mais de 200 mil habitantes, postando-se à frente de 16 prefeituras e, na sequência, vinham PSDB com 15, PSB com 11 e PMDB com nove. Quatro anos mais tarde, o golpe alteraria a tendência política até então verificada: o PT, que tinha crescido de 2008 a 2012, sofreria um duro baque e logrou apenas 261 prefeituras (uma queda de 58,9%). Os partidos que se destacaram em quantidade de prefeituras conquistadas foram o PMDB (1027, apenas cinco a mais em relação ao período anterior), PSDB (793, crescimento de 12%), PSD (539) e PP (495). Em termos de capitais, o PSDB fixou-se em sete (Maceió, Teresina, Belém, Manaus, Porto Velho, São Paulo e Porto Alegre), o PMDB em quatro (Boa Vista, Cuiabá, Goiânia e Florianópolis), o PSD em duas (Campo Grande e João Pessoa) e o PP em nenhuma, enquanto o PT conquistou apenas Rio Branco. Neste momento, não faltaram “especialistas” que, desprezando o golpe, atribuíram a derrota acachapante do maior partido eleitoral da América Latina a um “antipetismo” supostamente relacionado a um “desvio de conduta” do partido e, desde então, tal discurso continua a ser alimentado recomendando-se retificações supostamente moralizantes (por vezes, esses exercícios de “autocrítica” vêm de setores do próprio PT). Por outro lado, não é possível desconsiderar o salto qualitativo vivido pelo agrupamento político: a partir do golpe, um de cada cinco prefeitos do PT eleitos em 2012 deixou o partido e se filiou a outra organização num processo que pode ser considerado uma real depuração política de elementos oportunistas, filiados apenas porque se tratava do grupo que estava à frente do governo federal. Em outras palavras, o partido teve condições de se solidificar internamente, motivo pelo qual teve a capacidade de conduzir importantes campanhas políticas no período, como a do “Lula livre” ou de resistência às reformas no primeiro semestre de 2019.

É preciso, contudo, pontuar uma ressalva: esse conjuntural refinamento partidário produz-se numa estrutura marcada por uma profunda mudança do perfil da classe trabalhadora. Nas últimas décadas, a automatização produtiva levou a uma diminuição do operariado industrial e um superdimensionamento do setor de serviços, caracterizado pelo emprego de trabalhadores com uma formação prático-educacional diferenciada. Por esse motivo, apesar do avanço da precarização das condições trabalhistas, há certa dificuldade no desenvolvimento da consciência de classe do proletariado em geral, uma vez que parte do crescente exército industrial de reserva tem-se atraído pelo discurso empresarial que opõe “empreendedores” a “excluídos”. Em relação aos primeiros, vende-se um discurso meritocrático neoliberal fácil sintetizado na “ideologia coach” de superação da precariedade por autodeterminação e resiliência. Quanto aos últimos, apresentam-se múltiplos movimentos com fragmentadas pautas identitárias, debatendo a ressignificação de subjetividades feridas e exigindo “inclusão” no sistema. Ambos constituem uma barreira de contenção ao desenvolvimento de uma consciência em si e para si da classe trabalhadora.

Em 2020, diante do cenário de profundo retrocesso social, político e econômico com o avanço do fascismo, era fundamental que a principal representação institucional da classe operária se recuperasse eleitoralmente. Como percebido nas eleições anteriores, seu vácuo político não foi ocupado por uma “nova esquerda” – ainda que alguns agrupamentos e “sábios” da pequena-burguesia radicalizada acreditem nessa tese importada da Espanha da relação PSOE-Podemos. Efetivamente, verificou-se o avanço da direita mais conservadora. O curioso é que setores da direita neoliberal tradicional nas eleições deste ano vivenciaram um grande refluxo: PMDB e PSDB saem como os grandes derrotados deste pleito, ainda que a grande imprensa tente negá-lo. A despeito da projeção inicial desses agrupamentos políticos, aderir ao golpe implicou seu próprio enfraquecimento, uma vez que abriu espaço para que seus setores mais reacionários se projetassem internamente. No PSDB, por exemplo, isso se revelou na disputa entre os chamados “cabeças pretas” – novos quadros mais reacionários da burguesia que tinham personagens como João Doria (SP) ou Daniel Coelho (PE) à frente – e os “cabeças brancas” – setores mais antigos que se projetaram no governo FHC(Fernando Henrique Cardoso). O PT, por sua vez, cresceu: já tinha conseguido eleger quatro governadores em 2018 e, desta vez, marcou presença em municípios como Contagem, Juiz de Fora (MG), Diadema e Mauá (SP). É verdade que o número de municípios em que foi vitorioso reduziu (183), mas, numa circunstância de pulverização de votos, sobressaiu-se em cidades mais populosas (como calculou Breno Altman, o partido que vencera em apenas uma cidade com mais de 200 mil habitantes, passou de 413.418 munícipes governados para 2.146.543 cidadãos neste ano, o que representa um salto de 419,22%). Seus índices ainda não são os de 2004, 2008 ou 2012, momento em que ocupava também a presidência e conduzia seu projeto social-democrático, entretanto, já se verificou uma recuperação em relação a 2016 e, como se evidencia com a retomada de diálogo com outros setores políticos, está disposto a negociar posições comuns para que se refreie o contínuo ataque conduzido desde o governo de Michel Temer.

Avaliando os números de 2020, o PMDB/MDB que administrava 1044 municípios foi para 784 (uma queda de 24,9%) e o PSDB foi de 799 para 520 (queda de 34,9%). No tocante ao número de eleitores, o PSDB teve 17.733.429 votos para prefeito em 2016 e caiu para 10.083.207 em 2020, uma queda de 43,14% e o MDB foi de 15.115.431 para 10.335.583, queda de 31,62%. O PSB, da mesma forma, retraiu: de 403 para 249 prefeituras (queda de 38,21%) e de 8.336.371 votos para 5.043.562, redução de 39,5%. Os grandes vitoriosos do pleito foram DEM (de 268 a 467 prefeituras, aumento de 74,25%), PP (de 495 a 685, aumento de 38,38%), PSD (539 contra 655, aumento de 21,52%) e Republicanos (de 105 a 221, aumento de 110,4%). O DEM, herdeiro histórico da Arena, está à frente das duas casas do Legislativo Federal e lidera o assim chamado “centrão”, com quem o bolsonarismo foi levado a se aliar no momento do afastamento de seu “superministro” Sérgio Moro, uma ponte entre o governo e setores importantes da caserna. O partido saiu vitorioso em quatro capitais (Salvador, Rio de Janeiro, Curitiba e Florianópolis) e disputa o segundo turno, com vantagem, em Macapá1. O PSD se projetou em Belo Horizonte e Campo Grande; o PP levou Rio Branco e João Pessoa; e o partido Republicanos venceu a disputa eleitoral em Vitória contra o candidato do PT João Cozer. PSD e PP, assim como o DEM, são herdeiros da extrema direita ditatorial, enquanto o Republicanos tem vínculos sólidos com o bolsonarismo e está ligado à Igreja Universal.

Ainda no mesmo espectro político, é preciso registrar que, apesar de continuarem eleitoralmente pequenos, a quantidade de votantes do PSL, PRTB e Patriotas aumentou respectivamente em 463,9% (de 487.592 para 2.749.560), 393,7% (de 162.418 para 801.865) e 229,3% (de 566.780 para 1.866.519, no total). Percebe-se então que apesar de os candidatos diretamente indicados por Bolsonaro não terem se projetado tanto, os agrupamentos fascistas experimentaram crescimento significativo. É digno de nota que, depois de Covas, Arthur do Val tenha sido o segundo candidato com mais recursos em doações de empresários no município de São Paulo, principalmente de José Salim Mattar Jr, fundador da locadora de carros Localiza, e Ricardo Rittes, um dos diretores da Ambev, conseguindo, com isso, mais de 500 mil votos.

O perfil desse financiamento político-partidário no município mais rico do país revela as inclinações da lumpemburguesia nacional e indica tendências para eleições futuras. Nos partidos organicamente vinculados às classes dominantes locais (PSDB e MDB), as alas mais direitistas ganharam espaço e podem ameaçar politicamente setores tradicionais. Além disso, em razão da desindustrialização operada no país pela Lava Jato e reforçada pela crise orgânica, os partidos herdeiros da ditadura ligados diretamente ao agronegócio, setores de minas e energia e construção civil cresceram e figuram, ao lado daqueles, como opções preferenciais dessas mesmas classes dominantes. No caso de fracasso dessas “primeiras opções”, a segunda escolha parece inclinar para o fascismo miliciano-neopetencostal, atestando que, num contexto de aguçamento da crise, essa lumpemburguesia descarta categoricamente o diálogo com a social-democracia. Ademais, pelo fato de a projeção de tais candidatos depender de campanhas virtuais, fica exposto o papel crescente desempenhado pelos algoritmos nos processos eleitorais.

Não por acaso, em São Paulo, um candidato que contava com 17 segundos de propaganda eleitoral na televisão conseguiu avançar para o segundo turno, com base em difusão publicitária na internet. O candidato Guilherme Boulos, do PSOL, concorreu com Bruno Covas, do PSDB.

No primeiro turno, Covas conseguiu 1.754.013 votos (32,85%) de 6,35 milhões contra 1.080.736 (20,24%) de Boulos, enquanto o terceiro colocado, Márcio França (PSB) conquistou 728.441 votos. O PT foi pouco expressivo na capital, embora tenha superado as projeções das pesquisas de intenção de voto e ficado com 8,65%. É preciso registrar, porém, que conseguiu índices significativos em outras duas grandes cidades do Estado: Guarulhos e Campinas. Na primeira, seu candidato Elói Pietá disputou o segundo turno com Gustavo Costa do PSD e, na segunda, a despeito dos mais altos índices de abstenção já registrados (30,8%), o candidato do PT Pedro Tourinho ficou com 20,49% dos votos válidos contra 21,86% do segundo colocado, Rafael Zimbaldi (poderia figurar em segundo turno se o PCdoB, que ficou com 2,59% dos votos, tivesse se aproximado eleitoralmente).

Na capital de São Paulo, a disputa se deu entre o candidato do PSDB e de Doria, com ampla vantagem eleitoral, e o PSOL, que dispunha de apenas duas semanas para lograr uma projeção expressiva e sair vencedor. A campanha milionária de Covas contou com doações de construtoras, grandes empresas e grupos financeiros, como Mitre Realty, Grupo Rezek, Crefisa, Cosan, Eztec, Cyrela e Banco Safra. Boulos fez uma campanha fortemente alicerçada nas doações ao seu partido ou financiamento coletivo via internet e, no segundo turno, contou com o apoio de partidos como PT, PDT, PSB e PCdoB. França, de uma ala direita do PSB e gozando do apoio do ex-governador Geraldo Alckmin, ficou com 13,65% dos votos no primeiro turno e optou pela neutralidade para não se indispor nem com seu padrinho político, nem com seu partido. No primeiro turno, Covas venceu nas 58 zonas eleitorais do município. O candidato do PT, Jilmar Tatto, ficou em segundo lugar em apenas duas zonas (a sul, em Grajaú e Parelheiros) enquanto Boulos teve bons aproveitamentos no centro e no Capão Redondo, figurando em segundo lugar em quase todas as zonas. Covas se distanciou mesmo de Boulos na quinta zona eleitoral (Jardins, Vila Olímpia e Itaim Bibi) e em bairros como Vila Mariana e Mooca. No segundo turno, Covas conquistou 50 das 58 zonas eleitorais com 59,38% dos votos, enquanto Boulos se sobrepôs na periferia da zona sul e contou com 40,62% dos votos válidos, no que pode ser considerado um desempenho até muito expressivo.

A campanha milionária de Covas num contexto de ascensão de novos quadros da direita política já indicava que o tucano seria o provável vencedor do segundo turno, ainda mais no epicentro econômico do golpe, espaço de FIESP e Bovespa. O personagem escolhido como seu vice foi Ricardo Nunes, que, além de ter sido acusado de violência doméstica, ameaça e injúria pela esposa em 2011, participou da Máfia das Creches, fez campanha pelo inconstitucional Escola Sem Partido e é membro da Bancada da Bíblia. Um aceno dos “cabeças pretas” ao bolsonarismo...

Em suma, apesar da derrota efetiva de candidatos apontados por Bolsonaro nesse último processo eleitoral, o fascismo bolsonarista não é uma força a ser desprezada. Por mais que o atual ocupante do Palácio da Alvorada não seja um representante orgânico da lumpemburguesia brasileira, essas eleições indicam que as posições da mesma inclinaram radicalmente para a direita desde 2012 e que a tendência será o aumento dos já constantes ataques contra a classe trabalhadora. O ponto positivo desse cenário é que o previsível aguçamento das contradições sociais e o desgaste da alternativa eleitoral podem ser instrumentalizados por embates que vão além de saídas meramente institucionais.

 

1Nota do editorial: o texto foi redigido antes do término do pleito em Macapá.

 


Expediente

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