Ano 01 nº 67/ 2021: Anticomunismo Militar e a Crise de 1955 - Lincoln Secco

boletim 67


Mundo acadêmico ...

 

ANTICOMUNISMO MILITAR E A CRISE DE 1955

 

Lincoln F. Secco

Professor do Departamento de História - USP

 

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Colagem por Canellas

 

A história republicana brasileira está repleta de intervenções militares, a começar pela questão militar que conduziu ao golpe que derrubou a monarquia e instalou a República em 15 de novembro de 1889. Mas em 2016 foi a primeira vez em que um militar concorreu às eleições presidenciais de maneira competitiva desde que o Marechal Henrique Teixeira Lott perdeu as eleições para Jânio Quadros em 1960.

Antes, um militar foi eleito pelo voto popular à presidência: general Dutra, em 1945. Houve o Marechal Hermes da Fonseca eleito em 1910 numa crise do regime oligárquico da República Velha (1889-1930). Naquela ocasião as classes dominantes se dividiram e os dois Estados que compartilhavam a hegemonia, São Paulo e Minas Gerais se separaram momentaneamente. Também os dois primeiros presidentes da República foram militares, os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, mas não foram eleitos por voto direto. E mesmo no caso de Hermes da Fonseca, a eleição era reduzida a 2,5% da população e sujeita a notórias fraudes.

É depois do chamado ciclo revolucionário (1922-1938) que os militares constituíram uma unidade política baseada no anticomunismo e na ideologia da hierarquia e da disciplina e sustentaram a ditadura do Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas até derrubá-lo em 28 de outubro de 1945, pouco depois do dia da lealdade na Argentina. A coincidência é importante porque Getúlio Vargas havia perdido o apoio dos setores da elite liberal e do seu dispositivo militar. Em contrapartida havia se aproximado de suas bases sindicais e de uma concepção trabalhista e de esquerda, sendo por isso acusado de manter relações com Perón.

Foi a figura de Getúlio Vargas, o líder mais popular da história do Brasil até então, que impediu as Forças Armadas em bloco a se insurgirem contra a política popular. A solução de compromisso foi o governo Dutra, conservador e anticomunista como o próprio Vargas fora mas que não atacou a estrutura corporativa sindical e nem as leis trabalhistas. Durante o Governo Dutra, o Partido Comunista do Brasil foi colocado na ilegalidade e as greves reprimidas. Mas, diferentemente da Argentina, o PCB apoiou Vargas em 1945 e, apesar de recuos e oscilações, incorporou-se ao campo trabalhista gradualmente e apoiou a candidatura de Juscelino Kubistchek em 1955.

Getúlio Vargas voltou ao poder em 1950 “nos braços do povo”. Embora sua vitória fosse contestada por políticos do principal partido direitista, a União Democrática Nacional (UDN), pela imprensa conservadora e por oficiais militares, sua posse foi garantida por setores do exército legalistas e nacionalistas.

Da mesma forma, após o seu suicídio, diante da iminência de um golpe militar em agosto de 1954, poucos meses depois do golpe contra Arbenz na Guatemala e um ano antes do que derrubou Perón na Argentina, o novo governo do vice-presidente Café Filho não teve sustentação militar para inverter completamente o rumo estatizante e desenvolvimentista da Era Vargas. Em novembro de 1955, após as eleições que deram a vitória a Juscelino Kubistchek, o Marechal Teixeira Lott liderou o contra golpe militar que garantiu a posse do novo presidente, posto que setores militares intentavam um novo golpe para implantar uma ditadura militar.

O novo governo, tendo Lott como Ministro da Guerra, enfrentou duas sedições militares da Aeronáutica em regiões desoladas do país: Jacareacanga, na Amazônia, e Aragarças, em Goiás. Neste caso, os rebelados se refugiaram depois em Buenos Aires e na Bolívia, sendo posteriormente anistiados. Também houve a trama de um sequestro do próprio presidente, mas que não foi colocada em prática1.

 

Acontecimentos

 

A importância do contra golpe de 1955 foi mostrar uma séria divisão das Forças Armadas. Um Movimento Militar Constitucionalista se estruturou com um comando central e comandos regionais, além de setores da Marinha e da Aeronáutica. Estabeleceu contatos com imprensa, congresso e personalidades civis e se considerava preparado para responder a vários tipos de golpe que poderiam ser desencadeados2.

Na versão do historiador Helio Silva, todo o dispositivo militar que garantiu a posse do novo presidente eleito se deveu à atuação do próprio Marechal Lott e do General Odilio Denis contra o motim que se armava na Marinha com apoio de parte do Exército. No entanto, Silva acrescenta uma informação relevante: embora o Movimento Militar Constitucionalista em seu boletim interno apontasse o bloco de partidos (Socialista3, Liberal, Democrata Cristão e UDN) ao lado do golpismo, no momento crucial tanto a Câmara, quanto o Senado destituíram o Presidente da Câmara Carlos Luz (que substituíra o vice Café Filho) e o próprio Café Filho. Assim, deu posse ao Presidente do Senado Nereu Ramos, a única autoridade na linha sucessória que aceitava entregar o poder legalmente ao presidente eleito Juscelino Kubistchek.

Note-se que a UDN ficou isolada. Já no dia 21 de outubro de 1955, poucos dias antes do contra golpe de Lott, os líderes dos principais partidos políticos assinaram um manifesto contra o golpe que se armava para impedir a posse de Juscelino. Logo depois todos os líderes partidários estavam na mesma posição anti-golpista, com a exceção da UDN4.

Portanto, foi mediante uma combinação do dispositivo militar com a hegemonia parlamentar que os partidários da legalidade conseguiram sustar o golpe. Lembre-se que a intervenção dos militares na vida política jamais se fez sem o conluio com líderes da elite civil empresarial, política e da imprensa.

E a solução militar não foi obra simplesmente de um general nacionalista no posto de Ministro da Guerra. O historiador Nelson Werneck Sodré, naquela altura major, escreveu depois que na noite de 10 para 11 de agosto de 1955, quando Carlos Luz havia demitido o Marechal Lott, chefes militares com responsabilidade de comando reunidos em diversos locais decidiram apoiar a continuidade de Lott no Ministério da Guerra5. O legalismo foi vitorioso porque os golpistas representavam naquele momento uma grave ameaça à disciplina sem que houvesse a expectativa de uma “revolução” em que se reorganizasse todo o país através do poder militar.

 

Interpretações

 

O contragolpe não foi dirigido por uma esquerda militar. Lott atuou como Totem da instituição ou estabelecimento militar, na acepção de Oliveiros Ferreira. O estabelecimento militar não é neutro e depende de uma forma mentis fortemente marcada pelo anticomunismo. Por ser “anti” ele não define de antemão o “pró” e pode haver clivagens de interesses. Outra teria sido a solução de 1955 se uma esquerda militar constitucionalista tivesse dirigido o contra golpe, mas não foi assim.

Maria Vitoria Benevides se contrapôs ao “mito do legalismo” de 1955 em seu livro sobre a trajetória da UDN. Em agosto de 1954 o grupo militar era diferente daquele que reagiu em novembro de 1955, mas o objetivo seria o mesmo: “a tomada em mãos da condução do processo político”. Mas diante da falta de unidade militar “o objetivo real do 11 de novembro teria sido adiar esse momento, ainda não chegara a hora”. A mudança de posição do General Odylo Denis, que em 1961 tentou impedir a posse do vice-presidente João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, seria a prova disso6. Karla Karloni argumentou de forma mais precisa que Denis agiu a favor de Lott porque temia que o Movimento Militar Constitucionalista desse seu próprio “golpe revolucionário” na madrugada do dia 11 de novembro7. A identificação daquele movimento com a esquerda incomodava Denis.

No entanto, a trajetória posterior de Lott poderia ser invocada para afirmar o contrário, afinal ele se opôs novamente ao golpe em 1961 e foi preso por isso. Reduzir a ação militar à de um estamento com finalidades próprias apenas, deixa de lado as clivagens políticas internas que refletem, em última análise, projetos políticos e ideológicos e interesses de classes. Um golpe sem os militares não teria eficácia. Mas um puramente militar também não, como demonstraram as tentativas anteriores a 1964. Só um golpe civil e militar poderia ser bem sucedido.

O Cientista político Oliveiros Ferreira, que combinou sua carreira de professor da USP com a de porta-voz do pensamento de direita no jornal O Estado de S. Paulo, foi certeiro ao definir que o movimento de agosto de 1954 foi derrotado não apenas pelo suicídio de Vargas, mas porque a uma nação em desenvolvimento “não se pode oferecer apenas a moralização dos costumes administrativos como programa”8. Afinal, a Era Vargas consolidou uma forma mentis positivista e um consenso hegemônico desenvolvimentista dentro do qual a própria oposição da UDN teve que se mover, ora aceitando algumas teses nacionalistas (como a defesa da Petrobras), ora se isolando num discurso moralista contra a corrupção sem densidade eleitoral, como mostrou Maria Vitoria Benevides.

Quando a disputa interna foi decidida por um golpe do setor majoritário do Exército, apoiado nos Estados Unidos e na elite liberal, ocorreram expurgos permanentes tanto no mundo civil quanto no meio militar. Entre 1964 e 1970, foram punidos 1487 militares, sendo: 53 oficiais generais, 274 oficiais superiores, 111 oficiais intermediários, 113 oficiais subalternos e 936 entre sargentos, suboficiais, cabos, marinheiros, soldados e taifeiros9.

 

Sistema Partidário

 

Ao contrário do que o senso comum disseminado na imprensa asseverou muitas vezes, o sistema partidário brasileiro foi bastante coerente em sua trajetória desde a sua formação em 1945. No período 1945-1964, três grandes partidos consolidaram campos políticos estabelecidos. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ocupou a área sindical e “popular de esquerda” com discurso voltado aos trabalhadores urbanos; o PSD ocupou o centro, sem ideologia definida e com base na oligarquia rural e nos proprietários rurais; “o fato do PSD representar o poder torna secundária a questão da ideologia”10.

Por fim, a UDN voltou-se para as classes médias, combateu o tema da corrupção, defendeu a moralidade e manteve permanente contato conspiratório com setores militares, o que tingiu o seu liberalismo com tinturas de estatismo. Um liberalismo bastante ambíguo e pragmático. Socialmente, os dois últimos partidos não se diferenciavam. Somente quando se instalou uma crise de regime em 1964, a maioria do PSD aderiu ao golpismo da UDN e todo o terreno político fundado no consenso desenvolvimentista e numa democracia racionada ou restrita cedeu lugar à modernização conservadora e ditatorial.

O processo de urbanização impediu que a aliança PSD – UDN se concretizasse porque ambos disputavam o eleitorado conservador do campo, enquanto o PTB podia oferecer os votos urbanos e populares, com a exceção do estado de São Paulo, onde vicejou uma direita populista com forte enraizamento regional. Esta foi representada por Ademar de Barros e Jânio Quadros que pertenciam a partidos, mas agiam como caciques em qualquer legenda. O eleitorado cresceu 18% entre 1945 e 196411.

O PSD é o grande fator de estabilidade política porque sua maioria não dependia da sigla ou de um programa, mas do poder local que exercia. Assim como o PMDB mais tarde, ele exibia uma “unidade sem união”12. Seu programa era meramente formal, embora tivesse a “ala moça”, um grupo reformista.

O PSD garantia o apoio dos coronéis13, embora o coronelismo fosse uma realidade em decadência diante da centralização do estado após a Revolução de 1930. A expansão da sindicalização rural, das Ligas Camponesas em Pernambuco, de conflitos agrários em São Paulo, Paraná e Goiás levaram ao declínio do próprio PSD. Os coronéis são a classe política com papel marginal na economia (Agreste e Sertão de Pernambuco, por exemplo), enquanto a UDN representa os senhores de engenho e os usineiros (apesar da divergência de interesses entre eles). Os políticos udenistas e pesedistas atuavam na estrutura governamental para bloquear a extensão da legislação trabalhista ao campo.14

PSD e UDN elegeram 81% dos deputados federais em 1945 e 51% em 1962. Enquanto o PSD tinha seus coronéis, o PTB começou a engajar o dono da venda, a parteira, o ferroviário, o padre etc15. A crise que levou ao golpe de 1964, diferentemente do que aconteceu em 1955, teve ampla participação do Congresso que buscou legalizar a intervenção militar ao declarar que o presidente Goulart havia abandonado o cargo.

O conflito entre um Congresso conservador e um executivo pressionado por demandas reformistas de movimentos sociais se acentuou no início dos anos 1960. As frações empresariais se uniram a militares conspiradores e à imprensa para preparar minuciosamente uma futura intervenção das Forças Armadas. A preparação civil do golpe de 1964 foi documentada pelo cientista político uruguaio Renné Armand Dreyfuss16.

O sistema de alianças ruiu no Congresso porque no momento em que os grupos dominantes perceberam que seus privilégios fundamentais estavam em questão (a propriedade da terra e o controle total das decisões empresariais de investimento e auferimento dos lucros), seus representantes colocaram em segundo plano os privilégios de relacionamento com o governo central e foram seduzidos pelo histórico engajamento golpista da UDN.

O primeiro ditador em 1964, Marechal Castelo Branco, aluiu as bases do Partido Fardado17 quando impôs o limite de permanência de dois anos num posto para os generais. Góis Monteiro ficara 14 anos no seu posto, mas doravante os generais só puderam atuar em cada degrau do generalato por dois anos (Brigada, Divisão e Exército), totalizando apenas seis anos. Isso impediu que qualquer general exercesse o papel de líder político dos oficiais18.

 

 

1Silva, Helio, O Poder Militar. Porto Alegre, LPM, 1984, p. 167.

2Boletim informativo nº 11, do Movimento Militar Constitucionalista, 10 de setembro de 1955. Manuscrito (datilografado), Arquivo Cpdoc, GV dc 1955.09.10

3O líder do Partido Socialista, João Mangabeira, depois se posicionou favorável à legalidade, embora sem assinar o manifesto contra o golpe. Havia setores de esquerda anti- Vargas. O próprio PCB se opusera em vários momentos a Vargas. Mas depois apoiou a candidatura de Juscelino que era do PSD, o Partido social Democrático que compunha oc entro político. Mas houve intelectuais de esquerda que apoiaram o golpe, como Mário Pedrosa. Carone, E. A República Liberal. Evolução Política. São Paulo: Difel, 1985, p.105.

4Silva, H. O Poder Militar, p. 103.

5Sodré, N. W. História Militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 436.

6Benevides, M.V. A UDN e o Udenismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p.139. Cabe recordar que, embora próximo ao governo Getúlio Vargas, Denis o teria alertado contra a entrega de um Comando no Sul do país para o General Estilac Leal. cf. Carta de Ernesto Dornelles a Getúlio Vargas transmitindo apreensão do General Denis face possibilidade do General Estilac Leal receber um comando militar no sul do país. CPDOC, FGV c 1953.06.00/1, junho de 1953.

7Carloni, Karla. Forças armadas e democracia no Brasil. O 11 de novembro de 1955. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, p.116.

8Apud Oliveira, Eliézer R. “Os militares como atores políticos na obra de Oliveiros S. Ferreira”, in: Kritsch, R.; Mello, L. e Vouga, C (Orgs). Oliveiros Ferreira: Um Pensador da Política. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 1999, p.54.

9Vasconcelos, Cláudio Beserra de. A trajetória nacionalista dos oficiais cassados após o golpe de 1964. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011.

10Carone, E. A República Liberal: Instituições e Classes Sociais. São Paulo: Difel, 1985, p.300.

11Benevides, M. V. O Governo Kubitschek. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p.136.

12Secco, Lincoln. “El golpe de abril de 2016”. Revista Política Latinoamericana, Buenos Aires, n. ja/jul. 2016

13O termo remete aos coronéis da extinta Guarda Nacional (1831-1916). Os sertanejos davam o tratamento de coronel a todo e qualquer chefe político local. É o mesmo fenômeno denominado caudilhismo (Rio Grande do Sul) ou chefismo (vale do São Francisco) e possivelmente o caciquismo na Espanha. Carone, E. “Coronelismo: definição histórica bibliografia”. Rev. adm. empres. vol.11 no.3 São Paulo July/Sept. 1971. Sobre o PSD, ver: Hipólito, L. PSD. De Raposas e Reformistas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985. O livro projeta o PMDB da “transição democrática” no velho PSD, visto como garantidor da estabilidade política.

14Benevides, M. V. O Governo Kubitschek. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 113.

15Id. ibid., p. 115.

16Dreyfuss, R. A. 1964: A Conquista do Estado. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

17Oliveiros Ferreira, Vida e Morte do Partido Fardado, São Paulo, Senac, 2000, p.43.

18Secco, L. “Golpe de toga”. Le Monde Diplomatique, Edição – 121, agosto, 2017 .

 


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