Ano 01 nº 68/ 2021: Pandemia e Solidariedade Operária (Porto Alegre - 1918) - Frederico Bartz

boletim 68


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PANDEMIA E SOLIDARIEDADE OPERÁRIA (PORTO ALEGRE - 1918)

Frederico Duarte Bartz

Doutor em História e Técnico em Assuntos Educacionais - UFRGS

 

Em 1917 o Brasil foi palco de uma grande onda grevista entre os meses de julho e setembro daquele ano. O principal movimento, de caráter massivo, se deu em São Paulo com a Greve Geral iniciada em 9 de julho depois da morte do sapateiro anarquista José Martinez. Esta greve foi preparada anteriormente pela ação de militantes anarquistas que atuavam nas ligas operárias de bairro e nas ligas de inquilinos1. Como desdobramento desse movimento, foi deflagrada a Greve Geral na cidade de Porto Alegre, a partir do final daquele mesmo mês de julho, em uma conjuntura em que o proletariado tomou o controle da cidade2. No mês de setembro uma Greve Geral foi deflagrada na cidade de Recife, também com um intenso grau de mobilização3.

Um dos elementos encontrados em diversos desses movimentos, para além de reivindicações especificamente trabalhistas (como 8 horas de trabalho e aumentos salariais), foram as questões relacionadas às condições de vida da classe trabalhadora. O que se verificou naquela conjuntura, marcada pela crise econômica, sob os efeitos da Guerra Mundial, foi a desvalorização dos salários combinada com um aumento do preço dos alimentos, que eram exportados para a Europa em Guerra e muitas vezes faltava nas mesas da classe operária.

Essa deterioração das condições de vida já estavam presentes nas reivindicações operárias em janeiro daquele ano, quando havia sido fundado na Capital Federal um Comitê Geral de Agitação e Propaganda Contra a Carestia e o Aumento de Impostos, promovido pelo Centro Libertário e pela Federação Operária do Rio de Janeiro, dando origem a uma série de mobilizações nos meses seguintes4. No inverno de 1917, essas bandeiras se combinariam com outras reivindicações, articulando-se em um gigantesco movimento.

Na cidade de Porto Alegre a Greve Geral de 1917 havia se consubstanciado em algumas conquistas, como aumentos salariais e promessas do Governo Estadual e Municipal em combater a especulação com o preço dos alimentos5. No entanto, o processo de deterioração das condições de vida não havia sido estancado. Prova disso é que no mês de agosto de 1918 a Federação Operária do Rio Grande do Sul, a União Geral dos Trabalhadores e a União Metalúrgica se reuniram e demandaram ao Governo Estadual uma pauta com pontos similares ao ano anterior, como a baixa de 40% nos gêneros de primeira necessidade6.

Foi em uma situação marcada por uma grande pobreza, por condições sanitárias muitas vezes insalubres e pelo descaso das autoridades, que a classe trabalhadora teve de enfrentar a pandemia de Gripe Espanhola nos últimos meses de 1918. Em uma cidade com grandes concentrações proletárias como São Paulo, se abateu um verdadeiro estado de calamidade pública, com hospitais e cemitérios lotados, sendo registrada a morte de mais de oito mil pessoas, a maioria delas trabalhadores imigrantes7.

Na cidade de Porto Alegre, a influenza também fez suas vítimas preferencialmente entre os mais pobres. Os militantes operários tinham plena consciência disso, tanto é verdade que o manifesto de criação da União Maximalista (um dos primeiros grupos comunistas do país), fundado em novembro, tinha como título “Do Canhão à Peste”. Com efeito, os maximalistas apontavam a origem da pandemia e a culpa de sua fatal propagação nas condições de vida precárias da classe trabalhadora, premida pela pobreza e pela exploração. A crise econômica, o desastre da Guerra, havia gerado o flagelo da Gripe na Europa, mas também havia feito surgir a possibilidade de superação dessas condições com a Revolução Russa, vista como caminho para a emancipação humana8.

Nesse contexto a Federação Operária do Rio Grande do Sul (FORGS) e a União Metalúrgica promoveram uma campanha de arrecadação de dinheiro para a compra de alimentos entre novembro e dezembro de 1918, organizando a entrega destes produtos para as famílias mais necessitadas. Os alimentos eram entregues em pacotes mediante a apresentação de cartões distribuídos previamente para a população. As entidades operárias não foram as únicas a se engajarem nas campanhas de arrecadação e distribuição de donativos, mas sua ação deve ser melhor compreendida.

Em 20 de novembro, o trabalho de arrecadação da Comissão de Socorros da Federação Operária era noticiado pelo jornal A Federação, assim como a distribuição que seria efetuada na sede da FORGS, na Avenida Bonfim, n.489. Nesse mesmo dia a Federação Operária e a União Metalúrgica se reuniram para promover a distribuição de cartões na sede dessa última associação, na Rua do Parque, no Arrabalde dos Navegantes. Essa ação tem grande significado, pois esse bairro estava se tornando a principal concentração industrial da cidade. Os pacotes distribuídos vinham com 2 quilos de feijão, de açúcar e de arroz; 1 e ½ de farinha de mandioca e de batatas; ½ quilo de café; 1 pacote de farinha de maizena; 1 quilo de banha e de charque; 50 gramas de chá preto e 2 velas10.

No dia 25, ficava-se sabendo que as Comissões formadas pela Federação Operária já haviam arrecadado uma quantia superior à 18 Contos de Reis. A distribuição de alimentos também seria realizada na região industrial, no Teatro Helios, na Rua São Pedro, que havia cedido seu salão especialmente para essa finalidade11. No dia seguinte os membros da FORGS e da União Metalúrgica percorreram juntos os Arrabaldes de Navegantes e de São João para arrecadar mais fundos para a campanha12.

Além dos alimentos, a Sociedade Médica Riograndense também doava remédios para os sócios da FORGS13. Nesse mesmo dia também era anunciada a distribuição de víveres em outra sede da União Metalúrgica, na Rua São Pedro. No dia 5 de dezembro, pode-se ter uma ideia do volume dessas doações, pois naquele dia foram entregues 400 cartões para a população14. No dia 13 de dezembro, depois de mais de três semanas de campanha, foram anunciadas as últimas distribuições por parte da Federação15.

A Federação Operária havia sido “conquistada”, depois da Greve Geral de agosto de 1918, pelos militantes anarquistas. Tradicionalmente existiu uma crítica às ações beneficentes por parte dos libertários, partidários do sindicalismo revolucionário durante a Primeira República, mas a grande campanha de arrecadação e de distribuição de alimentos entre os meses de novembro e dezembro de 1918, em plena pandemia da Gripe Espanhola, deve ser colocada em perspectiva.

Desde o ano de 1917 o movimento operário brasileiro vinha enfrentando os desafios da carestia de vida e da pobreza crescente, que aprofundava a situação de exploração existente nas relações de trabalho. A luta por condições de vida melhores, por segurança alimentar, por melhorias no sistema de transporte e por habitação, que havia marcado os movimentos grevistas anteriores, certamente aguçou a necessidade de agir na situação de emergência sanitária que marcou a pandemia de 1918.

Dessa forma, além das Greves Gerais que caracterizaram o movimento operário em Porto Alegre naquele período, também deve ser resgatada a memória da campanha de distribuição de alimentos efetuada pelos militantes entre novembro e dezembro de 1918, como um notável episódio de solidariedade de classe, em um dos momentos mais difíceis para o operariado porto-alegrense.

 

mascara

Distribuição de alimentos pela FORGS

(Revista Máscara, edição de novembro de 1918)

 

1LOPREATO, Christina Roquete. O espirito da revolta: a greve geral de 1917. São Paulo: Annablume, 2000. pp. 97-124.

2 SILVA Jr., Adhemar Lourenço da. “Povo! Trabalhadores!”: tumultos e movimento operário (estudo centrado em Porto Alegre, 1917). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, 1994. (Dissertação de Mestrado). pp. 302-340.

3REZENDE, Antônio Paulo. A classe operaria em Pernambuco: cooptação e resistência (1900-1922). Campinas: PPG em História da Unicamp, 1981. (Dissertação de Mestrado). pp. 70-84.

4 VELASCO E CRUZ, Marília Cecília. Amarelo e Negro: matizes do comportamento operário na República Velha. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1981. (Tese de Mestrado). pp. 80-144.

5 BODEA, Miguel. A greve geral de 1917 e as origens do trabalhismo gaúcho: ensaio sobre o pré-ensaio de poder de uma elite política dissidente a nível nacional. Porto Alegre: L&PM, 1978. pp. 35-46.

6 PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. “Que a união operária seja a nossa pátria!”: história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Santa Maria: Editora da UFSM; Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. p. 345.

7 HARDMAN, Francisco Foot e LEONARDI, Victor. História da Indústria e do Trabalho no Brasil: das origens aos anos vinte São Paulo: Ática, 1991. p. 159.

8 BARTZ, Frederico Duarte. O horizonte vermelho: o impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul (1917-1920). Porto Alegre: Sulina, 2017. p. 184.

9 A Federação: orgam do Partido Republicano. Porto Alegre, 20 de novembro de 1918, p.3.

10 A Federação: orgam do Partido Republicano. Porto Alegre, 21 de novembro de 1918, p.4.

11 A Federação: orgam do Partido Republicano. Porto Alegre, 25 de novembro de 1918, p.6.

12A Federação: orgam do Partido Republicano. Porto Alegre, 26 de novembro de 1918, p.6.

13 A Federação: orgam do Partido Republicano. Porto Alegre, 02 de dezembro de 1918, p.6.

14 A Federação: orgam do Partido Republicano. Porto Alegre, 05 de dezembro de 1918, p.5.

15 A Federação: orgam do Partido Republicano. Porto Alegre, 02 de dezembro de 1918, p.2.

 

Jornais Consultados:

 

A Federação. Porto Alegre (1918)

Revista Máscara. Porto Alegre (1918)

 

Bibliografia:

BARTZ, Frederico Duarte. O horizonte vermelho: o impacto da Revolução Russa no movimento operário do Rio Grande do Sul (1917-1920). Porto Alegre: Sulina, 2017.

BODEA, Miguel. A greve geral de 1917 e as origens do trabalhismo gaúcho: ensaio sobre o pré-ensaio de poder de uma elite política dissidente a nível nacional. Porto Alegre: L&PM, 1978.

HARDMAN, Francisco Foot e LEONARDI, Victor. História da Indústria e do Trabalho no Brasil: das origens aos anos vinte. São Paulo: Ática, 1991.

LOPREATO, Christina Roquete. O espirito da revolta: a greve geral de 1917. São Paulo: Annablume, 2000.

PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. “Que a união operária seja a nossa pátria!”: história das lutas dos operários gaúchos para construir suas organizações. Santa Maria: Editora da UFSM; Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.

REZENDE, Antônio Paulo. A classe operaria em Pernambuco: cooptação e resistência (1900-1922). Campinas: PPG em História da Unicamp, 1981. (Dissertação de Mestrado)

SILVA Jr., Adhemar Lourenço da. “Povo! Trabalhadores”: tumultos e movimento operário (estudo centrado em Porto Alegre, 1917). Porto Alegre: PPG em História da UFRGS, 1994. (Dissertação de Mestrado)

VELASCO E CRUZ, Marília Cecília. Amarelo e Negro: matizes do comportamento operário na República Velha. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1981. (Tese de Mestrado)

 

 

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