Coluna Socialista ...
ÁGUA NO MOINHO DO RESSENTIMENTO DE CLASSE
Antonio B. Canellas
um observador
por Canellas
Somos experts em analisar os limites que os governos petistas tinham; neófitos e inocentes em relação aos limites que eles impunham e completamente negligentes e irresponsáveis com os seus avanços e consequências. Sou professor no ensino básico há mais de dez anos e atuo em colégios frequentados pela classe média alta de São Paulo. Na última década pude observar um fenômeno muito interessante, resultado de um dos avanços e consequências dos governos do PT. Muitos estudantes dessas escolas e suas famílias têm abandonado paulatinamente a opção pelas universidades públicas ao se prepararem para os vestibulares. E isso até mesmo por estudantes que poderiam ingressar em qualquer curso de qualquer universidade pública, sem precisar passar por qualquer cursinho preparatório.
A perspectiva de estudar fora ganhou espaço neste grupo social, mas, sobretudo, em relação à alguns cursos específicos como engenharia, economia e administração, os estudantes têm optado cada vez mais por instituições privadas e ideologicamente e politicamente comprometidas com a barbárie neoliberal, como o Insper e a FGV. Pretendo aqui expor dois argumentos falsos usados por essas pessoas e revelar o que acredito que seja a principal razão desse movimento.
O primeiro argumento mobilizado pelos estudantes e famílias afirma que as universidades públicas estão decadentes. Oras, mesmo recorrendo à régua com a qual estes alunos e suas famílias adoram mensurar o mundo e as pessoas, a tal produtividade, o diagnóstico, elaborado do alto de suas varandas gourmet, é falso. Segundo o ranking da publicação Times Higher Education1, elaborado a partir do volume da produção acadêmica e das citações aos estudos produzidos nas universidades, entre as dez melhores universidades do país, apenas uma é privada. Ou semi privada, uma vez que é vinculada à Igreja Católica. Em sua versão brasileira, o Ranking Universitário da Folha de S.Paulo2, apenas duas universidades privadas – também vinculadas à Igreja - encontram-se entre as 20 melhores. Imagina se fossemos introduzir nesses rankings um critério como a capacidade de produção de vacinas em meio a uma pandemia. Por outro lado, nós sabemos muito bem as consequências nefastas para a sociedade brasileira que a economia política do Insper e da FGV provocaram ao longo de nossa história.
O segundo argumento, e que de certa forma se coaduna com o anterior, é o de que as universidades são antros esquerdistas e vivem em greve. Para alguns dos meus alunos mais sensíveis, sempre apontei para como esta vivência, a disputa política com pessoas que pensam diferente, poderia ser muito enriquecedora. Contudo, este argumento passa longe de ser verdadeiro. Em primeiro lugar, a universidade pública de hoje está tomada por pesquisadores e professores assépticos, mesmo nos “terríveis” cursos de humanas. Produtividade e competição mataram a política e o tesão. Em segundo lugar, como a maior parte destes estudantes buscam cursos de engenharia, administração e economia, eles estariam alocados nos setores mais conservadores, privatistas e reacionários da universidade pública. Aliás, no caso da Universidade de São Paulo, se dependesse da maior parte dos professores e burocratas vindos destas faculdades, a USP já teria sido liquidada há muito tempo.
Feito esses breves apontamentos sobre como estes argumentos são mentirosos, resta desvelar a principal razão deste movimento. E isso tem a ver com a transformação que se operou no ensino superior público nos últimos 20 anos. Um dos avanços proporcionados pelos governos do PT foi a ampliação e a democratização do acesso ao ensino superior público – antes que comece a gritaria, um dos seus limites foi não ter avançado mais nesse sentido e optado por, ao mesmo tempo, fomentar o capitalismo selvagem universitário com o Prouni e o FIES.
Esse processo foi construído por dois caminhos diferentes, mas complementares. O primeiro deles foi a adoção das cotas sociais e raciais em todas as universidades federais, ampliação das políticas de permanência, além da construção de novos campi e universidades por todo o país. O crescimento e difusão dos Institutos Federais, voltados ao ensino básico e de altíssima qualidade, também compõe parte deste processo. Aliás, para quem acha que a educação pública brasileira está falida e, por isso, deve ser entregue à gestão privada ou da polícia, nunca pisou num Instituto Federal, observou o desempenho de seus alunos nos exames externos ou prestou atenção nos salários e condições de trabalho oferecidas aos professores3. Pode ser que seja uma pessoa de má fé também, mas preferimos acreditar em sua ignorância.
O outro caminho foi o que poderíamos chamar de indireto. Os constantes aumentos da renda e do emprego formal por quase 15 anos permitiu que milhares e milhares de jovens não tivessem que trabalhar aos 14 anos, pudessem finalizar de maneira tranquila sua escolaridade e muitas vezes avançar em relação aos seus pais. Novamente fazendo referência à USP, isso pode ser verificado, uma vez que o crescimento do número de alunos negros e oriundos das escolas públicas teve um crescimento4 antes mesmo da tardia adoção de cotas por esta universidade no ano de 2018.
Uma vez na universidade, o tão propalado “abismo” da formação entre os estudantes da rede privada e dos oriundos da rede pública, se revelou um obstáculo de menor importância5. Isso significa que a universidade pública, de mero centro reprodutor das elites, começou a se transformar sob o petismo em um dos poucos lugares na sociedade brasileira no qual um pobre poderia ser mais competente e exitoso que um rico. Isso é inconcebível para a maior parte destes jovens de classe média alta. Famílias e estudantes passam a exigir mais filtros para além dos vestibulares: a mensalidade proibitiva ou a universidade estrangeira. É Fabinho contra Jéssica. O problema é que para os detentores de Títulos de Tesouro Direto sempre haverá a Austrália e Miami. De onde podem conspirar abertamente contra os governos populares.
3 DUTRA, R.S.; DUTRA, G.B.; PARENTE, P. H.; PAULO, E., “O que mudou no desempenho educacional dos Institutos Federais do Brasil?”, Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.27, n.104, p. 631-653, jul./set. 2019. (https://www.scielo.br/pdf/ensaio/v27n104/1809-4465-ensaio-27-104-0631.pdf); https://www.sinprodf.org.br/escolas-federais-custam-menos-que-as-milita…
5 Há farta a literatura sobre o tema. Contudo, ver GARCIA, Francisco Augusto da Costa; JESUS, Girlene Ribeiro de. “Uma avaliação do sistema de cotas raciais da Universidade de Brasília”. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, v. 26, n. 61, p. 146-165, jan./abr. 2015. Disponível em: http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/eae/article/view/2773/2959; CAVALCANTI, Ivanessa Thaiane do Nascimento; ANDRADE, Cláudia Sá Malbouisson; TIRYAKI, Gisele Ferreira and COSTA, Lilia Carolina Carneiro. “Desempenho acadêmico e o sistema de cotas no ensino superior: evidência empírica com dados da Universidade Federal da Bahia”. Avaliação (Campinas) [online]. 2019, vol.24, n.1 [cited 2021-02-11], pp.305-327. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-40772019000100305&lng=en&nrm=iso ;LIMA, Claudiney Nunes de; OLIVEIRA, Adilson Ribeiro de; CRUZ, Thiago Luiz Borges da. “Análise estatística do desempenho de alunos cotistas versus não cotistas: um estudo sobre o rendimento escolar de estudantes de curso técnico integrado”. Revista Brasileira da Educação Profissional e Tecnológica, [S.l.], v. 1, n. 18, p. e7900, fev. 2020. ISSN 2447-1801. Disponível em: http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/RBEPT/article/view/7900; SILVA, B. C. M., XAVIER, W. S., & da Costa, T. de M. T. (2020). “Sistema de cotas e desempenho: uma comparação entre estudantes cotistas e não cotistas”. Administração Pública E Gestão Social; 12(3). (https://periodicos.ufv.br/apgs/article/view/6125) ; FERREIRA, André et al. “Ações afirmativas: análise comparativa de desempenho entre estudantes cotistas e não cotistas em uma universidade pública”.Revista Brasileira de Política e Administração da Educação - Periódico científico editado pela ANPAE, [S.l.], v. 36, n. 3, p. 1297-1314, nov. 2020. ISSN 2447-4193. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/101627
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