Ano 01 nº 69/ 2021: Água o Moinho do Ressentimento de Classe - Antonio Canellas

boletim 69


Coluna Socialista ...

 

ÁGUA NO MOINHO DO RESSENTIMENTO DE CLASSE

 

Antonio B. Canellas

um observador

 

insper

por Canellas

 

Somos experts em analisar os limites que os governos petistas tinham; neófitos e inocentes em relação aos limites que eles impunham e completamente negligentes e irresponsáveis com os seus avanços e consequências. Sou professor no ensino básico há mais de dez anos e atuo em colégios frequentados pela classe média alta de São Paulo. Na última década pude observar um fenômeno muito interessante, resultado de um dos avanços e consequências dos governos do PT. Muitos estudantes dessas escolas e suas famílias têm abandonado paulatinamente a opção pelas universidades públicas ao se prepararem para os vestibulares. E isso até mesmo por estudantes que poderiam ingressar em qualquer curso de qualquer universidade pública, sem precisar passar por qualquer cursinho preparatório.

A perspectiva de estudar fora ganhou espaço neste grupo social, mas, sobretudo, em relação à alguns cursos específicos como engenharia, economia e administração, os estudantes têm optado cada vez mais por instituições privadas e ideologicamente e politicamente comprometidas com a barbárie neoliberal, como o Insper e a FGV. Pretendo aqui expor dois argumentos falsos usados por essas pessoas e revelar o que acredito que seja a principal razão desse movimento.

O primeiro argumento mobilizado pelos estudantes e famílias afirma que as universidades públicas estão decadentes. Oras, mesmo recorrendo à régua com a qual estes alunos e suas famílias adoram mensurar o mundo e as pessoas, a tal produtividade, o diagnóstico, elaborado do alto de suas varandas gourmet, é falso. Segundo o ranking da publicação Times Higher Education1, elaborado a partir do volume da produção acadêmica e das citações aos estudos produzidos nas universidades, entre as dez melhores universidades do país, apenas uma é privada. Ou semi privada, uma vez que é vinculada à Igreja Católica. Em sua versão brasileira, o Ranking Universitário da Folha de S.Paulo2, apenas duas universidades privadas – também vinculadas à Igreja - encontram-se entre as 20 melhores. Imagina se fossemos introduzir nesses rankings um critério como a capacidade de produção de vacinas em meio a uma pandemia. Por outro lado, nós sabemos muito bem as consequências nefastas para a sociedade brasileira que a economia política do Insper e da FGV provocaram ao longo de nossa história.

O segundo argumento, e que de certa forma se coaduna com o anterior, é o de que as universidades são antros esquerdistas e vivem em greve. Para alguns dos meus alunos mais sensíveis, sempre apontei para como esta vivência, a disputa política com pessoas que pensam diferente, poderia ser muito enriquecedora. Contudo, este argumento passa longe de ser verdadeiro. Em primeiro lugar, a universidade pública de hoje está tomada por pesquisadores e professores assépticos, mesmo nos “terríveis” cursos de humanas. Produtividade e competição mataram a política e o tesão. Em segundo lugar, como a maior parte destes estudantes buscam cursos de engenharia, administração e economia, eles estariam alocados nos setores mais conservadores, privatistas e reacionários da universidade pública. Aliás, no caso da Universidade de São Paulo, se dependesse da maior parte dos professores e burocratas vindos destas faculdades, a USP já teria sido liquidada há muito tempo.

Feito esses breves apontamentos sobre como estes argumentos são mentirosos, resta desvelar a principal razão deste movimento. E isso tem a ver com a transformação que se operou no ensino superior público nos últimos 20 anos. Um dos avanços proporcionados pelos governos do PT foi a ampliação e a democratização do acesso ao ensino superior público – antes que comece a gritaria, um dos seus limites foi não ter avançado mais nesse sentido e optado por, ao mesmo tempo, fomentar o capitalismo selvagem universitário com o Prouni e o FIES.

Esse processo foi construído por dois caminhos diferentes, mas complementares. O primeiro deles foi a adoção das cotas sociais e raciais em todas as universidades federais, ampliação das políticas de permanência, além da construção de novos campi e universidades por todo o país. O crescimento e difusão dos Institutos Federais, voltados ao ensino básico e de altíssima qualidade, também compõe parte deste processo. Aliás, para quem acha que a educação pública brasileira está falida e, por isso, deve ser entregue à gestão privada ou da polícia, nunca pisou num Instituto Federal, observou o desempenho de seus alunos nos exames externos ou prestou atenção nos salários e condições de trabalho oferecidas aos professores3. Pode ser que seja uma pessoa de má fé também, mas preferimos acreditar em sua ignorância.

O outro caminho foi o que poderíamos chamar de indireto. Os constantes aumentos da renda e do emprego formal por quase 15 anos permitiu que milhares e milhares de jovens não tivessem que trabalhar aos 14 anos, pudessem finalizar de maneira tranquila sua escolaridade e muitas vezes avançar em relação aos seus pais. Novamente fazendo referência à USP, isso pode ser verificado, uma vez que o crescimento do número de alunos negros e oriundos das escolas públicas teve um crescimento4 antes mesmo da tardia adoção de cotas por esta universidade no ano de 2018.

Uma vez na universidade, o tão propalado “abismo” da formação entre os estudantes da rede privada e dos oriundos da rede pública, se revelou um obstáculo de menor importância5. Isso significa que a universidade pública, de mero centro reprodutor das elites, começou a se transformar sob o petismo em um dos poucos lugares na sociedade brasileira no qual um pobre poderia ser mais competente e exitoso que um rico. Isso é inconcebível para a maior parte destes jovens de classe média alta. Famílias e estudantes passam a exigir mais filtros para além dos vestibulares: a mensalidade proibitiva ou a universidade estrangeira. É Fabinho contra Jéssica. O problema é que para os detentores de Títulos de Tesouro Direto sempre haverá a Austrália e Miami. De onde podem conspirar abertamente contra os governos populares.


 

3 DUTRA, R.S.; DUTRA, G.B.; PARENTE, P. H.; PAULO, E., “O que mudou no desempenho educacional dos Institutos Federais do Brasil?”, Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v.27, n.104, p. 631-653, jul./set. 2019. (https://www.scielo.br/pdf/ensaio/v27n104/1809-4465-ensaio-27-104-0631.pdf); https://www.sinprodf.org.br/escolas-federais-custam-menos-que-as-milita…

5 Há farta a literatura sobre o tema. Contudo, ver GARCIA, Francisco Augusto da Costa; JESUS, Girlene Ribeiro de. “Uma avaliação do sistema de cotas raciais da Universidade de Brasília”. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, v. 26, n. 61, p. 146-165, jan./abr. 2015. Disponível em: http://publicacoes.fcc.org.br/ojs/index.php/eae/article/view/2773/2959; CAVALCANTI, Ivanessa Thaiane do Nascimento; ANDRADE, Cláudia Sá Malbouisson; TIRYAKI, Gisele Ferreira and COSTA, Lilia Carolina Carneiro. “Desempenho acadêmico e o sistema de cotas no ensino superior: evidência empírica com dados da Universidade Federal da Bahia”. Avaliação (Campinas) [online]. 2019, vol.24, n.1 [cited 2021-02-11], pp.305-327. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-40772019000100305&lng=en&nrm=iso ;LIMA, Claudiney Nunes de; OLIVEIRA, Adilson Ribeiro de; CRUZ, Thiago Luiz Borges da. “Análise estatística do desempenho de alunos cotistas versus não cotistas: um estudo sobre o rendimento escolar de estudantes de curso técnico integrado”. Revista Brasileira da Educação Profissional e Tecnológica, [S.l.], v. 1, n. 18, p. e7900, fev. 2020. ISSN 2447-1801. Disponível em: http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/RBEPT/article/view/7900; SILVA, B. C. M., XAVIER, W. S., & da Costa, T. de M. T. (2020). “Sistema de cotas e desempenho: uma comparação entre estudantes cotistas e não cotistas”. Administração Pública E Gestão Social; 12(3). (https://periodicos.ufv.br/apgs/article/view/6125) ; FERREIRA, André et al. “Ações afirmativas: análise comparativa de desempenho entre estudantes cotistas e não cotistas em uma universidade pública”.Revista Brasileira de Política e Administração da Educação - Periódico científico editado pela ANPAE, [S.l.], v. 36, n. 3, p. 1297-1314, nov. 2020. ISSN 2447-4193. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/101627

 


Expediente

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
Endereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000

Email: mariaantoniaedicoes@riseup.net