Ano 01 nº 09/ 2020: Crise: oportunidade de quê(m)? - André Amano

Boletim 9


A conjuntura...

CRISE: OPORTUNIDADE DE QUÊ(M)?

 

André Tomio Lopes Amano

Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo

 

Em tempos de pandemia dois lemas surgem com força no senso comum: toda crise gera uma oportunidade; e a humanidade nuca mais será a mesma. Vamos à primeira questão: toda crise gera uma oportunidade, é verdade, mas para quem?

Henfil

No Brasil de hoje, é possível ver o aumento abusivo de preços de produtos básicos como gás de cozinha, medicamentos, máscaras, álcool em gel, alimentos etc. A oportunidade que a crise gera é a do açambarcamento, da diminuição do peso dos produtos, do aumento do preço e dos lucros. Mas a qual custo? Ao custo da morte e da imiseração da maioria da população. Em tempos de individualismo extremo, essa questão se mostra em duas dimensões, a dos grandes capitalistas, pois a crise é sempre um momento de concentração e centralização do capital, mas há também a dos pequenos comerciantes oportunistas, por exemplo, que veem na crise o momento perfeito para roubar os seus iguais, aqueles que também são explorados.

Uma analogia pode ser feita com a década de 1980, no auge da crise da dívida e da hiperinflação. Paul Singer chamou atenção para as três inflações do Plano Cruzado: a registrada, a oculta e a reprimida1. A registrada seria a dos índices (Índice de Custo de Vida - ICV, Índice de Preços ao Consumidor - IPC etc.) e dos artigos que não eram possíveis de serem tabelados como móveis, artigos de vestuário e objetos usados (carros, por exemplo). Estes, mesmo que timidamente, pressionavam a inflação para cima. A inflação oculta seria a dos ágios e dos chamados “pagamentos por fora”, que aumentavam os preços clandestinamente, sendo oculta por não ser possível registrá-la. Por último, a inflação reprimida seria a não-monetarizada, representada pelas filas e escassez de produtos, que era, na verdade, a outra face da inflação oculta.

Assim, no meio do caos e da carestia enfrentados pela maior parte da população, a inflação foi uma oportunidade para os setores que a provocaram e se beneficiaram com o aumento dos preços.

CAmpanha

Quanto ao segundo ponto, antes de perguntar se a humanidade não será mais a mesma, devemos nos perguntar se existe uma só humanidade? A sociedade é formada por classes sociais, portanto, cabe pensar sobre qual será a saída para cada uma delas. À classe trabalhadora, não serve nenhuma opção que não seja avançar sobre o fascismo e o neoliberalismo, rumo a uma nova sociabilidade e a uma mínima democratização dos meios de produção, ou senão, sobrarão apenas a miséria e a morte. Aos capitalistas, a crise gera a oportunidade de avançar ainda mais sobre a renda e os direitos dos trabalhadores, bem como sobre outros capitalistas. A humanidade tornar-se-á mais solidária? Perceberá os males gerados pela produção capitalista sobre o meio ambiente e o trabalho? Há pessoas que acreditam no humanismo dos liberais, que no momento de crise ressuscitarão o keynesianismo para salvar a economia.

Vejamos o giro socialdemocrata de alguns políticos do centro capitalista, como Emanuel Macron. Em 2018, ele disse: “Olha onde estamos em bem-estar. Nós despejamos um bocado de dinheiro em benefícios de subsistência e as pessoas ainda estão pobres. Não há saída. Pessoas que nascem pobres ficam pobres. Eu vou soletrar onde estamos, que estamos despejando muita grana em um sistema de bem-estar social que é focado em tratamento corretivo”2. E, em março de 2020, muda-se o discurso: “O que revela esta pandemia é que a saúde gratuita sem condições de renda, de história pessoal ou profissão, e nosso Estado de Bem-Estar Social (État-providence) não são custos ou encargos mas bens preciosos, vantagens indispensáveis diante das vicissitudes do destino”3.

Sem fazer uma análise mais profunda, sabemos o que significa a volta do Estado de Bem Estar no centro: obrigará a classe trabalhadora periférica a continuar sustentando sua própria classe dominante e a classe dominante do centro, mas agora, retomando o peso dos encargos dos benefícios dos trabalhadores desses países e de seus gastos sociais. É importante lembrar que o Estado de Bem Estar social nos países centrais sempre foi pago com a mais-valia dos trabalhadores dos países periféricos. No entanto, a derrocada desse modelo, nas últimas décadas, não retirou o peso das costas dos trabalhadores dos países periféricos, apenas modificou os beneficiários: dos trabalhadores dos países centrais para os grandes capitalistas – que passaram a ganhar duas vezes. Considerando que os capitalistas nunca vão abrir mão voluntariamente dessa mais-valia, a questão que se coloca é a do nível de exploração a que serão submetidos os países periféricos para dar conta de uma demanda tão alta.

Patrão trabalhador

O fenômeno da concentração de renda é gritante nos últimos anos. Vejamos alguns dados publicados por Ladislau Dowbor e retirados de relatórios da Oxfam.

A leitura da pirâmide é simples. No topo, os adultos que têm mais de um milhão de dólares são 33 milhões de pessoas, o equivalente a 0,7% do total de adultos no planeta. Somando a riqueza de que dispõem, são 116,6 trilhões de dólares, o que representa 45,6% dos 256 trilhões da riqueza avaliada. É importante lembrar que as grandes fortunas desta parte de cima da pirâmide não são propriamente de produtores, mas de gente que lida com papéis financeiros, fluxos de informação ou intermediação de commodities. O topo da pirâmide é particularmente interessante e composto pelos chamados ultra ricos (ultra high net worth individuals). Se ampliarmos o 0,7% mais ricos para 1%, constatamos que este 1% tem mais riqueza do que os 99% restantes do planeta. Note que parte importante das grandes fortunas não aparece por estar em paraísos fiscais, como salienta James Henry, do Tax Justice Network.

[...]

Desde 2015, o 1% mais rico detinha mais riqueza que o resto do planeta. Atualmente, oito indivíduos detêm a mesma riqueza que a metade mais pobre do mundo. Ao longo dos próximos 20 anos, 500 pessoas passarão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros – uma soma mais alta que o PIB da Índia, que tem 1,2 bilhão de habitantes. A renda dos 10% mais pobres aumentou cerca de US$ 65 entre 1988 e 2011, enquanto a do 1% mais rico aumentou cerca de US$ 11.800, ou seja, 182 vezes mais.4

O que a pandemia fará com esse fenômeno nos países centrais? Ele será reduzido? E nos países periféricos como o Brasil? É possível que a metade de um salário mínimo sirva para salvar os trabalhadores? Onde está pautada a possibilidade de se mexer com a renda dos mais ricos? O cinismo e a falácia, do ponto de vista da retórica, são as armas dos liberais. Em defesa do povo dão R$ 600 aos pobres, o que é cerca de metade de um salário mínimo, mas mantém intactos as fortunas de algumas famílias, os lucros e dividendos de grandes empresas e bancos, mantém a religiosa obtenção do superávit primário e do teto de gastos e resgatam o combalido keynesianismo.

Eustaquio

Autor: Eustáquio Neves, 1992

A Crise de 1929 produziu o contexto em que foi possível surgir o nazi-fascismo; a crise de 1973, ou crise do petróleo, deu impulso ao neoliberalismo. Vivemos a síntese desses dois processos? Assim, fica a reflexão: a única oportunidade que a crise gera para a classe trabalhadora é partir para a ofensiva na luta de classes, o que poderá permitir que a humanidade mude e a barbárie não se perpetue, pois é perversa a união do neoliberalismo com o fascismo – que parece ser a nova forma hegemônica do capitalismo do século XXI. Não é possível falar de mudanças para a humanidade que não passem, necessariamente, pela retomada e controle das riquezas produzidas pela e para a classe trabalhadora.

Am Latina

 

1 SINGER, Paul. “O Plano Cruzado e suas três inflações”. In: ______. O dia da lagarta. Democratização e conflito distributivo no Brasil do cruzado. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 99.

2 LOUGH, Richard. Macron diz que sistema de bem-estar social da França é desperdício de dinheiro e pede reformas. Reuters. 13 jun. 2018. Disponível em: <https://br.reuters.com/article/worldNews/idBRKBN1J92JA-OBRWD>. Acesso em: 12 abr. 2020.

3 DUARTE-PLON, Leneide. Carta de Paris: Macron assume falhas do modelo neoliberal. Carta Maior. 15 mar. 2020. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cartas-do-Mundo/Carta-de-Paris-Macron-assume-falhas-do-modelo-neoliberal/45/46784>. Acesso em: 12 abr. 2020.

4 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. Por que oito famílias têm mais riqueza que a metade da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017. p.27-28. Disponível em: <http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2012/06/a_era_do_capital_improdutivo_2_impress%C3%A3oV2.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2020.

 


Expediente
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