Ano 01 nº 31/ 2020: À Patroa do Cachorrinho - Fernanda Silva

Boletim 31


A conjuntura ...

 

À PATROA DO CACHORRINHO

 

Fernanda Pinheiro da Silva

Mestre em Geografia - USP

 

Muito se fala sobre coerências e incoerências dos movimentos de esquerda, de organizações de trabalhadoras e trabalhadores, daqueles que lutam contra o racismo e dos que se organizam para enfrentar diariamente a opressão de gênero e sexualidade.

Mulheres, Raça e Classe, de Ângela Davis, talvez tenha sido minha primeira imersão real no enfrentamento dessa questão. Tardia, assumo. Após esse primeiro embate, cheio de incômodos ainda longe de serem resolvidos, prometi a mim mesma que não negligenciaria mais a questão. Revisitaria minha breve trajetória de estudos, pouquíssimo atenta a isso, e me comprometeria a identificar o que fosse possível a meus olhos, a partir do lugar que ocupo nesse mundo.

De fato, as contradições entre esses três termos, que juntos compõem as bases de exploração para reproduzir a sociedade da qual fazemos parte, também se refletem nas organizações e movimentos que visam enfrentá-los, sejam de modo interseccional ou não. Mas qual o sentido de tensionar essas contradições ao limite? O que ganham aqueles que as espezinham em teses?

A meu ver, não há sentido algum nisso.

Com ou sem consciência, esse caminho produz um conhecimento vazio, além de munir de conceitos aqueles que vivem confortavelmente críticos enquanto avança o projeto de eliminação de corpos, de modo direto ou esmagados para a produção do que resta de mais valia em seu sangue e suor, se é que ainda se pode falar em mais-valia.

Hoje, uma notícia me abalou1.

Não pelo inusitado, pois parece não haver inusitado nesse país.

O abalo caminhou primeiro pela manchete, "Patroa paga fiança e é liberada após filho da doméstica cair do prédio".

A doméstica.

A patroa.

O filho.

O prédio.

Que me importa essa porra da fiança????

Poucas palavras depois, a marca da indiferença do mundo, "Imagens do circuito de segurança do condomínio apontaram que o menino foi deixado sozinho dentro do elevador pela patroa, instantes após a doméstica sair para passear com o cachorro. O menino saiu à procura da mãe e acabou se perdendo no prédio, vindo a cair fatalmente do 9º andar".

privilegios

Fonte: https://medium.com/revista-clio-oper%C3%A1ria/a-moderniza%C3%A7%C3%A3o-…

 

A prova do crime.

O anonimato do assassino, no caso, a patroa.

E o detalhamento da situação: uma trabalhadora do Recife empurrada pela santíssima trindade, o mercado, o Estado e a patroa, para sair a passeio com um cachorrinho, enquanto seu filho chorava no chão, depois no elevador e, por fim, no parapeito do 9º andar, até que descansou para sempre desse mundo cão no área externa do Edifício Pier Maurício de Nassau, residência de Sarí Côrte Real, a patroa.

Sarí

Sarí Gaspar Côrte Real, a patroa responsável pela morte do menino Miguel. Fonte: https://www.brasil247.com/regionais/nordeste/primeira-dama-de-tamandare…

 

Não é de hoje que a sociedade radicaliza todos os dias e aos nossos olhos que a sua reprodução será conduzida sobre a classe, a raça, o gênero e a sexualidade daqueles que foram e permanecem explorados. Mas não é só isso. Esta sociedade também radicaliza cada vez mais que a elite desse país, mas também de outros, compõe em si uma classe organizada, cuja gênese pode ser identificada na colonização, no escravismo e nos saques constantes a territórios indígenas, quilombolas e caipiras, mas também das malocas, cortiços e favelas. Classe essa que, não sem frações e sub-frações, também tem cor e sobrenome, muitas vezes Real, e se atualizou ao passo em que produzia e reproduzia seus muros e massacres.

Se, como nos transmite Benjamin, “O caráter destrutivo não vê nada de duradouro”, creio ser uma tarefa histórica destruir essa classe como ideia, como poder, como opressor, como proprietário, como mito, como dono e patrão, entre tantas outras formas que a caracterizam como o sujeito histórico da indiferença. De minha parte, ou o conhecimento será para isso, ou não será. No mais, desde ontem, mais uma mãe negra dorme sem seu filho.

vesenaodemora

 


Expediente

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