Ano 01 nº 40/ 2020: Caminhos da Revolução Brasileira - Bruno Santos

Boletim 40


Mundo acadêmico ...

 

CAMINHOS DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

 

Bruno Santos

Mestre em História Econômica - USP

 

machete

Fonte: O Globo. Edição, Ano XI, Nº 2900, 30/11/1935

 

Desde 1985, os valores de Estado democrático brasileiro nunca estiveram tão agonizantes ou, em outros termos – mais exatos –, a constante fragilidade da ideia de Estado democrático no Brasil nunca esteve tão aparente. Ao longo de nossa história, eventos conjunturais ou estruturais têm revelado, por diversas vezes, que o conceito de República, de Estado democrático e, por fim, da própria democracia aparecem vazios de sentido no conjunto de ideias do brasileiro ou, ao menos, parecem apresentar uma fragilidade que reflete, em verdade, o perene flerte que nutrimos em relação ao nosso passado colonial. Algumas vezes, esse flerte parece se agudizar.

E é nesses momentos – como o atual – que se erige a necessidade de se olhar, de maneira mais profunda, para os eventos que corroboraram a formação de nosso Estado tal qual o conhecemos, das ideias que conduziram esse processo e que, dialeticamente, foram por ele forjadas ao longo do tempo, para, então, tentarmos compreender os eventos nacionais enquanto traços de um continuum que leve à eventual ruptura do atual modo de produção e à instalação de um regime pós-capitalista. Isso significa refletir sobre como se deu o processo de solidificação das estruturas de Estado que nos permitam avalia-lo enquanto um Estado burguês e, para tanto, olhar para o processo de transformação do Estado no Brasil e para os eventos que, encadeados, foram responsáveis pela operação dessa transformação, concorrendo para o processo ao qual, usualmente, se chama de formação do Estado burguês no Brasil, que se manifesta como um conjunto de significativas alterações na estrutura jurídico-política do Estado brasileiro e que vem a compor o ideário intelectual nacional, como parte importante ou como o todo, da chamada Revolução Brasileira, a depender da corrente de pensamento que o analisa.

Olhar para esse processo exige a retomada da tão ampla e plural quanto robusta discussão que se construiu ao passar dos anos, no meio intelectual brasileiro, quase sempre nos corredores das principais universidades do país, acerca do início e da (possível) consolidação do processo de instalação do Estado burguês.

Mas é possível retomar um tema cuja produção intelectual já tenha gerado tamanho leque de interpretações e produzido tão variados debates? Caminhos da revolução brasileira (Boitempo, 2019) nos prova que sim. Afinal, às vezes, analisar os diferentes olhares que um tema desperta ao longo do tempo é também uma forma – madura, aliás – de se olhar para o próprio tema: não se inventa a roda quando já se tem a carruagem em movimento.

Verdade é que esse tema, de tão presente, já estava esmorecido e foi incumbência, em momento politicamente oportuno, do autor de Cansaço, a longa estação, Luiz Bernardo Pericás, lançar nova luz sobre ele. Professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo, Pericás tem dado grande contribuição para a produção acadêmica de alto nível no país, o que tem lhe rendido reconhecimento no meio intelectual brasileiro – no ano de 2016, Pericás publicou Caio Prado Jr.: Uma biografia política, que lhe rendeu o prêmio Juca Pato (concedido a título de intelectual do ano) e o importantíssimo prêmio literário Jabuti (no qual a obra figurou como melhor biografia) – e fora dele: o livro Che Guevara y el debate económico en Cuba recebeu o prêmio Ezequiel Martinez Estrada. Ainda que en passant, vale mencionar também a mais recente publicação, o artigo “Gobierno Bolsonaro: autoritarismo y regressión colonial”, na Revista Casa de las Américas, no qual Pericás tece considerações acerca da conjuntura político-econômica do Brasil atual.

Como não podia deixar de ser, em Caminhos da revolução brasileira, Pericás não deixou a desejar e fez um excelente trabalho de resgate dos principais estudos acerca dos eventos que podem ser descritos como componentes da sedimentação das alterações estruturais iniciadas pelo processo de profunda mudança nas estruturas jurídico-políticas do Estado brasileiro, preparando-o para viabilizar a reprodução das relações de produção segundo as regras do capitalismo e que, para alguns autores, apresenta-se como uma etapa de um processo ainda maior, a saber: o de superação do modo capitalista de produção. Para realizar tal discussão, Pericás apresenta um estudo que conta com a organização de artigos de 20 diferentes autores que passaram boa parte de sua trajetória intelectual pensando sobre o desenvolvimento do capitalismo, suas possibilidades e o impacto desse processo na formação da classe operária brasileira. Não só: o autor organiza os artigos de tais estudiosos de maneira a desenvolver uma narrativa lógica sensível ao deslizar cronológico e, para além, teórico. E, assim, o que Pericás faz é um estudo sobre uma fração importante da história do pensamento intelectual no Brasil acerca do tema sugerido pelo título da obra e, além disso, apresenta elementos relevantes à discussão acerca do processo de consolidação do Estado burguês no Brasil, seus efeitos e as condições políticas, sociais e econômicas nas quais ocorreu. Mas como fazê-lo, de maneira sóbria, acerca de um tema tão controverso?

Em realidade, a origem e desenvolvimento desse processo, por si, já se apresentam como controversos, na medida em que seus marcos são diluídos nos diferentes acontecimentos ao longo dos séculos XIX e XX – e, na verdade, a controvérsia se estende em tema, de modo que se possa encontrar uma ampla discussão sobre a natureza do Estado brasileiro antes do processo de formação do Estado burguês e da própria consolidação do processo de alteração da natureza do Estado. Os principais autores identificam traços da gênese desse processo em diferentes momentos da História nacional: na vinda da família real, em 1808, na declaração da Independência, em 1822, na abolição da escravatura, em 1888, na proclamação da República, em 1889, na Revolução de 1930, chegando até o golpe militar de 1964.

Esse debate se justifica. Afinal, se a natureza do Estado tem que ser capaz de corresponder a um tipo particular de relação de produção e se a estrutura jurídico-política desse mesmo Estado precisa ser suficiente para regular essas relações que, em última instância, são dadas em função das atividades econômicas, como classificar o Brasil da época, com uma economia presa aos dogmas coloniais, dotado de um processo de industrialização lento e muitas vezes agrilhoado às relações de exploração pré-capitalistas?

Não podemos, afinal, deixar de notar o que nos traz os autores Francisco Hardman e Victor Leonardi quando apontam que a fábrica de velas do Rio de Janeiro mantinha, concomitantemente, trabalhadores livres e escravizados e que, a partir de 1857, a indústria passou a contratar imigrantes, fornecendo a estes o mesmo tipo de alimentação e alojamento que eram dispensados aos escravos1.

O fato é que a aparência de igualdade jurídica necessária para a relação de troca que se dá entre o trabalhador pretensamente “livre” e o detentor dos meios de produção, condição necessária para que a relação de troca de trabalho por salário emerja como pura e legítima escolha individual de ambos agentes sociais – pensamento que consolida a forma burguesa do direito, que aparece como reguladora consequente dessa relação –, foi um fator conflitante com a mentalidade colonial em voga na época e que, vez ou outra, apresenta seus traços de influência na sociedade brasileira ainda nos dias de hoje. Assim, o que existiu foi uma demanda política externa por um enquadramento das organizações de Estado segundo os moldes burgueses, ao mesmo tempo em que a demanda econômica externa incentivava grupos econômicos de ideal ligado aos valores pré-capitalistas, tendo sido nesse amálgama de interesses e conflitos de posturas que se deu o processo de mudança da natureza do Estado no Brasil, tornando seus estudos e debates ainda mais complexos.

Como se pode notar, dada a complexidade da realidade e a difusão dos elementos constituintes do Estado burguês ao longo da linha do tempo, é bastante difícil delimitar os elementos que permitem apontar um marco para a instalação de um Estado de natureza burguesa no Brasil, em especial quando se busca amparar as análises a partir de intelectuais que se apoiam no estudo do mesmo processo ocorrido em países europeus, como é o caso de Décio Saes, que se apoia de maneira bastante acentuada na teoria do filósofo grego Nicos Poulantzas, ao elaborar seu rico estudo acerca do processo de formação do Estado burguês no Brasil2.

E é, também, nesse quesito que Pericás traz um importante trabalho: ao fazer uma análise que coaduna as ideias de diferentes pensadores brasileiros, o autor dá subsídios para que se compreenda, mais que o evento em si, a forma de decantação que a teoria acerca do Estado – que, evidentemente, incorpora grande influência estrangeira – assumiu sob as canetas dos intelectuais nacionais.

É nesse sentido que o capítulo introdutório com mais de 80 páginas ganha maior notoriedade: nele, o autor apresenta o percurso historiográfico que o evento trilhou sob o pensamento dos principais intelectuais dedicados ao tema. Mais que isso, Caminhos da revolução brasileira constrói um discurso lógico no qual é possível, ao deslizar das páginas, observar o processo de maturação das análises e a influência mútua de pensamentos. Já conhecendo o hostil terreno por onde fincará seus passos, Pericás inicia a introdução mostrando a que veio. Sem fugir ao debate, o autor explicita já a controvérsia que ronda o tema e sobre a qual falamos acima. O autor apresenta quatro possíveis interpretações para o tema da revolução brasileira:

[...] um processo de longa duração (e, dentro dele a construção gradual de um arcabouço político e ideológico), caracterizado pelas mudanças ocorridas na lenta transição de um país essencialmente rural para o urbano; um ‘projeto de modernização’ das estruturas econômicas internas liderado por setores da burguesia [...]; a superação do passado colonial e a edificação e consolidação da ‘nação’; ou uma possível ruptura radical e estrutural com o imperialismo, com as relações de classe assimétricas [...]3.

A partir disso, o autor divide em dois grandes grupos interpretativos: para um, o processo revolucionário brasileiro foi um processo paulatino de instalação do capitalismo interno e, para outro, seria um processo radical que, a partir da ruptura do sistema vigente no país, desembocaria, em última instância, na instalação do socialismo. Não obstante, o autor explicita como cada uma dessas escolhas teóricas determinam os marcos temporais desse processo e associa o volume da produção sobre o tema a fatores políticos nacionais e internacionais, fazendo um cuidadoso trabalho de resgate da história do pensamento.

Sem fugir da tendência adotada em Caio Prado Jr.: uma biografia política, Luiz Bernardo Pericás faz uma exibição dos destaques da biografia política dos autores e mostra seu pensamento acerca do tema central do livro, o que, a despeito de suas intenções, permite a compreensão da influência do momento histórico contemporâneo a cada intelectual apresentado na elaboração de cada uma das ideias dos autores apresentados.

Caminhos da revolução brasileira é uma ode ao pensamento político nacional e um convite à reflexão a respeito da má superação de nosso período colonial que, vez por outra, nos assombra o presente, se manifestando das mais variadas formas, entre todos os agentes sociais, nas mais diversas esferas da vida. A elite, por exemplo, de financiamento a golpes militares a mobilizações para a eleição de candidatos que fomentam o discurso de ódio, não poupa esforços para a perpetuação desse passado que só não envergonha àqueles que não o compreendem e, no plano cotidiano, só surpreende aqueles que o rejeitam, manifestando-se presente na velha conhecida pergunta “você sabe com quem está falando?” e suas paráfrases – que ganham diferentes roupagens, a depender de seu locutor, chegando à recém famosa “Cidadão, não! Engenheiro civil, melhor que você!”.

Caminhos da revolução brasileira é caro por isso: subsidia a reflexão acerca do nosso presente (e, não obstante, das formas como o temos enxergado ao longo do tempo) enquanto não encontramos o nosso caminho para a revolução que altere nosso futuro.

 

1 HARDMAN, Francisco F.; LEONARDI, Victor. História da indústria e do trabalho no Brasil: das origens aos anos vinte. 2ª edição. São Paulo: Global Editora, 1982, p. 110.

2 Décio Saes faz um trabalho bastante meticuloso para atingir este objetivo em A Formação do Estado Burguês no Brasil (1888 – 1891), sua tese de livre docência que viria a ser publicada no ano de 1985 pela editora Paz e Terra, do Rio de Janeiro.

3 PERICÁS, Luiz B., Caminhos da revolução brasileira. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

 


Expediente

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