Ano 01 nº 66/ 2021: Cenários de Crise - Lincoln F. Secco

boletim 66


A conjuntura ...

 

CENÁRIOS DE CRISE

 

Lincoln F. Secco

Professor do Departamento de História - USP

 

viva

Colagem por Canellas

 

Talvez a década de 1950 tenha sido o grande tournant da história econômica brasileira, quando o país abdicou da reprodução autônoma e endógena do Departamento I (grosso modo, aquele que produz bens de capital), associou-se ao capital estrangeiro e persistiu no modelo neocolonial.

O drama que levou ao suicídio de Getúlio Vargas foi a alegoria de uma história de impossibilidades: a de gerar um ciclo completo em qualquer indústria específica e o abandono de uma cultura nacional.

Forças de reforma no interior desse movimento liberal de longa duração foram importantes. Juscelino Kubitschek, o início do mandato de Sarney e os governos petistas mantiveram algum compromisso com o desenvolvimento. Mas desde o segundo mandato de Dilma Roussef houve o aprofundamento progressivo das políticas neoliberais de Fernando Henrique Cardoso.

 

Reforma ou Revolução?

 

Movimentos de longa duração não são revertidos por vontade política, salvo (e nem sempre in totum) por revoluções.

Já o reformismo padece de duas incompreensões basilares. A primeira é uma negação de uma ideia pouco abordada do Manifesto Comunista: a possibilidade da “ruína comum das duas classes em luta”, ainda que Marx e Engels se referissem às lutas de classes passadas.

Isso foi captado por Rosa Luxemburgo como “socialismo ou barbárie”. Mas essa ideia não foi uma mera palavra de ordem ou um tournant da brochura Junius, pois como demonstrou a Rosa Rosa Gomes em seu livro Rosa Luxemburgo: Crise e Revolução (Ateliê editorial), estava ancorada na própria noção de colapso econômico do livro Acumulação de Capital.

Se não há um colapso enquanto possibilidade imanente da acumulação capitalista, resta a solução de reformar indefinidamente o capitalismo ou, como queriam Bernstein e Kautsky (ainda que de formas distintas) aguardar a democratização do capital por ações ou a estatização democrática dos monopólios. Isso poderia ser obtido por uma maioria eleitoral social democrata operária produzida pelo próprio incremento do capital industrial. Sem a hipótese do colapso do sistema capitalista, portanto, não há revolução.

O reformismo não é desprovido de méritos distributivistas, desde que haja um ciclo de crescimento da economia; mas no Brasil, a esquerda hoje não têm as condições básicas para reformar o seu capitalismo selvagem.

O caminho revolucionário é sempre imprevisível e depende de circunstâncias excepcionais, como as guerras; mas exige também um conhecimento da realidade que a esquerda não possui e nem sabe que não possui. Para dar um pequeno exemplo, é possível saber que na Inglaterra dos anos 1980 a maioria da classe trabalhadora concordava com a expressão “managers and workers on opposite sides” porque isso foi objeto de uma enquete. Esse tipo de pergunta ainda não foi feita no Brasil, pois aqui os partidos de esquerda se orientam por empresas como Ibope ou Data Folha.

No campo da esquerda extraparlamentar, desde 2013 ela corre atrás do primeiro setor capaz de gerar tumulto: ora os garis do Rio de Janeiro, ora os estudantes secundaristas; por vezes até uma mistura de greve e lockout de caminhoneiros; telemarketing, entregadores de aplicativos. Nenhuma ideia do tamanho real dessas categoriasi, do seu impacto econômico, se são produtivas, seu grau de consciência de classe ou da massa de mais valia num dado período etc. Não é por acaso que, tendo tido uma oportunidade histórica naquele ano, voltou rapidamente à irrelevância social.

As universidades produzem muito conhecimento útil que serve de subsídio aos socialistas, mas o estoque científico necessário para analisar relações de forças e traçar um rumo estratégico deve ser acumulado fora das constrições dos meios institucionais e ser uma formulação coletiva. Para isso deveriam se voltar os grupos marxistas, apesar dos limites materiais.

A partir dessas ponderações seria possível traçar cenários realistas sobre a crise atual e as tendências futuras.

 

Cenários

 

A discussão na esquerda tem se prendido ao quadro eleitoral e, portanto, imediato, ou seja, sem mediações, sem história. Na média duração, o resultado eleitoral de 2022 pode significar muito pouco. Se houve uma derrota histórica da esquerda entre 2013 e 2018 é bem provável que tenhamos pela frente um regime de acumulação neoliberal muito mais extremo por um ou dois decênios. A república neoliberal iniciada no meio do mandato de Sarney, após a derrota da política de Funaro, perdurou até o primeiro mandato de Lula.

No segundo e terceiro governos do PT houve uma leve inclinação para políticas desenvolvimentistas, mas no quarto mandato a austeridade retornou e completará oito anos em 2022.

Ao nos prendermos às táticas do curto prazo, só concebemos a superfície da vida política: Bolsonaro pode se reeleger; ou ser substituído em 2022 ou em 2026 por uma oposição de centro direita; ou por uma frente de esquerda. Esses cenários, no entanto, em nada nos ensinam sobre a real capacidade dos trabalhadores levarem o Estado a reverter o desmonte da legislação trabalhista, recuperar seus ativos estratégicos e implementar uma tributação progressiva.

Esse é o cenário mais pessimista, admito. O otimismo da vontade me faz esperar uma onda de protestos sociais depois da quarentena, após um ano ou mais de represamento das manifestações de rua. Mas protestos sem direção estratégica já temos muitos pelo mundo.

É preciso colocar em causa o sistema, ameaçar as classes dominantes. Quem sabe daí advenha uma política reformista de verdade? A revolução dentro da ordem seria um avanço, mas o capitalismo não poderá ser reformado para sempre. Ele terá que desaparecer com a ruína de todas as classes ou com “uma transformação revolucionária da sociedade inteira”, como nos ensinaram os autores do Manifesto.

iObviamente, a sua mensuração em termos de valor pode exigir uma proxy.

 


Expediente

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