Ano 2 nº 14/2021: Marx e o Comunismo nos Periódicos Paulistas do Século XIX - Vivian Nani Ayres

boletim 2-14


Mundo acadêmico ...

 

MARX E O COMUNISMO NOS PERIÓDICOS PAULISTAS DO SÉCULO XIX1

 

Vivian Nani Ayres

Doutora em História Econômica – USP

anticomunismo

Colagem por Canellas

 

A história do marxismo no Brasil, mais precisamente a sua pré-história, reflete as peculiaridades da inserção periférica do país na divisão internacional do trabalho. Intrinsecamente ligado ao desenvolvimento capitalista do centro, o escravismo brasileiro manteve, por muitos séculos, os trabalhadores do país em uma situação de alheamento em relação ao universo dos impressos e da cultura letrada.

Embora as revoluções não dependam apenas disso – fato provado pelas revoltas constantes dos escravizados –, se considerarmos a esfera das formulações intelectuais e do desenvolvimento teórico das ideias socialistas entre os trabalhadores, não é possível negar as consequências da escravidão e da luta travada pela elite proprietária para a manutenção da “vocação agrária” do país, com todas as desigualdades que essa concepção comportava. É conhecido o constante empenho por parte dela para a consolidação de seus valores, fosse por meio da extrema violência contra os movimentos que se opunham a eles, fosse pela disputa ideológica no campo intelectual. Conforme afirmava Edgard Carone, a história dos livros no Brasil, durante o século XIX, revela claramente a exclusividade da difusão dos princípios burgueses (CARONE, 2004), e esse monopólio não se realizou sem esforço.

Assim, sem desconsiderar a precariedade da estrutura produtiva em relação aos impressos e os inúmeros entraves que essa condição gerou para a difusão do pensamento marxista no Brasil, enfocaremos o papel da guerra travada pelas elites brasileiras para combater o desenvolvimento dessas ideias, através da análise dos periódicos paulistas produzidos no século XIX.

Até as primeiras décadas do XX, não se pode falar em um pensamento propriamente marxista no Brasil (SECCO, 2017; MORAIS FILHO, 1991). Mesmo a origem do socialismo brasileiro esteve ligada à leitura de autores que Marx chamou de socialistas utópicos, como Fourrier, Saint-Simon e Proudhon, mas também de outros como Auguste Comte e Victor Cousin (SECCO, 2017: 31-32), que era um representante do ecletismo francês cujo pensamento se aproximava mais de um liberalismo moderado cristão, tendo sido um forte opositor dos autores/políticos socialistas franceses, ao lado de Guizot. O nome de Marx só começou a circular por aqui com as notícias sobre a Comuna de Paris (SECCO, 2017: 33-34), e os periódicos paulistas revelam esse fenômeno. Quando em tom pejorativo, as menções a Marx procuravam ligá-lo a um radicalismo destruidor que deturpava a justeza das reivindicações de alguns trabalhadores. Quando, ao contrário, buscava-se construir uma imagem positiva do “chefe da Associação Internacional”, alguns aspectos de seu pensamento e de sua obra eram retratados.

A primeira aparição que pudemos identificar data do dia 6 de maio de 1871, em uma notícia do Diário de São Paulo sobre a Comuna que o indicava como o organizador da insurreição em Paris.2 Alguns meses mais tarde, e após o extermínio da experiência revolucionária, o nome de Marx voltava aparecer, no mesmo periódico, ainda na seção das notícias internacionais, mas agora referente a um boato a respeito de sua morte, o qual afirmava: “Corre que o famoso Karl Marx, fundador da Internacional, faleceu em Londres.” Nada mais se dizia a respeito dessa notícia, no entanto, a matéria revelava um grande esforço em desmoralizar sua figura, afirmando que ele sofria várias críticas de seus próprios correligionários, pois havia criado divisionismos no seio da Internacional e alterado as suas funções primitivas.

Na sequência da matéria, o redator descrevia a precária condição dos trabalhadores ingleses, sobretudo dos mineiros, indicando que era necessário abandonar por um momento o laissez faire, laissez passer, visto que a situação da Europa era “extra-normal”3 e demandava medidas administrativas visando controlar a inciativa individual, pois:

 

"Entre expoliar os ricos, abolir a propriedade, proscrever o capital, e consentir que os operários sejão meramente considerados bestas de carga, vai enorme distancia. Embora haja decrescimo da produção, embora os lucros dos emprezarios sejão menos pingues, qualquer intervenção dos governos e dos parlamentos para attender os operarios é o melhor meio de evitar revoluções sociaes com que ameação os descontentes."

 

No ano seguinte, em maio de 1872, o Correio Paulistano transcreveu um artigo originalmente publicado no Echo Americano, editado em Londres, em 29 de fevereiro do mesmo ano, intitulado “O dr. Carlos Marx”, no qual se lia uma biografia do autor acompanhada de uma litografia com a sua imagem que, infelizmente, não foi transposta para o artigo paulistano. Não pudemos ter acesso ao artigo original, mas o que foi transcrito, além do caráter elogioso em relação a Marx e a Internacional, dá conta de grande parte de sua trajetória política, incluindo suas publicações. São mencionados, entre outros, a sua atuação na Gazeta Renana, nos Anais Franco-Alemães, na Gazeta Alemã de Bruxelas, e na Nova Gazeta Renana. Quanto aos textos, são mencionados A sagrada Família, a Miséria da Filosofia, o Manifesto do Partido Comunista, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, o Revelações sobre os processos dos comunistas em Colônia, Contribuição à crítica da Economia Política, O Capital e A Guerra Civil na França. Quase todas essas menções eram acompanhadas por observações acerca do conteúdo dos livros e dos debates que Marx pretendia provocar com eles. Quase ao final o autor do artigo afirma:

 

"A doutrina de Carlos Marx se distingue dos systemas dos outros socialistas.

Regeita todas as concepções e deducções doutrinarias, e procura demonstrar que a sociedade actual possue os germens de uma sociedade nova; que esta sociedadde elabora-se por meio da luta de classes que, depois de ter passado pela dictadura transitória, se fundiram, finalmente, na associação dos productores livres, baseada sobre a propriedade collectiva do terreno e dos instrumentos de trabalho.

Em segundo logar, Marx proclama o caracter internacional dessa luta das classes e da transformação social que della ha de resultar."4

 

Para finalizar, o autor defendia Marx, “que tem sido alvo de muita malignidade”, refutando algumas das acusações que lhe eram imputadas. Além do referido caráter elogioso que permeia todo o texto, é interessante notar que o conhecimento sobre a trajetória e as obras de Marx ia muito além do esperado para um leitor brasileiro à época. O Echo Americano era dirigido por Luís Bivar e Melo Morais Filho (MORAIS FILHO, 1991: 24), mas não sabemos quem era o autor do artigo. O fato do periódico ser editado e publicado em Londres certamente explica o domínio que o autor revela sobre o tema, contudo, o mais importante a ressaltar é que essas informações chegaram ao Brasil através de, pelo menos, dois jornais.

Depois das aparições do nome de Marx relacionadas aos ecos da Comuna de Paris, entre 1871 e 1873, ele volta a ser mencionado apenas no final da década e, dali por diante, com uma certa regularidade. Ele aparece sempre como membro ou líder da “Associação Internacional”, sendo acusado, praticamente em todas as notícias, de causar tumultos nas reuniões dessa associação – que, aliás, são sempre relatadas nos periódicos. É interessante notar que o que se critica nessas notícias não é o movimento operário em si, considerado como legítimo pelos redatores, mas sim a radicalidade de algumas organizações cujo caráter revolucionário retirava toda a justeza de suas reivindicações.


Menos de um mês após a sua morte, o Correio Paulistano publicou uma nova biografia de Marx, dessa vez elaborada pelo próprio jornal, pois não há nenhuma referência sobre se tratar de uma transcrição. Após noticiar o falecimento, o autor afirmava:

 

"Desappareceu o mais eminente dos socialistas contemporaneos e um dos mais profundos socialistas da nossa epoca.

É a elle principalmente que se deve o carater historico e cientifico que assumiu o socialismo utopista e sentimental da primeira metade deste seculo.

Marx póde tambem ser considerado como o verdadeiro fundador da Internacional, e portanto como o mais poderoso iniciador deste movimento operario europeu-americano."5

 

A despeito de algumas informações incorretas, o autor traçava a trajetória de Marx ressaltando, a todo momento, seu caráter investigador e crítico e o papel central que seu pensamento exerceu no movimento operário europeu. O autor elencava as principais obras publicadas por Marx, dando ênfase especial n'O Capital, “obra magistral que fez época na historia do socialismo e collocou o seu autor ao lado dos primeiros economistas criticos e socialistas no nosso seculo.” Após alguns elogios a respeito de sua atuação política, o autor afirmava:

 

"Mas é principalmente como pensador, como descobridor das leis da evolução economica, principalmente das que presidem à genese do capital e às transformações obrigadas dos modos de produção, que Marx ficará sendo um dos homens eminentes do nosso seculo.

A grande obra deste illustre pensador, O capital, ficou por acabar.

A primeira parte della, A producção das riquezas produziu uma verdadeira revolução, mesmo no ensino ex-cathedra da economia politica, em toda a parte onde este ensino não está completamete mumificado.

A segunda parte, A circulação de riquezas supõe-se que ficou bastante adiantada e a ponto de pode ser publicada por F. Engels, o amigo mais intimo e o mais digno interprete de Marx.

O terceiro volume Historia da theoria devia ser uma analyse critica de toda a litteratura economica."6

 

Não sabemos quem foi o autor do artigo, mas, novamente, chama a atenção o conhecimento bastante satisfatório para os padrões da época sobre a trajetória e os textos de Marx, especialmente d’O Capital. Do ponto de vista da circulação das obras, podemos supor que esse conhecimento tivesse suas fontes em edições francesas, inclusive porque vários títulos mencionados nesse artigo e no primeiro, o do Echo Americano, estavam nesse idioma.

Um outro exemplo que chamou a atenção se refere a alguns anúncios do Santos Commercial na última década do século XIX. Eles se prestavam a divulgar as atividades do Centro Socialista ou Círculo Socialista que funcionava em Santos, pelo menos desde 1889, e havia sido fundado por Silvério Fontes, Sóter de Araújo e Carlos Escobar (MORAIS FILHO, 1991: 35). Na edição do dia 4 de julho de 1895, aparece o seguinte anúncio:

 

"Socialismo

O Centro Socialista desta cidade realisa hoje a sua sexta conferencia occupando a tribuna o dr. Lucio Martins Rodrigues.

Segundo nos informam, versará essa conferencia sobre o capital estudado à luz da obra fundamental do Socialismo: Das Kapital, de Karl Marx.

A conferencia se realisará às 7 horas da noite, no salão do Centro, à praça da Republica n. 48, sobrado, actual Hotel do Commercio.

A entrada é franca a todos, não importando a presença de qualquer cidadão uma profissão de fé socialista."7

 

Evaristo de Morais Filho afirma que Astrogildo Pereira – primeiro a indicar a existência dessa associação – exagerou ao afirmar que o Centro Socialista fora o primeiro agrupamento marxista brasileiro (MORAIS FILHO, 1991: 37). Não nos cabe aqui tomar parte nesse debate, mas é válido indicar que se os escritos oriundos desse centro revelavam um certo ecletismo, não se pode negar que havia um esforço em conhecer as obras de Marx.

Seja como for, essas notícias – dispersas ao longo do tempo e muito pontuais – certamente não mudam em nada a ideia de que o marxismo foi introduzido muito tardiamente no Brasil, mas, assim como toda a exceção que apenas confirma a regra, elas também mostram que as possibilidades de penetração das obras de Marx não estavam dadas de antemão. Nesse sentido, é válido se debruçar sobre a reação das elites proprietárias e seu esforço em combater essas ideias.

Os termos “comunismo” e “comunista” aparecem nos periódicos paulistas, como era natural e esperado, bem antes do nome de Marx. Nesses casos e, principalmente se incluirmos os termos “socialismo” e “socialistas”, os exemplos pululam – poderíamos elencar uma lista enorme deles. No entanto, basta ressaltar as características gerais que permeiam quase todas as ocorrências para demonstrar o esforço insistente em desmoralizar esses termos e o conteúdo político-ideológico que eles carregavam.

Se não havia por parte dos socialistas ou dos progressistas uma compreensão sistemática e profunda acerca do marxismo e do comunismo, a elite proprietária compreendeu muito rápido a essência dessas ideias, pois elas atacavam diretamente seus privilégios. Assim, elas se debatiam em defesa da propriedade acusando os socialistas e comunistas de desejarem uma sociedade impossível e de realizarem as mais diversas formas de violação.

Era comum, por exemplo, associá-los aos crimes de ladroagem, não apenas numa perspectiva futura de fim da propriedade privada, mas em relação aos crimes de roubo comuns. Nesse sentido, os ladrões ou “larápios”, como eram designados à época, eram comumente chamados de comunistas.

Do mesmo modo, qualquer proposta de intervenção do Estado, em relação ao que chamamos hoje de políticas públicas, eram consideradas comunistas e combatidas ferozmente. A despeito das disputas entre conservadores e liberais do ponto de vista do liberalismo político, o liberalismo econômico era praticamente um consenso entre as elites brasileiras, visto que a manutenção das desigualdades socioeconômicas dependia dele.

Ademais, o socialismo e o comunismo eram sempre associados a ações violentas, autoritárias e contrárias à ordem, mas também a comportamentos questionáveis a seus olhos como a libertinagem e a imoralidade. A demonização desses termos e a mobilização deles como arma política eram tão recorrentes e naturais que os próprios membros dessas elites denunciavam esse fenômeno quando estavam no papel de vítimas das acusações. Para ficar apenas com um exemplo, o redator d’O Meteoro, tentando defender um correligionário, assim escrevia na edição de 21 de novembro de 1850:

 

"Consideramos perdido o Sr. Dr. França; em breve será qualificado de liberal, inimigo do altar e do throno, socialista, communista, e tudo quanto lembrar aos palhaços que nos dominão, para tornal-o odioso, e assim obterem que o castiguem, ao menos com uma remoção."8 [destaque nosso]

 

Por outro lado, procurava-se criar um ambiente de ameaça iminente do crescimento dessas ideias, no Brasil, conforme se pode ler numa das edições d’O Mercantil, de abril de 1852, na qual o editor se queixava de que “as ideias communistas fazem progressos gigantescos, e não sabemos em que virão a párar estas traducções litteraes de Luiz Blanc e Proudhon”.9 A consequência imediata era a de que essas ideias precisavam ser debeladas e todo o esforço deveria ser empreendido para fazê-lo.

Se o círculo de leitores desses jornais era restrito, visto que o analfabetismo naquela época era predominante, sabemos também que os debates da imprensa não chegavam à população apenas através da leitura direta. Nesse sentido, não podemos ignorar o fato de que essa campanha sistemática de desmoralização e depreciação do comunismo e do socialismo teve os seus efeitos.

Se o socialismo, como corrente político-ideológica, não teve contornos e referenciais teóricos definidos até, pelo menos, a ascensão do movimento operário anarco-sindicalista, na década de 1910, e, depois, com a criação do PCB, em 1922, o fato é que as elites proprietárias brasileiras compreenderam muito cedo os riscos que essas concepções significavam e lutaram para demonizá-las antes mesmo que elas existissem efetivamente. O “macarthismo” criou raízes no Brasil antes do comunismo. Se o pensamento de esquerda teve que enfrentar a falta de “infraestrutura da superestrutura” (SECCO, 2017: 31) que o impedia de florescer dada a precariedade da esfera produtiva dos impressos, ele também se desenvolveu em um terreno no qual já havia um forte consenso contra ele. A figura de Marx não era completamente ignorada e houve, de fato, esforços para divulgá-la, mas seu pensamento, antes mesmo de ser conhecido, foi carimbado com o estigma da “planta exótica” (SECCO, 2017: 29) que não poderia florescer aqui.

 

1 Texto publicado na Mouro: Revista Marxista, v. 13, p.181-189, 2019.

2 DIÁRIO DE SÃO PAULO, São Paulo, n. 1678, 06 de maio de 1871, p. 1.

3 DIÁRIO DE SÃO PAULO, São Paulo, n. 1824, 09 de novembro de 1871, p. 1.

4 CORREIO PAULISTANO, São Paulo, n. 4722, 14 de maio de 1872, p. 1-2.

5 CORREIO PAULISTANO, São Paulo, n. 7971, 7 de abril de 1883, p. 2.

6 CORREIO PAULISTANO, São Paulo, n. 7971, 7 de abril de 1883, p. 2.

7 SANTOS COMMERCIAL, Santos, n. 264, 4 de julho de 1895, p. 1.

8 O METEORO, São Paulo, n. 8, 21 de novembro de 1850.

9 O MERCANTIL, São Paulo, n. 144, 01 de abril de 1852, p. 4.

 

Bibliografia:

 

CARONE, Edgard. "Literatura e público". In: DEAECTO, Marisa Midori; SECCO, Lincoln (Orgs.). Leituras Marxistas e outros estudos. São Paulo: Xamã, 2004

MORAES FILHO, Evaristo de. "A proto-história do marxismo no Brasil". In: REIS FILHO, Daniel Aarão (et. al.). História do Marxismo no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

SECCO, Lincoln. A batalha dos livros – Formação da esquerda no Brasil. São Paulo: Ateliê Editoria, 2017.

 

Fontes impressas – Periódicos:

 

Correio de São Paulo, São Paulo.

Diário de São Paulo, São Paulo.

O Mercantil, São Paulo.

O Meteoro, São Paulo.

Santos Commercial, Santos.

 

 


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