Ano 2 nº 23/2021: Dossiê Cuba - José Mao Jr; Alice Rossi e Lincoln Secco; Lucas Julião; Joana Salém

ano2-23


A conjuntura ...

 

DOSSIÊ CUBA

 

A comissão editorial do boletim do GMARX, Maria Antonia, preparou uma coletânea de artigos de membros e parceiros do grupo para debater os acontecimentos recentes em Cuba: a ilha do socialismo latino americano, e mundial. Parafraseando Rosa Luxemburgo acerca da Revolução Russa de 1917, os erros dos cubanos no desenvolvimento do socialismo residem na omissão do movimento operário latino americano. Ali o problema só pode ser colocado, ele só será resolvido internacionalmente. Nesse sentido, a revolução pertence em toda parte aos cubanos.

 

 

cuba3

SOLIDARIEDADE AO POVO CUBANO! ABAIXO O GENOCIDA IMPERIALISMO ESTADUNIDENSE!!

José Rodrigues Mao Júnior | Professor de História - IFSP

 

O BLOQUEIO A CUBA: ELEMENTO ESTRUTURAL DA CRISE

Alice Rossi | Graduanda em História - USP e integrante do GMarx-USP

Lincoln F. Secco | Professor do Departamento de História - USP

 

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO 11/07/2021

Lucas Julião | Historiador - UNIFESP e militante da UP

 

RAIVA POPULAR EM CUBA

Joana Salém Vasconcelos | Doutora em História Econômica - USP

 

SOLIDARIEDADE AO POVO CUBANO!

ABAIXO O GENOCIDA IMPERIALISMO ESTADUNIDENSE!!

 

José Rodrigues Mao Júnior |

Professor de História - IFSP

 

Nenhum país do mundo lutou pela independência em condições tão difíceis quanto Cuba. Foram necessárias duas guerras: a dos Diez Años (1868-78) e a Segunda Guerra de Independência (1895-98). Foram guerras onde o colonialismo alcançou o mais alto grau de ferocidade. A repressão espanhola na ilha caribenha vitimou entre 300.000 e 400.000 cubanos, numa população estimada em apenas 1,5 milhões. Em outras palavras, o colonialismo espanhol exterminou – numa estimativa mais conservadora – cerca de um quinto da população cubana.

No último ano desta contenda, os Estados Unidos da América (EUA) intervieram no conflito de maneira oportunista, supostamente ao lado dos cubanos do Ejército Mambi. E em 1 de janeiro de 1899 - em cumprimento ao Tratado de París - foram arriadas as bandeiras do Estado Espanhol nas fortalezas e prédios públicos de Cuba. Mas em seu lugar não foram hasteadas as bandeiras cubanas, mas as horrendas bandeiras de “listras e estrelas” do imperialismo estadunidense.

A presença de tropas militares dos EUA frustraram a vitória do Povo cubano. O primeiro governo de Cuba “independente” foi o Gobierno Militar de los Estados Unidos en Cuba. Assim, os EUA, que perderam apenas 379 soldados em combate, usurparam o poder do Povo cubano que havia sofrido centenas de milhares de mortos.

Esta primeira intervenção estadunidense – apesar de efêmera – construiu os principais mecanismos de dominação neocolonial em Cuba. Neste período foi outorgada a primeira Constituição, que levava como adendo a Enmienda Platt: um dispositivo constitucional que concedia o “direito” aos EUA de intervirem militarmente em Cuba, para garantir a “liberdade e propriedade individual”. Para executar tais intervenções militares, os EUA autoconcederam a si mesmos o direito de manter permanentemente a sua presença militar na Ilha – a Base Naval de Guantánamo. Em diversas ocasiões os imperialistas fizeram uso da Enmienda Platt ao longo da primeira metade do século XX (1906-09, 1912, 1917-20, 1933-34).

O Gobierno Militar de los Estados Unidos en Cuba governava através de Ordens Militares. Uma destas, a “Ordem Militar 62”, forneceu os mecanismos jurídicos para que empresas estadunidenses e latifundiários cubanos se apoderassem das terras dos camponeses pobres. Mecanismos como este selaram uma estreita aliança entre os interesses da burguesia cubana e a dos EUA.

A intervenção militar de 1898-1902 somente cessou após a eleição de Tomás Estrada Palma, presidente imposto pelos EUA., que tinha “dupla cidadania” (também era estadunidense), e que foi eleito sem sequer estar em território cubano. Durante a presidência de Tomás Estrada Palma, este foi proibido de despachar na sede do Governo Cubano (o antigo Palácio dos Capitães Gerais). Estrada Palma foi obrigado a despachar a partir da Quinta Hidalgo (situada em Marianao), que seria a sede da representação diplomática e residência pessoal do embaixador dos EUA em Cuba. Esta foi a forma do governo estadunidense deixar bem claro aos cubanos quem realmente detinha o poder.

O caráter neocolonial implementado pelos Estados Unidos em Cuba fica evidenciado pela declaração do General Leonard Wood, ao deixar o cargo de Governador Militar de Cuba:

“Por suposto que a Cuba se tem deixado pouca ou nenhuma independência com a Emenda Platt … Creio que é uma aquisição muito desejável para os Estados Unidos. A Ilha se norteamericanizará gradualmente e ao seu devido tempo contaremos com uma das mais ricas e desejáveis possessões que há no mundo ...”1.1

A história política de Cuba entre 1899 e 1959 pode ser resumida, a grosso modo, como a história de governos oligárquicos e ditatoriais, permeados por intervenções militares estadunidenses. Ao longo destas décadas, os mecanismos de dominação neocolonial se acentuaram. A burguesia cubana se moldou a esta realidade, assumindo um papel antinacional e de subserviência ao imperialismo como perspectiva de enriquecimento. O aspecto neocolonial de Cuba pode ser apreciado na publicação do periódico texano The Dallas Morning News, na edição de 3 de setembro de 1924:

“Em nenhuma outra nação estrangeira – se é que nós podemos chamar assim Cuba – nos sentimos tão em casa como na Pérola das Antilhas. ... Ali residem, permanentemente, dez mil americanos e o ‘american money’ circula da mesma forma que a moeda oficial. Tudo em Cuba, desde as Centrais, o banco de maior crédito, os telefones, transportes, ferrovias e a roupa é americano”2.1.

Em primeiro de janeiro de 1959, exatos 60 anos após a “independência” de Cuba, em 1899, uma verdadeira Revolução triunfou. A degenerada ditadura de Fulgêncio Batista foi posta abaixo por um movimento de jovens revolucionários que desceram a Sierra, encarnando os anseios dos setores populares mais humildes de Cuba. Ainda em maio de 1959, os revolucionários aprovaram a Lei e Reforma Agrária, que eliminou o latifúndio em Cuba, afetando diretamente os interesses da burguesia cubana e das empresas estadunidenses. 

Paulatinamente os EUA assumiu a articulação de toda estratégia contrarrevolucionária. Cada nova medida tomada pelo governo estadunidense contra Cuba acabava sempre tendo o efeito contrário ao esperado pelo imperialismo. Colocados “contra a parede” a liderança revolucionária cubana não tem outra saída do que radicalizar-se continuamente.

Ao longo dos anos de 1959 e 1960 esta radicalização levou a uma crescente animosidade por parte do Governo dos EUA. Desde o início de 1959, os serviços de inteligência estadunidenses haviam colocado em marcha os primeiros planos de assassinato do dirigente máximo da Revolução. Até 2001 o Departamento de Estado dos Estados Unidos reconheceu ter realizado 637 atentados ou planos de atentados contra a vida de  Fidel Castro Ruz.

Mas as agressões por parte dos EUA não param por aí. Envolvem uma tentativa de invasão (o desembarque na Playa Girón – 1961), de extermínio nuclear, (Crise dos Mísseis - 1962), e das medidas de Embargo Econômico que se iniciaram ainda em 1959 e se consolidaram em 1962.

A existência da União Soviética e de um mercado socialista possibilitou com que Cuba sobrevivesse a décadas de Embargo Econômico. Mas a dissolução da URSS e deste mercado socialista em 1991 colocou Cuba numa situação extremamente difícil, inaugurando uma fase da história cubana que ficou conhecida como o “Período Especial”.

Apesar das muitas dificuldades, Cuba conseguiu superar em parte os problemas decorrentes desta nova conjuntura, através de uma série de reformas que incentivaram o desenvolvimento do turismo. Mas a agressiva ação do imperialismo se intensificou, inclusive através do incremento da atividade terrorista, organizada a partir do território estadunidense.

O embargo econômico contra Cuba se intensificou durante o “Período Especial”. Os EUA acreditavam que, se todo o chamado “bloco socialista” havia ruído, o fim do regime cubano também estaria próximo. Em 1992 foi aprovada nos EUA a Lei Torricelli, e em 1996 a Lei Helms-Burton. Estes novos mecanismos legais intensificaram de maneira criminosa o embargo econômico contra o povo cubano.

Hoje Cuba enfrenta enormes dificuldades econômicas em função destas agressões. As dificuldades são agravadas pela crise provocada pela pandemia de COVID-19, que afeta particularmente as atividades turísticas que têm grande importância no conjunto da economia cubana. Amplos setores da população tem dificuldade de satisfazer as necessidades básicas de consumo.

É dentro deste contexto que devemos interpretar o descontentamento de uma parcela da população cubana, cujas manifestações de protesto foram amplificadas através de uma mídia internacional claramente reacionária. Entretanto, não é a existência desta minoria que se manifestou que nos deve surpreender. O que realmente nos chama a atenção é que, apesar de todas as dificuldades impostas pelo genocida bloqueio imperialista, a esmagadora maioria da população cubana mantém-se firme, cerrando fileiras na defesa de sua Revolução.

O que os imperialistas não podem perdoar é o fato do Povo cubano ser soberano e não mais aceitar ser submetido a condição de neocolônia dos EUA. É por este motivo que estes criminosos dirigem a sua fúria genocida e selvagem contra este generoso povo. São mais de 60 anos de cruel agressão contra nossos irmãos de Nuestra América.

Solidariedade ao Povo Cubano!

Abaixo o Genocida Imperialismo Estadunidense!!

 

1.1 apud in: LE RIVEREND. Julio. Breve Historia de Cuba, p. 77.

2.1 PADRÓN, Pedro Luis. Qué república era aquella!, p.153.

O BLOQUEIO A CUBA: ELEMENTO ESTRUTURAL DA CRISE

 

Alice Rossi |

Graduanda em História - USP e integrante do GMarx-USP;

 

Lincoln F. Secco |

Professor do Departamento de História - USP

 

As manifestações que ocorreram no início deste mês em Cuba já são reconhecidas como as maiores desde 1994; e a partir disso, emergiu uma série de discussões que abarcam desde os problemas conjunturais da ilha até os rumos da Revolução. As posições no interior do campo progressista vão desde uma total defesa da revolta como popular e legítima, até sua completa condenação como parte de um plano imperialista para derrubar a soberania do governo cubano. E foi uma dessas posições identificadas com esse primeiro grupo, a da pesquisadora Joana Salém, que particularmente chamou nossa atenção e com a qual pretendemos dialogar ao longo deste breve comentário.

Salém, uma importante estudiosa da questão agrária da América Latina, inicia o seu artigo destacando as contradições internas do país antes de apenas classificar as manifestações como uma “revolução colorida a serviço do imperialismo”, mas em nenhum momento se questiona ou explica a sua utilização do adjetivo “popular” para caracterizar a revolta.

Há sim uma parcela dos manifestantes que saiu às ruas para protestar contra a escassez e para pedir a vacinação contra a COVID-19, mas não há dúvidas de que tanto o governo estadunidense, com sua campanha multimilionária de disseminação de desinformação, quanto os contra-revolucionários de Miami tenham uma grande parcela de atuação na eclosão da revolta, de modo que a adjetivação “popular” se torna, no mínimo, questionável. Além disso, se os protestos contra o governo, que tinham no máximo 20.000 participantes, são qualificados como “populares”, a manifestação a favor do governo, que só em Havana contou com cerca de 100.000 pessoas, também deveria ser reconhecida como tal. E não esqueçamos que revoltas aparentemente sem chefes têm sido manipuladas através das redes sociais, sendo difícil creditar às atuais manifestações antissocialistas um caráter espontâneo. Elas exploram problemas reais ou não teriam nenhum apoio, contudo a simultaneidade em várias cidades não têm uma natureza aleatória e muito provavelmente está longe de ser mero acaso.

Ressaltando os motivos da explosão da “revolta popular”, a autora elenca duas insatisfações: a econômica e a política. Segundo Salém, o descontentamento de natureza econômica adveio dos efeitos da pandemia - queda do PIB e paralisação do turismo - da unificação das duas moedas emitidas pelo Estado e da reforma na estrutura da renda nacional. Tudo isso levou à escassez de bens de consumo básicos como alimentos, eletricidade, gás e combustível. Assim, atribuir o problema enfrentado pelos habitantes da ilha exclusivamente ao bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos é colocado como um erro, chegando a ser classificado pela autora como “uma forma de negacionismo” de setores da esquerda.

A análise é problemática em muitos sentidos, a começar pelo fato de que o principal causador da insatisfação popular, a escassez, é fruto absolutamente exclusivo do embargo econômico estadunidense. É claro que a pandemia e a queda do poder de consumo do povo cubano tem um peso significativo, mas esses elementos só levam ao agravamento do desabastecimento da ilha porque este já é um problema recorrente que advém de um bloqueio brutal de mais de seis décadas, e que foi intensificado nos últimos anos. Inclusive, é possível traçar um paralelo direto entre as sanções adicionadas por Donald Trump (e que o atual presidente Biden não deu sinal nenhum de reverter) e a eclosão dos protestos. Uma das metas do ex-presidente dos EUA com o endurecimento do bloqueio foi inviabilizar o setor energético cubano, dificultando a importação de petróleo; o início da revolta, que se deu na pequena cidade de San Antonio de Los Banõs, tinha como uma de suas principais pautas o fim dos longos apagões. Assim, atribuir os problemas enfrentados pela ilha ao bloqueio não é uma forma de negacionismo, mas apenas um claro entendimento de que não há como lidar com as contradições internas da ilha sem compreender que absolutamente todas elas são atravessadas de ponta a ponta pelo embargo criminoso dos Estados Unidos.

Ademais, além de recorrente, o desabastecimento da ilha caribenha está ligado a um problema estrutural enfrentado por todos os países que viveram uma revolução anticapitalista. Embora rompessem inicialmente com o mercado mundial, os países socialistas jamais formaram uma rede alternativa plena e, cedo ou tarde, restabeleceram relações comerciais com o mundo capitalista. Isso é uma verdade ainda mais dura para Cuba, que além de ser um dos poucos países socialistas restantes após a queda da União Soviética, está bloqueado pelo país imperialista mais poderoso do planeta.

Observando a análise de Salém por outro lado, o estabelecimento de uma correlação direta entre “raiva popular” e a queda do PIB, pandemia e crise do turismo nos parece um tanto discutível. Cuba sofre com a queda do turismo e depende das remessas de cubanos do exterior, especialmente residentes nos EUA. No entanto, não há uma correlação obrigatória entre a gravidade de uma questão social e revolta popular. Diversos países da América Central e Caribe não enfrentaram “revoltas populares”, e países de dimensões econômica e geográfica mais significativas, como Chile e Colômbia, exibiram um grau de selvageria por parte de seus governos que jamais aconteceu em Cuba (sem esquecer da recente repressão à manifestação anti-Bolsonaro no Recife). A propaganda estadunidense sobre presos políticos em Cuba e violações dos direitos humanos é um acinte vindo do país que estrangulou George Floyd.

Ao contrário, Díaz-Canel reconheceu os problemas, procurou o diálogo e saiu às ruas. Assim como Fidel o fez pessoalmente na crise dos refugiados em 1994. O setor da oposição que se limita a meios pacíficos encontra um elevado nível de debate político por parte do Governo, o que leva a crer que exatamente porque a Revolução Cubana propiciou um nível educacional, cultural e social superior à maioria dos países latino americanos e caribenhos, é que é possível para a população criticar aspectos da burocratização dos canais de poder popular, falta de diálogo com organizações de base etc.

Entrando nesse aspecto da crise política identificada por Salém, supostamente causada pelo engessamento e quebra dos canais de poder popular nas estruturas políticas do socialismo cubano, pensamos que não há como compreendê-la sem mais uma vez recorrer ao fato de que a ilha está constantemente pressionada pelo feroz imperialismo estadunidense. Os Estados Unidos nunca aceitaram que uma revolução nacional de caráter socialista ocorreu em seu quintal, bem debaixo de seus narizes, e como bem demonstram os sessenta anos de embargo econômico e a atual ocupação militar da Baía de Guantánamo, estão dispostos a tomar medidas extremas - que são inclusive condenadas pela comunidade internacional - para recuperar seu domínio neocolonial sobre o território e povo cubanos. Sendo assim, em um momento em que há uma parcela da população na rua hasteando bandeiras estadunidenses e pedindo intervenção militar, apoiados amplamente pela mídia imperialista, pelo governo da maior potência do mundo e pelos descendentes da oligarquia cubana que fugiu da Revolução para Miami, a sugestão de Joana Salém de que a crise política interna pode ser sanada a partir de uma abertura de canais de diálogo por parte do governo cubano não nos parece uma boa ideia.

A Nicarágua seguiu exatamente o script exigido por parte da esquerda: depois de conquistar o poder pelas armas em 1979, a Revolução Sandinista o devolveu à burguesia pelo voto em 1990, numa eleição em meio a uma guerra civil financiada pelos EUA. Ao mesmo tempo manteve a “economia de mercado” e jamais sua população atingiu os padrões de vida material e cultural de Cuba. Teve que passar por anos de neoliberalismo e regressão social. Além disso, o histórico das revoltas internas em países socialistas demonstra que elas até hoje não levaram ao aprofundamento da democracia socialista: foram derrotadas ou reconduziram ao capitalismo porque não é possível passar a formas superiores de democracia e organização comunista da produção num só país. Falta a muitos analistas a leitura da totalidade, pois é no conjunto das relações internacionais que percebemos o bloqueio como o aspecto determinante na configuração social e econômica cubana.

O socialismo bloqueado não foi uma realidade apenas cubana e sim uma condição estrutural da experiência socialista do século XX. Era suportado devido a existência de um campo econômico socialista, ainda que acossado pela “guerra fria” da maior potência do planeta e que visou até o fim destruir a União Soviética. No entanto, Cuba, pela resistência e obstinação em manter o bem estar do seu povo como prioridade, resistiu ao colapso soviético, ao período especial na década de 1990 e à intensificação da guerra que os EUA movem contra ela até hoje.

Em suma, é preciso entender Cuba como uma zona crítica, de tensão constante entre forças extremamente desiguais econômica e militarmente, e que portanto não opera na mesma lógica política do restante do mundo.

Assim, ao invés de sugerir mudanças na política interna de Cuba, que certamente serão importantes no futuro, por ora devemos lutar em direção à solidariedade com o povo cubano, defesa da Revolução e, acima de tudo, fim do bloqueio genocida estadunidense. Sem o fim do bloqueio e das demais violências às quais Cuba é submetida pelo imperialismo dos Estados Unidos, não há medida econômica ou política tomada internamente que dará conta de conter as questões relacionadas ao desabastecimento - que é a causa primeira da assim chamada “raiva popular”. A ilha só terá chance de lidar com suas contradições internas se não tiver sua soberania nacional e popular constantemente ameaçadas. Nas palavras de Bruno Rodriguez, ministro das relações exteriores de Cuba,

“Não é legal nem ético que um país poderoso sujeite uma nação pequena, por décadas, a uma incessante guerra econômica com o propósito de impor a ela um sistema político alienígena e um governo designado por ele […] assim como o vírus, o bloqueio sufoca e mata, e precisa parar”.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO 11/07/2021

 

Lucas Julião |

Historiador - UNIFESP e militante da UP

 

Não é novidade para ninguém que Cuba passou por uma onda de manifestações iniciadas em Santo Antonio de Los Baños e, em questão de dias, alguns milhares de manifestantes surgiram em pelo menos dezoito municipalidades do país. As manifestações aconteceram de Oriente a Ocidente da ilha caribenha somando entre 8.000 e 20.000 participantes no total. As maiores desde 1994.

O que pretendemos aqui não é mais que fazer algumas notas e uma breve análise do que tem ocorrido. É claro! Sofreremos com o mal de todo analista político, principalmente analistas de política internacional, que veem  tudo do alto de uma torre de marfim, bem longe do olho do furacão.

Vamos aos pontos importantes:

1.

Protestos são normais. Quanto mais complexa a sociedade, mais complexos são os problemas. É natural que o arranjo das forças criem tensões nas camadas populares.

Cuba, até onde nos consta, é um país como qualquer outro e, portanto, sempre haverá pessoas contrárias ao status quo, seja ele qual for. Em níveis maiores ou menores, rebeliões estouram da China aos Estados Unidos. Então o que torna uma manifestação antigovernamental tão incomum? Não foram as primeiras deste século e dificilmente serão as últimas.

Fazendo uma crítica entre camaradas. Cuba tem graves, e conhecidos, problemas sociais. Contradições residuais do período colonial, como toda a América Latina, e que ao longo da História do país caribenho não foram devidamente solucionadas. Como qualquer outro país da América Latina, Cuba teve um passado ligado à escravidão. Apesar do país conseguir lotar hospitais públicos no mundo com médicos negros, ou seja, descendentes de escravos em posições típicas da elite nas Américas, os negros em Cuba ainda assim são mais pobres que os brancos e sofrem estigmas por conta da origem étnica. Em um estudo sobre folclore e religiões de matriz africana em Cuba, a autora Bianca Ferreira de Oliveira observa que:

“É primordial reconhecer que a Revolução de 1959 alcançou transformações significativas no combate às desigualdades sociais, sobretudo no que toca acesso à educação e saúde, que sem dúvidas possibilitou melhores condições de vidas das pessoas negras (…) Porém, tais transformações não significaram a eliminação de preconceitos raciais historicamente arraigados na sociedade cubana e seus limites vêm sendo apontados por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento”1.3.

Isso implica que, de fato, em Cuba não há chacinas abertas contra a população negra. É inviável pensar em uma faxineira arrastada pelo asfalto por uma viatura como no Brasil ou um negro morrendo sufocado pelos pés de um agente do Estado. Mas isso não significa que formas ainda mais sutis e cotidianas de racismo não existam e isso implica em tensões populares latentes na sociedade cubana. Apesar das relações de submissão racial não conseguirem se transformar em relações de classe, elas existem como um fantasma do colonialismo que o governo revolucionário reluta em exorcizar.

Ainda que os atuais protestos não se fundem em relações raciais aparentes, sendo, como veremos, vinculados a questões ligadas ao bloqueio e a uma morosidade de Cuba em abarcar outras tantas contradições internas, a questão racial é uma evidência de que o país caribenho é um lugar contraditório… Como qualquer outro.

 

2.

Uma constatação clara sobre a economia de Cuba é que ela está enfraquecida, se comparada com as décadas de 1970 e 1980, desde o final da URSS. Ainda que esteja em melhores patamares do que os tumultuados anos da década de 1990, ela ainda é uma economia claudicante, mesmo que bem distribuída e aplicada.

O acesso a mercadorias de um cubano médio2.3, mesmo antes da pandemia, não é muito diferente do que de um brasileiro pobre, ainda que o cubano pobre não tenha que se preocupar com problemas típicos de um cidadão médio do maior país da América do Sul como, por exemplo, insegurança alimentar, aluguéis impagáveis ou sofrer com a ausência de cuidados médicos fora de uma pandemia.

Vale lembrar que, somado à uma economia vacilante, há um bloqueio econômico que  dificulta qualquer empresa internacional de negociar com o país insular. É impossível fazer qualquer análise séria sobre Cuba e os seus problemas estruturais sem levar em consideração o bloqueio. Afinal, qualquer solução aos problemas estruturais que passe por obter recursos no mercado internacional é radicalmente dificultada por um cerco de guerra. Estipula-se que o bloqueio tenha causado um prejuízo de cerca de US$144 bilhões ao longo dos seus sessenta anos, ou seja, um prejuízo acumulado 44% maior que o próprio PIB do país, estipulado em 100 bilhões de dólares.

Em uma situação pandêmica, as limitadas fontes internacionais de obtenção de recursos, como o turismo, perdem a sua capacidade de injetar dinheiro na economia. Junto às necessárias mas desintegradoras medidas de modernização da economia, houve uma profunda desagregação econômica com uma moeda inflacionária, uma população com menos dinheiro e um país com menor capacidade de comprar insumos no exterior. Uma situação bem melhor explicada pela pesquisadora Joana Salém3.3, especialista no país caribenho, no seu texto Raiva Popular em Cuba.

Tendo em vista, a unidade das circunstâncias citadas, ainda que a maior e principal causa dos problemas seja o bloqueio econômico americano, é de se supor que os cubanos tenham motivos para reclamar. Afinal, o objetivo de um cerco numa guerra é causar exaustão dentro de uma fortaleza. E como nos ensina Sun-tzu, a política é a guerra continuada por outros meios.

 

3.

É muito pouco provável que haja alguém que, sinceramente, dotado de conhecimento pleno do peso das coisas, deseje uma intervenção militar estrangeira em seu próprio país. O significado e peso das palavras é evidente demais. Não tiramos a possibilidade de idiotas, essa é a melhor expressão para todo tipo de massa de manobra que existe em todo lugar do mundo, acabarem abraçando a ideia. Mas é pouco provável que essa parte da população consiga formular tal reflexão.

Assim como pedidos de “intervenção militar”, surgem bandeiras norte-americanas e se soma a isso uma vasta campanha de manipulação de notícias, dentro e fora de Cuba. Desde manifestações massivas atribuídas à Cuba4.3 mas que ocorreram em outros países até agências financiadas diretamente pelo governo americano utilizando bots para divulgar massivamente as hashtags #SOSCUBA e #SOSmatanzas.

Então, aparentemente houve uma série de operações de médio e curto prazo a fim de desestabilizar o governo. Não é novidade que há tentativas de ingerência americana em Cuba e essa, se confirmada, será só mais uma. Na década de 1960, tentaram ocupar militarmente o pequeno país pela Baía dos Porcos, pelos cinquenta anos seguintes foram 638 tentativas de assassinar Fidel, na década de 1990 financiaram grupos de terroristas e narcotraficantes para atacar a ilha. Agora podem estar por trás de uma tentativa de golpe de Estado por meio de uma guerra híbrida. Uma técnica, aliás, já sabidamente utilizada na América Latina.

Apesar de não ser tão correto afirmar que os revoltosos se resumem a revolucionários confusos e mercenários, não é errado afirmar que os EUA utilizaram de desinformação para tentar desestabilizar o governo.

 

4.

Lembro-me de uma das minhas aulas de ciência política II durante a graduação. O professor anunciou que a principal característica de uma ditadura é a ausência de liberdade de expressão, mais até que o voto.

Não vamos discorrer aqui sobre a participação popular nas eleições, que ultrapassa 80%, e nem sobre o fato de que pessoas desvinculadas ao partido possam participar das eleições e são uma parte importante de todos os postos de poder. E nem que a ditadura do proletariado se exerça sobre uma minoria econômica à medida que amplia o poder popular. Vamos focar na liberdade de expressão.

Vamos à um chamado de uma reportagem da BBC Brasil: “’A internet continua cortada, não sei onde muitos dos meus amigos estão’, disse um dos manifestantes que gravou e compartilhou vídeos dos protestos recentes em Cuba.”5.3

Também hás graves denúncias feitas no site do Instituto Mises de Cuba6.3, cujo o fundador está refugiado no Brasil7.3 (pelo menos segundo um influencer do anarcocapitalismo), mas que mantém agentes locais trabalhando na ilha. O site contém inflamados textos contra o totalitarismo e a ausência de liberdade em Cuba, sempre com críticas firmes à falta de liberdade econômica no país caribenho.

O único problema, no primeiro e no segundo caso expostos, é que as pessoas conseguiram livremente fazer suas denúncias. Dificilmente o usuário que divulgou o vídeo foi até Miami só para falar que está sendo perseguido e, pelo menos, desde 2017 os anarcocapitalistas de Cuba vem livremente denunciando a falta de liberdade. Para além da chamada “mídia oficial”, prolifera em Cuba, já a alguns anos, uma “mídia alternativa” antigovernamental que até agora não foi suprimida. Ou será que não há um agente de inteligência em Cuba suficientemente capaz de rastrear o IP de um site oposicionista?

Não vamos esquecer que há perseguição a pesquisadores que anunciam que beber agrotóxico faz mal a saúde8.3, assassinato de ambientalistas9.3, perseguição judicial por denunciar o assassinato do próprio filho10.3 e assassinato de políticos de oposição11.3! Mas no Brasil, não em Cuba. É sim viável, e provável, que existam limites à pesquisa e à divulgação de notícias para fins de manutenção do poder, mas ainda sim, frente às circunstâncias da ilha (a 60 anos sob cerco), a censura tem permitido muita gente falar o que pensa.

Houve repressão aos protestos, isso é claro. Mas, ao contrário do Brasil, ninguém perdeu um olho com um tiro certeiro ou foi suprimido com jatos de água e gás lacrimogêneo, como na França.

 

5.

A situação irá melhorar? Os revoltosos derrubarão o governo? Só o tempo poderá dar a resposta mas aposto que a economia irá melhorar e a situação irá se acalmar até final do ano.

Apesar da queda no rendimento advindo do turismo, Cuba tem a possibilidade de entrar no lucrativo mercado de vacinas, que no próximo ano terá que suprir a demanda de 6 bilhões de pessoas e até o momento não existe um único laboratório sozinho capaz de fazê-lo. O mercado argentino já trava acordos para a compra de doses das vacinas cubanas, o México também anunciou que comprará ampolas e a Venezuela já aplica os antivirais caribenhos. E, para o desespero de Joe Biden, boa parte do mundo terá que comprar as vacinas que estão disponíveis, incluindo as cubanas. Isso, creio, será uma importante fonte de renda pelos próximos dois anos.

Além disso, a revolução cubana está entranhada no nacionalismo cubano, segundo as conclusões do professor José Rodrigues Mao Jr em A revolução Cubana e a questão nacional. As manifestações antigoverno se trasvestem de um caráter nacional, mas ser nacionalista em Cuba é ser revolucionário. Esta é uma contradição que os protestos não conseguiram contornar. É possível que no futuro as coisas mudem? Evidente. Mas por hora, eles ainda não conseguiram vencer a contradição essencial sobre o que é ser cubano. Não à toa, foram 20.000 contra o governo nas melhores estimativas e outros 100.000 a favor, só em Havana. Talvez se tantas bandeiras dos Estados Unidos não houvessem sido erguidas, os atos favoráveis ao governo poderiam ser bem menores, mas essa é uma especulação sem qualquer embasamento.

Para todos os fins só saberemos o quanto a revolução foi abalada no dia 26 de Julho, durante as manifestações cívicas em prol da revolução.

 

6.

O fim do regime seria positivo? Uma intervenção americana benéfica? Para responder essa pergunta é necessário olhar para dois lugares: o leste europeu e a Líbia.

Passados trinta anos desde o fim do socialismo no leste europeu observa-se uma queda vertiginosa em todos os índices sociais12.3. Com algumas poucas exceções, a democracia não trouxe liberdade alguma com o fim das cruéis “ditaduras totalitárias”. Cuba expulsou as máfias, que se mantêm vivas e bem alimentadas pelo governo norte-americano e é pouco provável que elas não voltem caso Miguel caia. Olhando para os países ao redor, é difícil que Cuba não se torne só mais um país pobre do caribe, como Porto Rico, uma semi-colônia norte americana, com altos índices de violência e desemprego. Bem, apesar de não valer o preço, quem sabe Cuba não se torne um expoente na produção de reggaeton?

Já no caso do segundo exemplo, talvez com exceção do Kosovo (me faltam dados para afirmar), atrás de si o imperialismo norte-americano só deixou destruição. As intervenções humanitárias norte-americanas sempre tiveram a capacidade de reduzir a vida humana onde ocorreram. Dificilmente Cuba criaria um mercado de escravos como a Líbia13.3, mas as bombas estadunidenses ainda não aprenderam a diferenciar os que pedem intervenção militar e os que não. Por hora elas só caem e explodem, e é isso que podemos esperar de qualquer ação militar na região.

 

Há solução?

 

Qualquer solução ofertada de bom grado por alguém que conheça muito pouco sobre um assunto, como é o caso do autor dessa carta, deveria ser sumariamente rejeitada. Ainda sim, as ofereço.

No que tange aos problemas políticas de Cuba, tomamos para nós as ideias da pesquisadora brasileira Joana Salem:

“Se a fortaleza da revolução cubana é sua capacidade de coesão popular e de subjetividade solidária, é hora de abrir novos canais de representatividade e dinamizar a relação de escuta e diálogo entre sociedade e Estado. O governo precisa se mostrar mais convincente, não apenas com palavras, mas com medidas econômicas emergenciais, para que a população enraivecida se sinta verdadeiramente escutada.”

Só discordamos de um único ponto: não é hora de abrir novos canais. Isso é algo feito a médio prazo, com sorte para o final desse ano ou até meados do ano que vem.

Agora é hora de observar um ponto importante: há pessoas carregando livremente bandeiras dos Estados Unidos e pedindo intervenção militar. Não se pode confiar no imperialismo, como já dizia Che Guevara, nem um pouquinho. A revolta popular ocorrerá enquanto houver Estado e as demandas populares devem ser abraçadas, ouvidas e compreendidas e no limite do possível atendidas. Mas não se pode tolerar os agentes do imperialismo, aqueles que pedem o extermínio do próprio povo em nome do direito de escravizar compatriotas, os que anseiam em prostituir a mão de obra alheia e agiotar com a liberdade de mercado. Não se pode abrir canais de diálogo enquanto esses grupos atuam sem medo pelas ruas. Antes da abertura de novos canais de diálogo é necessário arrancar a berne da carne.

O único espaço que os amigos do império conseguiram conquistar, a internet, precisa ser ocupado pela revolução. As redes de comunicação precisam ser quebradas e substituídas por revolucionários dispostos a comunicar e ouvir o povo, anular a crítica imperialista e fomentar novos espaços de debate. Não é possível que em um país socialista haja espaço para gente interessada em massacrar o próprio povo, mesmo que esse espaço seja só virtual.

Sobre a economia, é necessário uma industrialização massiva a fim de, ao menos, suprir as novas necessidades de consumo da população, ou que ao menos sirva para obtenção de divisas internacionais. E a criação de novas formas de obtenção de energia elétrica mais difíceis de serem sufocadas pelo império. Como? Bem, logo no começo afirmamos: analistas de política internacional não sabem de nada.

 

1.3 OLIVEIRA, Bianca Ferreira. "Folclore, Religiões Afro-Cubanas e Racismo em Santiago de Cuba." Revista de Estudos e pesquisas sobre as Américas. vol. 13.

2.3 Não existem muitas informações sobre o poder de compra Cubano, ainda mais depois da unificação monetária. E é um tema relativamente difícil de se estudar, já que os preços dos produtos variam muito em diferentes países sendo mais importante notar a relação salário/preço dos produtos do que analisar os salários ou preços individualmente. O I21, ligado ao PCdoB, calculou que, para comprar produtos básicos, o Brasileiro gasta duas vezes mais que o cubano. Fonte: https://i21.org.br/visao-global/novo-salario-minimo-de-cuba-aproxima-po…. Contudo o estudo não engloba o preço de produtos industrializados. O preço de um Peugeott em 2014 era de R$ 627.000,00. Um preço um pouco mais caro para o mesmo produto no Brasil no período. Contudo o salário do cubano era de cerca de R$92,00. Fonte: https://www.terra.com.br/economia/cuba-libera-compra-de-carros-com-peug….

12.3 Não há muitos estudos comparativos após trinta anos de “democracia”. O que temos são estudos imediatamente após as chamadas revoluções de veludo e a implantação de choque do capitalismo, em especial O fim da URSS de Jacob Gorender. O máximo que temos acesso no Brasil são os estudos que indicam uma “nostalgia soviética”, principalmente na Alemanha Oriental e na Rússia, o que por si só indica um descontentamento com as novas formas de vida comparadas com as anteriores. Fontes: https://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2009/07/05/ult2682u1… e https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/19/internacional/1545228653_65…

RAIVA POPULAR EM CUBA

 

Joana Salém Vasconcelos |

Doutora em História Econômica - USP

 

Antes de classificar a revolta popular ocorrida no domingo 11/07 em diferentes partes de Cuba como uma “revolução colorida” ou como uma jogada imperialista, é necessário olhar atentamente aos problemas internos do país e as contradições atuais da revolução.

Com a pandemia, o PIB cubano caiu 11% e o turismo paralisou. As divisas trazidas pelos turistas secaram. Estas eram responsáveis por irrigar uma parte importante da vida econômica da população das cidades maiores (Havana, Santiago, Santa Clara, Trinidad, entre outras). Diante da escassez de divisas, o governo resolveu antecipar uma reforma monetária e cambial que unifica as duas moedas emitidas pelo Estado e reforma a estrutura da renda nacional. O pacote foi chamado Tarea Ordenamiento e decretado em dezembro de 2020. Apesar das boas intenções, a medida gerou desequilíbrios e distorções difíceis de corrigir.

A revolta popular de domingo (11/07) reflete insatisfações de duas naturezas: econômica e política. Antes de rotulá-las, é fundamental entendê-las.

 

Insatisfações econômicas: impactos da Tarea Ordenamiento na vida dos cubanos

 

O principal objetivo da Tarea Ordenamiento e da unificação monetária é corrigir desigualdades sociais e acabar com o desestímulo à produtividade gerados pela fronteira interna das duas moedas na economia cubana. Assim, a Tarea Ordenamiento eliminou o CUC (moneda convertible ou “dólar cubano”, com paridade aproximada ao dólar estadunidense) e unificou a moeda nacional no peso cubano (25 para 1). Como amortecimento transitório, o governo criou a Moneda Libremente Convertible (MLC), que tem valor de divisa (1 MLC vale 25 pesos cubanos) e só existe em forma de cartão. É uma “reserva transitória de valor”, que deve ser encerrada em breve. Junto com isso, o governo eliminou subsídios a produtos e itens do cotidiano, aumentou tarifas e multiplicou salários em cinco vezes.

Não é preciso ser um gênio para perceber que a medida pode ser um gatilho inflacionário e gerar descontrole cambial no mercado paralelo. Num contexto de escassez de produtos, a medida requer uma liquidez monetária que parece não existir na sociedade e pode criar um caldeirão de pólvora de insatisfação. Só que agora, diferente de 1994, essa insatisfação se expressa pelas redes sociais e smartphones.

Em resumo, a Tarea Ordenamiento era para ser um remédio, mas impactou diretamente o poder de compra dos cubanos e mostrou efeitos colaterais duros no cotidiano. Embora o governo tenha criado a MLC, não parece ter sido suficiente para reorganizar a capacidade de consumo popular no nível imediato.

No dia a dia, a relação entre necessidade popular, disponibilidade de produtos e poder de compra está desequilibrada desde 2020. O fim abrupto do CUC induziu o aumento do mercado paralelo de divisas e das zonas de descontrole cambial, decorrentes da necessidade imediata das pessoas em consumir alguns itens em contexto de escassez. Não estamos falando de luxo, nem de consumismo. É alimentação, eletricidade, gás, combustível e outros itens básicos que se tornaram mais difíceis de encontrar e comprar na pandemia.

O bloqueio dos EUA representa uma parte importante dessa crise, não há dúvidas. Mas é um erro atribuir o problema exclusivamente ao bloqueio. Parte da esquerda brasileira comete esse erro reiteradamente e não examina as contradições internas da sociedade cubana. A longevidade da revolução só pode ser explicada pela sua fortaleza interna. Recusar a ver as fissuras internas é também uma forma de negacionismo.

A crise econômica (bloqueio, pandemia, turismo a nível quase zero, escassez de divisas e de produtos, fim abrupto do CUC, pressão inflacionária do mercado paralelo, desequilíbrio entre necessidade e renda) é uma armadilha de difícil saída. Além disso, em junho e julho, Cuba enfrentou o agravamento da pandemia, arriscando ter escassez de seringas para aplicar a vacina e com aumento na curva de contágios. O governo cubano controlou a pandemia de maneira exemplar até aqui, mais eficiente que a Bélgica ou a Suécia, que tem a mesma população e respectivamente 10 e 20 vezes mais mortos por covid. Mas a tentativa recente de ressuscitar o turismo na ilha abriu caminho para novas variantes, gerando recorde de mortes diárias (47 em um dia). Talvez a aprovação da vacina Abdala, 100% cubana, seja a única boa notícia do ano para a ilha.

 

Insatisfação política: crise do poder popular

 

Como em outros momentos da sua história, Cuba poderia atravessar a crise econômica com unidade popular. Mas há ainda um problema político que não deve ser menosprezado. Existe um engessamento ou quebra dos canais de poder popular nas estruturas políticas do socialismo cubano. Faz anos que alguns cubanos de esquerda alertam sobre a necessidade de recriação das formas do poder popular. O poder popular dos Comitês de Defesa da Revolução (CDR), da CTC-Revolucionaria, da Federação de Mulheres Cubanas, dos organismos da juventude comunista e outros braços do Partido estão burocratizados, perderam representatividade histórica e se tornaram insuficientes. São demasiado oficialistas e já não absorvem as contradições internas da sociedade, para vocalizar a população em suas diferentes nuances. Na realidade, muitos deles se tornaram órgãos de representação do Estado perante a sociedade, e não da sociedade perante o Estado.

Fernando Martinez Heredia, amigo de Che Guevara e falecido em 2017, dizia que a política popular da revolução era a base da sua força e que a construção de uma cultura de solidariedade orgânica era uma batalha constante. Faz tempo que alguns cubanos de esquerda indicam que o governo precisa criar novos mecanismos de decisão e poder popular para além das eleições bianuais. A revolução não pode sobreviver sem apoio popular e essa sustentação não é automática. Em um processo revolucionário, a relação entre o Estado e a sociedade precisa ser constantemente reinventada e reconstruída. É isso que faz de uma revolução, uma revolução: ser capaz de recriar revolucionariamente os mecanismos de poder popular, para que os governos representem processos sociais de decisão real e direta da população sobre seu país.

Se Raul Castro se empenhou decididamente em reformar a economia da ilha expandindo formas de negócio privado, o reformismo não atingiu da mesma forma as estruturas políticas do país. Os órgãos de representação estão burocratizados e, com exceção do período constitucional de 2018-2019, não foram criados métodos alternativos de decisão popular. A revolta de 11/07 expressa isso: um povo que está sentindo raiva e está passando dificuldades econômicas, mas não tem canais suficientes de expressão e poder. O resultado é essa panela de pressão.

 

Legitimidade de protesto x Oportunismo imperialista

 

A população cubana tem legitimidade de protestar. Ao perceber que suas demandas e insatisfações não são escutadas pelo governo, que os espaços de diálogo entre Partido e sociedade não são mais tão eficazes como antes, ou mesmo desapareceram, a população pode, eventualmente, ir às ruas com raiva.

Também não devemos menosprezar a mobilização cultural de novembro de 2020 e o manifesto 27N - que afirmou estar dentro da constituição, portanto, do socialismo. Assinado por mais de 300 trabalhadores da cultura, o manifesto demandava mais canais de poder de decisão política para a população e novos fóruns de diálogo em que seja plenamente possível divergir. O 27N é a face mais organizada dos trabalhadores da cultura, que antecipa amigavelmente um sentimento de insatisfação mais amplo.

É claro que o imperialismo vai “cumprir seu papel” e cubano-americanos de Miami vão tentar se apropriar do sentimento das ruas de 11/07. Desde 1994, a direita cubana radicada nos EUA não tinha uma oportunidade política tão fértil para sua militância contrarrevolucionária. Os “algoritarismos” estão ativados. O imperialismo ao mesmo tempo produz a crise e se beneficia das dificuldades internas do país. 

Dentro de Cuba existe um setor popular contra a revolução, que considera o governo uma ditadura. São eles que gritaram “abaixo a ditadura” e “liberdade” no 11/07. Não conseguimos medir com exatidão o tamanho desse setor, mas historicamente foi minoritário. 

Acontece que o imperialismo e a militância contrarrevolucionária se misturam ao povo cubano na sua insatisfação e tratam de conduzir a raiva para uma lógica anti-socialista. Não se deve rotular e generalizar os cubanos nas ruas como “manipulados” ou “liberais” ou “contrarrevolucionários”. É preciso ter cuidado para examinar o que o povo revoltado sente. Existe legitimidade na sua raiva e se o governo não criar mecanismos econômicos rápidos para resolver o problema do consumo de itens básicos cotidianos, se não abrir canais eficientes de diálogo e não produzir novos organismos de poder de decisão popular, essa raiva pode não passar tão fácil. E é isso que os inimigos da revolução cubana desejam.

 

Por fim

 

Por último, não podemos menosprezar o papel das próprias reformas econômicas de Raul Castro no tipo de revolta que ocorreu em 11/07. Desde 2011, o governo cubano facilitou a criação de negócios por conta própria individuais, que cresceram de 50 mil para mais de 500 mil entre 2010 a 2020. Já a criação de cooperativas foi dificultada por procedimentos burocráticos e falta de incentivos, não passando de 700 as novas unidades criadas no mesmo período.

Uma economia que cresce com negócios privados e não com cooperativas estimula uma subjetividade individualista, que a revolução cubana (notadamente Che Guevara e Fidel Castro) batalharam para combater. A desigualdade de tratamento do Estado para criação de negócios privados e de cooperativas está sendo apontada como um problema por pesquisadores aliados da revolução há uma década.

Se a fortaleza da revolução cubana é sua capacidade de coesão popular e de subjetividade solidária, é hora de abrir novos canais de representatividade e dinamizar a relação de escuta e diálogo entre sociedade e Estado. O governo precisa se mostrar mais convincente, não apenas com palavras, mas com medidas econômicas emergenciais, para que a população enraivecida se sinta verdadeiramente escutada.

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