Ano 2 nº 31/2021: A Doutrina Góes: a política do exército e a sua projeção nacional no Governo Vargas (1934-1937) - Luana Brambilla

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A DOUTRINA GÓES: A POLÍTICA DO EXÉRCITO E A SUA PROJEÇÃO NACIONAL NO GOVERNO VARGAS (1934-1937)

 

Luana Brambilla

                                                         Graduanda em História - USP

 

Góes

Fonte: http://memorialdademocracia.com.br/publico/image/15660

 

O desfecho da Revolução de 1930 produziu a alteração do quadro político-institucional da República. A ascensão de Getúlio Vargas pela ação das armas e dos militares tenentes no governo entre 1930-1934 marcou uma nova fase da política brasileira, seja pela destituição da oligarquia dominante paulista, seja pela conformação dos grupos de poder no novo governo. Uma dessas demonstrações se refere à virada do Exército no pós-30 em torno da figura de Vargas e em especial ao lugar das forças armadas no arranjo político durante os seus anos iniciais até a instalação do Estado Novo. Uma das figuras mais expressivas no seio da instituição militar nesse período é o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, chefe do movimento revolucionário que depôs o presidente Washington Luís.

A figura de Góes Monteiro passa a exercer grande influência em defesa da participação do Exército na construção da nova ordem. Dessa forma, as ideias e a personalidade do general são localizadas dentro de um processo que se desdobra mais largamente em torno da disputa aberta com a velha corrente oligárquica e dos novos elementos representados pelos militares, na tentativa de influenciar o Governo Provisório (1930-1934).

 

O general Góes Monteiro

 

A Revolução de 1930 teve Góes Monteiro como chefe do Estado-Maior revolucionário, inicialmente liderando as forças rebeldes na tomada do quartel-general de Porto Alegre e as tropas que se deslocaram pelo Rio Grande do Sul, buscando neutralizar e convencer os militares a aderir ao levante, dado que o triunfo sobre o Rio Grande do Sul permitiu o deslocamento da Revolução até sua vitória[1], em 3 de novembro de 1930, quando Vargas assumiu o poder. Nesse sentido, a participação destacada de Góes e mais tarde em 1932, ascendendo à posição de general de divisão, traz ao centro das suas discussões mais claramente o papel das forças armadas e principalmente o Exército após 1930[2]. Ele foi Ministro da Guerra (1934-1935) e depois um dos principais generais do Estado Novo, quando buscou fortalecer as classes armadas frente a política do governo.

Uma entre as principais características do projeto defendido por Góes, que era a presença do organismo militar na condução do processo de mudança do país, se definia em relação à organização do poder político. Desse modo, aumentar a importância e o poder das forças armadas frente ao governo, significaria necessariamente romper com o sistema político oligárquico e as instituições do regime “liberal-democrático” da Primeira República. A existência das classes armadas segundo Góes Monteiro dependia diretamente da eliminação da disputa político-partidária alimentada pelo regime republicano.

O pensamento do general parece servir dessa maneira para lançar o Exército como elemento unificador da política nacional, em virtude do conflito com a classe oligárquica, identificando-o como a principal força a garantir a segurança e o desenvolvimento das atividades políticas e econômicas. Essa visão se relaciona com a definição do intervencionismo controlador surgido no interior do Exército, a partir de Góes Monteiro, que destacava a liderança das Forças Armadas, sobretudo do Exército na condução das mudanças, a partir de uma posição hegemônica dentro do Estado[3]. Essa posição expressa pelo general se torna ao longo da década de 1930 a ideologia dominante no seio do Exército, em torno do intervencionismo reformista, seguida de um projeto que vislumbrava a nacionalização da política e o desenvolvimento econômico encabeçado pelos militares.

Os conflitos de natureza ideológica e política surgidos após a Revolução de 1930 em torno da participação dos militares-tenentes, manifestado pela divisão interna e a quebra da hierarquia do Exército e que marcaram os quadros da organização, envolveu o aparecimento de diferentes posições sobre a conduta da corporação e o seu lugar diante do cenário daquele momento. A divisão do Exército em correntes se dava entre: o profissionalismo das forças armadas, mediante a defesa afastamento dos militares da vida política; a reformista, que defendia o fortalecimento do Exército e a defesa de um papel de liderança da elite militar nos assuntos da vida nacional; e, por fim, a ideia do Exército enquanto vanguarda do povo com uma mudança completa na organização militar e no papel político das Forças Armadas[4].

Diante da segunda corrente intervencionista reformista, tanto a primeira quanto a terceira perderam espaço ao longo da década de 1930.

Uma entre as preocupações que surgiram logo após o movimento revolucionário foi a renovação dos quadros da alta cúpula militar alinhada à ala vitoriosa, através do sistema de promoções alterando a composição do generalato nos postos de divisão e brigada. A mudança dos oficiais generais ocorrida entre 1931 e 1932 significava afinal maior exigência na tentativa de fortalecer a hierarquia sob a política do alto generalato como uma iniciativa de homogeneização dos quadros do Exército. Nesse sentido, a reorganização institucional interna em todos os graus era tida como essencial visto que, para o próprio Góes Monteiro, significaria inviabilizar a partidarização das classes armadas como o controle pelo alto do corpo militar. Colocava-se em evidência uma nova política de reorganização do Exército, a qual implicava em grande parte reprimir movimentos de protesto e indisciplina ocorridos entre praças, sargentos e tenentes, ao mesmo tempo em que se buscava promover e preservar a autoridade e o prestígio da alta hierarquia.

 

Na percepção de militares como Góes Monteiro, já se desenhava nítida a convicção de que não se conseguiria implementar uma política militar adequada enquanto continuasse a interferência da política dentro da organização (CARVALHO, 2019, p. 135).

 

Para Góes Monteiro, o estado de indisciplina e quebra da hierarquia no seio da classe militar se dava em razão das instituições partidárias, representando dessa maneira os males que atingiam o Exército e colocavam em perigo a própria integridade nacional. Essas ideias estão no Relatório do Ministério da Guerra escrito a Vargas em 1934. Em uma retrospectiva entre o Império e a Primeira República, Góes expõe o lugar sempre renegado ao Exército enquanto força nacional pelo poder político. Segundo ele, se por um lado, os militares foram responsáveis pela derrubada da Monarquia e a instauração da República, por outro, o quadro político republicano não melhorou os problemas relativos à estrutura militar e nem promoveu o fortalecimento da força armada. Significando uma situação militar sempre recorrente como alvo dos interesses facciosos da elite política.

Edmundo Campos Coelho, na obra Em Busca de Identidade: O Exército e a Política na Sociedade Brasileira, ressalta que a ruptura dos militares com o governo monárquico significou um momento de passagem das classes militares da subordinação à ascensão, em que procuraram fortalecer a identidade da organização como superiores aos demais elementos civis. Tal processo, decorrente do sucesso dos militares na proclamação da República, criou condições para que se formasse no seio militar um sentimento de distinção em relação aos demais setores da sociedade civil; essa mudança do espírito militar, no entanto, não foi acompanhada de uma política sistemática que reforçasse o elemento institucional da organização. Essa ausência acabou implicando na participação dos militares em assuntos políticos, gerando um estado permeado por conflitos e indisciplina em que classes armadas ficavam à mercê seja dos interesses das oligarquias seja dos próprios militares beneficiados de cargos e de influência na política.

Para Góes Monteiro, a situação da organização não se via apenas condicionada por uma parcela dos militares que se colocavam em oposição à “afirmação da grandeza do Exército”, como perdurava pela natureza do regime político brasileiro. Dessa forma, o Exército segundo Góes era visto historicamente como o elemento central das explorações político-partidárias, fossem elas da oposição ou do governo. E a causa desse conspiracionismo contra as forças armadas não seria senão provocada pelos interesses das forças partidárias. Sobre esse quadro se exigia uma mudança no regime de governo e esperava que durante o governo de Getúlio Vargas tais mudanças fossem colocadas em prática[5].

 

A política e o Exército

 

Com a Revolução de 1930, ficava claro que a construção das bases da nova ordem não contaria com a presença puramente civil como acontecera na Primeira República, mas contaria também com a participação dos militares. Por isso, em relação à participação militar no movimento, se assomava a preocupação no seio civil de que o governo assumisse a forma de uma ditadura militar caso houvesse uma intervenção direta pelos militares em meio ao cenário que alimentava a defesa e o papel político-militar das forças armadas. José Américo no prefácio de “A Revolução de 30 e a política do Exército” (1934), destaca uma possível ambição das forças militares de se apoderar do Estado, e por esse motivo reforçava a ideia de que cabia apenas aos militares a gloriosa missão de sacrificar-se a serviço da nação, como força saneadora da desordem política e da restauração da ordem civil, como boa protetora da pátria e das instituições.

Para Américo, cabia a Góes Monteiro, como general eminente no seio do Exército, garantir a união dos militares para que estes não sucumbissem aos desejos de um só homem ou grupo de oficiais. Tais ideias colocam em evidência a função tutelar relegada às Forças Armadas de forma a atuar como força saneadora em caso de possíveis entraves à evolução política do país. Mas como bem havia salientado José Américo, Góes Monteiro se destacava pela sua participação político-militar ativa durante o governo de Vargas e da própria Revolução de 30. Nesse sentido, a figura de Góes não almejava senão elevar o Exército e as Forças Armadas a outra posição, a da liderança na política nacional.

O fortalecimento do Exército dependia tanto de uma mudança institucional que visasse as transformações organizacionais na estrutura militar, como uma nova política interna que eliminasse a interferência partidária dentro da corporação. O que se pretendia por trás do fechamento do Exército às seduções partidárias no seio das classes armadas, para além do engrandecimento puro da organização sob a base da hierarquia e disciplina, era a consolidação do poder militar na política institucional. Esse projeto defendido por Góes Monteiro é analisado segundo a interpretação de José Murilo de Carvalho em torno do intervencionismo reformista, em que o afastamento dos militares a partir do controle da instituição militar, significaria fortalecer a influência e a atuação do Exército sobre o poder político[6]. Define-se dessa maneira, que os reais interesses de Góes em relação ao papel das forças militares era fortalecer o Exército na qualidade de instituição nacional, desenvolver a capacidade defensiva das forças armadas e transformá-lo em força garantidora e construtora da ordem e da estabilidade política do país.

Justificava-se a partir das ideias de Góes que a base das forças armadas fosse apoiada por um governo forte, capaz de assegurar dois pontos fundamentais: o desenvolvimento do nacionalismo econômico e a promoção de uma mentalidade política e cultural forte através do espírito nacional. Exigia-se a partir dessa transformação, a mudança da política do Estado, defesa da intervenção e a regulação sobre a vida coletiva, desenvolvimento da economia, do trabalho, da educação e do fortalecimento das forças militares. Pretendia-se dotar o Exército de força capaz de assegurar o desenvolvimento social e econômico operado pelo Estado, pensando a partir da reorganização institucional da corporação militar, como do aparelhamento das forças armadas através da promoção da indústria bélica.

A integração das forças do Exército e de suas funções profissionais e enquanto instrumento de força do poder civil, se daria pela garantia da segurança interna, através da eliminação da instabilidade política e dos conflitos sociais. Era importante, que esse plano de conjunto fosse alcançado sem interrupções, assegurando a continuidade do processo desencadeado pela revolução de outubro até a sua estabilidade.

 

[…] pelo menos, a organização e estrutura delas [das forças armadas], devem ser mudadas em todos os sentidos, paralelamente e até antecipadamente, ao surto renovador da nação, à custa de todo sacrifício, porque isto representará a maior garantia de segurança do Governo Provisório, da consolidação da unidade nacional e da execução do programa revolucionário. Sem este instrumento de ação ou com ele enferrujado e imprestável, o problema se torna excessivamente difícil. (GÓES MONTEIRO, A Revolução de 1930 e a política do Exército, p. 109).

 

A Revolução de 1932 também criou condições para que se fortalecesse a necessidade de desenvolver a unidade dentro do Exército. A participação militar no levante em São Paulo ao lado dos interesses defendidos pela elite paulista em oposição à política de Getúlio Vargas, demonstrou tanto a debilidade das forças de guerra, do poderio bélico na mobilização das tropas e da capacidade combativa, como a campanha contra as forças revoltosas indicava a inevitabilidade de reformar as estruturas da organização, assegurando o controle sobre a instituição e a centralização política em torno de Vargas. Mas o que se colocava como irremediável do ponto de vista de Góes Monteiro, era a mudança institucional. Segundo ele, para que o Exército não voltasse a cair nessa mesma condição ilustrada por 1932 era preciso “que a parte sã do país, reprovando o regime em que temos vivido, o acompanhe em seus alevantados desígnios”. O posicionamento do general ante a questão militar identificava dessa maneira os perigos do país e do Exército como partes de um mesmo problema: as instituições políticas. Revelando assim as bases da sua ideologia política autoritária.

A defesa de um governo forte não coincidia com a existência do sistema representativo e do sufrágio universal. Ainda que defendesse como medida transitória a existência de um partido único, mas nacional, este teria a finalidade de movimentar-se no sentido de “engrandecer a Nação e não os interesses individuais”. Para ele, as únicas instituições nacionais eram as Forças Armadas, de modo que somente através do retrato delas se poderiam organizar as demais “forças da nacionalidade”.

Por esse motivo, garantir a autoridade das Forças Armadas reclama ao mesmo tempo alguns pontos a serem defendidos, como a iniciativa de conter o crescimento das ideias contrárias ao Governo. O que interessava segundo a concepção de Góes Monteiro, era reforçar o Exército mais do que um braço armado, mas como “reflexo do desenvolvimento harmônico de todas as forças vivas da nação, dais quais dependia diretamente sua eficiência”, dessa forma pretendia-se ressalvar a posição ocupada pelas classes armadas na reconstrução do aparelhamento nacional, bem como assegurar a ordem política e social. Nesse sentido, o desenvolvimento da consciência nacional atrelado à promoção da imprensa das ideias nacionalistas e em defesa das forças armadas procurava, dessa forma, afastar as pretensões partidárias interessadas em ameaçar e conspirar contra o projeto nacional.

Em entrevista concedida ao jornal A Nação em 1933, Góes expôs a necessidade de a imprensa combater os malefícios do federalismo, pregando um sadio nacionalismo e em defesa do fortalecimento das Forças Armadas.

 

– Que A Nação, integrada nos sentimentos brasileiros possa fazer obra nacionalista, de brasilidade, inspirada ao amor à ordem – é o que aspiro, como brasileiro, que vê antes do mais à grandeza do Brasil. Não são as ideias armamentistas com intuitos agressivos aquellas, que de certo, serão ventiladas pela A Nação, mas sim as grandes ideias construtoras, com as quais um jornal deve iluminar a consciência do povo, tendo em vista tudo o que possa interessar a vida do país, a grandeza da pátria, sem esquecer tão pouco o apoio às classes armadas em que repousa a defesa da unidade nacional (Jornal A Nação, 14 de janeiro de 1933, Rio de Janeiro,).

 

Da mesma maneira se colocava como política da pasta do Ministério da Guerra:

 

Se o problema dependera exclusivamente deste Ministério, diariamente os jornais publicariam todas as providências tomadas. O povo, destarte seguramente informado acerca de nossas verdadeiras intenções não teria como ser hostil aos acenos do Governo, pela simples razão de que ninguém repudia, normalmente, o benefício recebido, ainda mesmo quando este envolva certas restrições no nosso modo de vida. O que desejo da imprensa, em nome da felicidade do Brasil, é que ella jamais desça de seu pedestal, do alto do qual deve iluminar a opinião pública, para se aliar aos interesses partidários […] (GÓES MONTEIRO, Relatório do Ministério da Guerra, 1935, p. 43).

 

A política do Exército e a reorganização da política nacional

 

Os anos de 1933 e 1934 foram delimitados pela organização da Assembleia Constituinte  e se concentram em torno das mudanças possíveis no arranjo institucional entre as novas lideranças políticas e a velha elite oligárquica destituída do poder pela Revolução de 1930. A mudança constitucional pela convocação da Assembleia Constituinte confrontava os interesses dos atores dos setores oligárquicos e do Governo Provisório. Nesse sentido, conservar os moldes da constituição de 1891 pela velha oligarquia significaria retornar ao sistema político anterior nos contornos liberais da representação política concentrando o poder nos estados pelas oligarquias tradicionais. A esse cenário se somava a corrente do próprio Governo Provisório com vistas a alçar o programa da revolução, sob a centralização política, em torno do Estado forte e do poder da União sobre os estados. A preocupação com a constitucionalização do país provocou a antecipação do Governo Provisório em torno da organização do anteprojeto constitucional produzido pela Subcomissão do Itamarati[7], buscando dessa maneira controlar o conteúdo da nova constituição.

A inevitabilidade da Assembleia Constituinte, como resultado do jogo de forças desse período, fez sentir os obstáculos ao programa reformista defendido pelo movimento de 1930 que, como exposto por Góes Monteiro em carta escrita a Getúlio, sem conseguir derrotar completamente as resistências dos grupos políticos, se viu obrigado “a retroceder nos propósitos de procurar uma nova e sólida organização do Estado”. A exposição a seguir demonstra que o pensamento geral de Góes é fortemente carregado pelo seu teor antiliberal e de oposição ao sistema representativo partidário:

 

V. Excia não teve outro recurso senão apelar para o processo clássico do liberalismo moribundo, convocando a reunião de uma Assembleia Constituinte, composta de representante de facções partidárias e de facções profissionais, com o caráter comum que possuem esses corpos deliberantes heterógenos. Ora, nos momentos de crise aguda ou permanente, a experiência de outros povos mais civilizados do que o nosso tem demonstrado, sobejamente, os resultados medíocres – e algumas vezes mesmo dispersivos e perniciosos – da ação de corpos legislativos dessa natureza. Como tudo o mais, as Constituições e as leis só valem pelo que elas são capazes de produzir, no terreno da realidade palpitante em que vivem as coletividades orgânicas, que elas disciplinam, cobrem e protegem, e fora disso, as limitações ao poder do Estado causam mais males do que bens. (Carta de Góes Monteiro a Getúlio Vargas, 1934, p. 2).

 

O que se tem claro é que o projeto de criação da nova constituição contrariava o propósito de uma política verdadeiramente nacional segundo Góes Monteiro, que contemplasse o poder do Estado sobre o controle de toda atividade política nacional.

Tal objetivo só seria alcançado se o Governo Provisório tivesse se apoiado nas Forças Armadas, para resolver a questão da organização nacional, e assim assentá-la em bases mais seguras, imprimindo toda a velocidade “às reformas econômicas, políticas, administrativas, culturais e militares”. A opção, portanto, pela Constituinte era reprovada por Góes Monteiro e esta se opunha ao projeto no qual ele almejava o fortalecimento do Estado concomitantemente ao fortalecimento das forças militares.

 

O Exército moderno repousa em bases políticas fixas, para ser o instrumento de força da Nação e dispor dos órgãos técnicos capazes de enquadrá-la, na eventualidade de mobilização. E é, assim, o instrumento de ação política nacional resolutivo das questões que a esta interessam, quando falham outros recursos ou quando convém empregar a violência justificada, como medida extrema e salvadora sem atender a considerações de outra espécie (Carta de Góes Monteiro a Getúlio Vargas, 1934, p. 8-9, grifos nossos)

 

Não é de outra forma que a posição de Góes frente às questões militares, destaca o lugar do Exército como um instrumento essencialmente político, de maneira que competindo à instituição a segurança nacional, a esta importava as atividades que precedem contra a ordem política e social, sendo necessária em casos “extremados” a sua intervenção como uma solução saneadora à restauração política e social do país, respondendo com o uso da força em prol da integridade nacional. Diminuir a efetividade do Exército, seu poderio militar, tanto pela desmoralização quanto pelo desaparelhamento bélico, assim como pela fragilidade institucional interna que o levavam a quebrar a hierarquia em virtude das suas partes integrantes jogarem-se umas contra as outras, como obra das facções regionalistas, significava destituir o país da sua força nacional acarretando na sua própria dissolução. O retorno dos grupos oligárquicos ao poder pela Constituinte incorreria no erro de ver o Exército mais uma vez enfraquecido pelas forças dissolventes que, ao menosprezar as instituições militares, ver-se-iam novamente em luta. Eram essas as principais preocupações de Góes quanto às Forças Armadas em meio à conformação do novo governo constitucional.

Em matéria no jornal Diário Carioca, Góes ao avaliar sua participação como membro da Assembleia Constituinte apresenta como a sua única finalidade a de assegurar os interesses relativos ao Exército:    

 

Afirmou o entrevistado que a sua participação na organização da Assembleia Constituinte provém do fato de ser preciso combater a pequena minoria, contrária a não intromissão do Exército na política, e que não é necessário apenas lançar a ideia, faz se preciso defendê-la e trabalhar para que seja executada. «O exemplo do afastamento da política, disse o general Góes Monteiro, eu o darei no momento oportuno, quando eu estiver seguro de que o Exército se acha imune da política». (O Jornal, Ceará, 1933).

 

É nesse sentido que ele diz defender não a política no Exército, mas a política do Exército.

É possível, desse modo, localizar o pensamento do general à guinada autoritária dos anos 1930, que tinha como seu signo as ideias antidemocráticas que rejeitavam a existência do sistema partidário, no qual poderiam os partidos concorrerem continuamente para ascender ao poder, com a representação política pelo voto e a regra de eleições frequentes. O cenário dos anos 1930 fomentou uma nova projeção ideal sobre a conformação do Estado e a preocupação acerca da incorporação de novos setores sociais e da participação política das massas, levando à desmoralização crescente do parlamentarismo multipartidário, dentro de uma atmosfera de descrença no Estado liberal e em suas instituições, e na democracia, que passou a ser reavaliada criticamente, procurando dar-lhe novo sentido e conteúdo[8], sob uma nova tônica, porém autoritária. Em meio às expectativas de uma transformação social, política e econômica almejada, diante do quadro revolucionário de 1930, havia a necessidade de adequação da estrutura política aos problemas nacionais, os quais não encontravam respostas nos modelos estrangeiros e ainda menos nas instituições da política liberal oligárquica. Assim, o pensamento nacionalista autoritário encontrava solo fértil, representado por novas lideranças e atores sociais como entre a intelectualidade da época que passara a intervir no cenário nacional influenciando a nova ordem política. Dessa forma:

 

A teorização da passagem do Estado liberal ao Estado autoritário e intervencionista não era uma imitação das ideias europeias, mas o resultado de um diagnóstico da crise política brasileira que levava em consideração a realidade internacional. Implicou a autonomização da esfera estatal diante dos interesses imediatos dos grupos de interesse – partidos, associações de classe – e a criação, a partir de uma tecnocracia e da intelligentsia, de novos objetos de desenvolvimento nacional. (BEIRED, 1999, p.38).

 

Sendo assim, sobre a Revolução de 30, seus integrantes e apoiadores a enxergaram como um processo reformador e inteiramente novo na história brasileira. Diante do contexto de uma crise de autoridade e do esgotamento de fórmulas de conciliação política, pela experiência anterior da Primeira República[9], só poderiam transformar a sociedade brasileira pela via mestra do poder político. Nesse sentido, constituir a nova ordem estabelecida pela Revolução reclamava uma identidade e ao mesmo tempo um projeto político que se ajustasse à realidade do país, havendo, portanto, a necessidade de uma nova política de Estado intervindo diretamente nas questões de ordem econômica e social. Assim, assomava-se sobre esse cenário diante de um novo projeto político-ideológico, a representação das Forças Armadas, incorporada por Góes Monteiro; enxergando o Exército como epicentro da política, reconhecendo o papel do Exército na intervenção e tutela da reorganização do Estado Nacional. Visão, portanto, interpretada pelo seu autoritarismo político em nome do fortalecimento do Exército e do poder do Estado.

 

O Exército e o Estado Novo

 

Os anos entre 1935 e 1937 descrevem o cenário cada vez mais preocupante por parte do Estado ante a ameaça de conflito social devido às mobilizações populares e à disputa entre Ação Integralista Brasileira (AIB) e Aliança Nacional Libertadora (ANL). Nesse caso, tanto a AIB quanto a ANL marcaram um novo momento decisivo da radicalização ideológica que atingiu a luta política no país. As organizações de mobilização de massa ganharam fôlego no Brasil, as quais acabaram alimentando o movimento integralista e comunista, e que se somavam à preocupação com a instabilidade do poder de Vargas e o quadro de insubordinação e quebra da hierarquia que poderiam levar à fraqueza institucional do Exército. Em um momento de tentativa de unificação da corporação pela repressão de atividades políticas-conspiratórias, as radicalizações políticas manifestadas pelos grandes movimentos da AIB e da ANL acabaram influenciando ainda mais o reforço de combater movimentos de protesto e indisciplina, principalmente com a Revolta de 1935, caracterizada de “Intentona Comunista”. Dessa forma, a resposta ao movimento revoltoso teria contribuído para o Exército forjar sobre o sentimento anticomunista a defesa da hierarquia e da disciplina; como resultado, a reação ao levante pelo governo e a cúpula militar foi a de recrudescer as medidas de repressão às atividades políticas que viessem a ameaçar a corporação e a estabilidade política nacional.

Diante disso, na reunião convocada pelo ministro João Gomes, ocupando a pasta do Ministério da Guerra substituindo Góes Monteiro, de todos os generais da capital federal em 3 de dezembro de 1935 para discutirem sobre o movimento dos militares, Góes como general de Divisão em voto escrito relatou haver apenas três possíveis saídas. Em primeiro lugar, a defesa de um golpe de Estado, embora esse não encontrasse amplo apoio e consenso geral, poderia acabar incorrendo na divisão das classes armadas e no retorno dos interesses facciosos e oportunistas do passado; a continuidade da ordem constitucional que significaria fortalecer a impunidade e a anarquia levando à desintegração nacional; e, a reforma constitucional, sendo a mais adequada, a qual consistiria na concessão de amplos poderes ao Executivo e automaticamente na diminuição dos poderes legislativos, até que fosse restaurada a ordem e elaborada uma nova constituição. Os pontos defendidos por Góes aos generais, em suma, retornam ao ponto central que é a crítica ao modelo institucional, já anteriormente atestado sobre suas considerações à conformação do governo constitucional em 1934 e ao modelo liberal-oligárquico.

A solução dos problemas que afligiam a sociedade brasileira seria sanada apenas com a reforma ou a mudança constitucional, o que significaria substituir a ordem vigente através de uma nova organização nacional, compatível com a realidade do país e a política de segurança nacional. Tal atestado afirmava a necessidade do reconhecimento de que a Constituição de 1934 tornar-se-ia violável, e só dessa maneira seria alcançado o equilíbrio social. O posicionamento de contestação das instituições se manteve assim constante ao longo de toda a década de 1930 e de maneira mais acentuada no horizonte do ano 1937 que teve como desfecho o golpe do Estado Novo.

No relatório do Estado Maior do Exército escrito por Góes Monteiro em 1937 sobre a dimensão do golpe de 10 de novembro, os questionamentos revelam o que sempre foi apontado como um problema: o regime definido pela constituição de 1934; e o Estado Novo veio a “satisfazer uma inadiável necessidade nacional” e sinalizou uma “barreira à decomposição político-militar"[10].

 

Considerações finais

 

O projeto político-ideológico de Góes Monteiro centralizava afinal o papel das Forças Armadas frente ao poder constituído em torno de Vargas, como um processo oriundo da presença das classes armadas na Revolução de outubro que se pretendia em oposição à classe política dominante representada pelas oligarquias tradicionais. No interior desse quadro, o controle das forças do Exército e sua reorganização institucional possibilitariam o poder das classes armadas como instituição nacional e como força política do governo Vargas. Esse processo exigia além da reorganização das instituições militares sua afirmação enquanto força garantidora da ordem política e social do ponto de vista da defesa nacional.

A  linha de pensamento do general permanece confortada pela política de Vargas ao longo da década de 1930 e parece servir constantemente para reforçar a insegurança política em torno do modelo liberal democrático. Nesse sentido, as ameaças à integridade nacional e às Forças Armadas refletem o cenário de tentativa de fortalecer uma mudança institucional pela forma ditatorial que serviria aos anseios das classes armadas. As bases do novo regime com a presença do Exército significariam possibilitar o saneamento da política e a integridade do poder como o engrandecimento econômico, social, cultural e militar brasileiro. Por último, o momento do Estado Novo parece consumar a mudança de regime e o projeto autoritário de governo com o apoio das forças armadas.

 

Referências

Fontes:

Relatório do Ministério da Guerra. Imprensa do Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro, 1935. Disponível em: Ministerial Report: Guerra, 1827-1939 | CRL Digital Delivery System

As ideias do Militar na palavra do patriota: A NAÇÃO. Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1933. Disponível em: A Nação (RJ) - 1933 a 1937 - DocReader Web (bn.br)   

Declarações do Sr. Góes Monteiro sobre a política nacional: O Jornal. Ceará, 12 de março de 1933.                          Disponível                                                                           em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=720631&pesq=GOES%20MONTEIRO &pagfis=58

Arquivo Nacional: Fundo Góes Monteiro, Rio de Janeiro. Voto do General Góes Monteiro na reunião dos generais, presidida pelo Ministro da Guerra, de 3 de dezembro de 1935. Disponível em: http://imagem.sian.an.gov.br/acervo/derivadas/BR_RJANRIO_SA/0/PTL/TDV/0642/BR_RJ ANRIO_SA_0_PTL_TDV_0642_d0001de0001.pdf

Arquivo Getúlio Vargas: FGV/CPDOC, GV c 1934.01.04. Carta de Góes Monteiro a Getúlio Vargas. Disponível em: https://www.docvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=CorrespGV2&pasta=GV%20c% 201934.01.04&pagfis=4430

Bibliografia:

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CHAUÍ, Marilena; FRANCO, M. Silvia C. Ideologia e mobilização popular (apontamentos para uma crítica da AIB/tempo das ilusões). Rio de Janeiro, CEDEC/ Paz e Terra, 1978.

COELHO, Edmundo Campos. Em Busca de Identidade: O Exército e a Política na Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.

MCCANN, Frank. Soldados da pátria: História do exército brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

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SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. São Paulo: Editora Expressão popular, 2010.

VIANNA, Marly A. G. Revolucionários de 1935:Sonho e realidade. Expressão popular, 2011.

 

[1]     MCCANN, Frank. Soldados da pátria: História do exército brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 369.

[2]     A Revolução de 1930 representou a aparição dos militares tenentes como uma nova componente às forças dirigentes, conquistando a parcela do poder na burocracia estatal e trazendo à tona o questionamento sobre o novo lugar ocupado na esfera da política nacional. Cf.: SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2010; CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019, p. 141.

[3]     CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019, p. 141.

[4]     Ibidem, p. 156. Essa última posição era representada por Luís Carlos Prestes.

[5]     Uma das considerações é a proximidade de Góes em relação à Vargas, que desde o evento da Revolução de 30 esteve em contato frequente e como demonstrado pela documentação, procurava apresentar suas principais ideias e manifestá-las no governo.

[6]     Esse movimento necessariamente exigia um Exército bem organizado, como uma força estável e permanente, evitando danos à hierarquia, do contrário significaria reduzir o poder da organização e sua capacidade de intervir de maneira eficaz na política. CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia, 2019, p. 157.

[7]     Na subcomissão do Itamarati integravam Afrânio de Mello Franco, Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, José Américo de Almeida, Prudente de Morais, João Mangabeira, Góes Monteiro, Oliveira Vianna, Arthur Ribeiro, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, Agenor Lafaiete, Osvaldo Aranha e Temístocles Brandão Cavalcante.

[8]    CHAUÍ, Marilena; FRANCO, M. Silvia C. Ideologia e mobilização popular.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.64.

[9]   GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 193.

[10]  MCCANN, Frank. Soldados da pátria: História do exército brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p. 547.

 


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