Ano 3 nº 15/2022: Notícias de pesquisa - Condições de trabalho e patrimônio em risco - Rosa Rosa Gomes

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Notícias de pesquisa ...

CONDIÇÕES DE TRABALHO E PATRIMÔNIO EM RISCO

 

Rosa Rosa Gomes

Conservadora de acervos e Mestre em História - USP

 

Ano 3 nº 15/2022

Fotomontagem Antônio Canellas

 

Em 2 de setembro de 2018, assistimos à triste cena das labaredas consumindo o Museu Nacional na cidade do Rio de Janeiro, enquanto bombeiros tentavam acessar hidrantes sem água. Naquele ano, o Museu completava 200 anos de existência e o país passava por fortes convulsões políticas e sociais derivadas do recente golpe parlamentar de 2016 e das eleições que se aproximavam. O golpe foi arquitetado pelo vice-presidente de Dilma Rousseff, aquele que viria a ser o presidente do país por 2 anos e meio (de 2016 a 2018), Michel Temer, e que é responsável por boa parte do desmonte que vivenciamos desde então.

O desmonte atingiu diretamente a área da cultura. Em 2016, Temer não conseguiu extinguir o Ministério da Cultura (MinC) devido à resistência de trabalhadores da área. No entanto, o mesmo não ocorreu em 2019, quando Jair Bolsonaro fechou a pasta em uma de suas primeiras medidas. O orçamento do órgão começou a cair em 2014, quando saiu de R$ 5,56 bilhões para R$ 4,62 bilhões. Em 2016, o total autorizado foi de R$ 2,97 bilhões, caindo para 2,48 bilhões em 2018 – enquanto as execuções ficaram em R$ 2,56 e R$2,19 bilhões, respectivamente (ANTUNES, 2021). Nos anos seguintes as reduções foram mais drásticas e após vagar entre ministérios, a Secretaria de Cultura foi alocada no Turismo, indicando o que o governo recém-eleito entende por cultura.

Embora o impacto do desmonte da política de cultura tenha sido grande e a situação tenha se agravado após 2019, o incêndio no Museu Nacional não foi resultado dele, mas da insuficiência de recursos destinados para a área mesmo após a estruturação realizada a partir de 2003. Segundo reportagem do UOL, em 2013 o Museu executou R$ 979 mil, “já em 2017 esse montante chegou a R$ 643 mil. O levantamento aponta ainda que, em 2018, foram gastos R$ 51.880 com bolsas de estudo e R$ 46.235 para outras despesas.” (UOL, 2018) Além disso, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), responsável pela administração do Museu, havia perdido R$ 140 milhões desde 2014. Assim, se é verdade que o golpe de 2016 agravou a situação do museu – quando observamos que o orçamento, que era pequeno, reduziu bastante após a data –, é verdade também que o risco é anterior a ele.

Outro evento recente foi o incêndio de uma das instalações da Cinemateca Brasileira em 2021, um ano após o fechamento da instituição, causado pela crise política entre membros do governo e a então gestora. O incêndio atingiu uma das reservas climatizadas que abrigava temporariamente arquivos de órgãos extintos do audiovisual brasileiro, especialmente o arquivo do Concine (Conselho Nacional de Cinema), que existiu entre 1976 e 1990 e era parte da política de fomento ao audiovisual junto com a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes, 1969 a 1990). Além destes, havia outros materiais fílmicos e não fílmicos, mas até hoje não temos um balanço público das perdas ocasionadas pelo fogo.

Ao contrário do Museu Nacional, este incêndio está diretamente relacionado à política de desmonte da área da cultura, que atinge especialmente os acervos. A Cinemateca Brasileira tinha entre 2008 e 2013 um orçamento entre 22 e 26 milhões de reais, contando apenas as verbas repassadas pela Secretaria do Audiovisual (SAv) e pelo termo de parceria entre o MinC e a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), que administrava a instituição de fato, embora em termos jurídicos fosse apenas uma apoiadora (MINISTÉRIO DO TURISMO, 2020). Após uma crise causada por disputas no governo, muitos funcionários da instituição são demitidos até restarem praticamente apenas os servidores públicos. A instituição foi sendo retomada aos poucos, através de algumas gestões e parcerias, entre elas com a associação que administraria o contrato de gestão entre 2018 e 2020, a ACERP (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto).

Em 2018, o montante destinado para a gestão da Cinemateca pelo MinC foi pouco mais de R$ 8 milhões, valor que se repetiria em 2019 e estava em negociação quando veio a crise política e os acontecimentos de 2020, que terminaram com a demissão de todos os funcionários e o fechamento da instituição em agosto deste ano. Após a demissão, um grupo de funcionários que reivindicavam seus salários não pagos e a retomada dos trabalhos, alertou a sociedade para o risco de um acidente com o acervo. Um ano depois, o galpão da Vila Leopoldina pegou fogo e consumiu, ao que parece, um acervo importantíssimo para a história do audiovisual brasileiro, e que havia sido pouquíssimo estudado.

Esses incêndios, que estão longe de serem acidentes ou tragédias, revelam não apenas o desalento e a falta de cuidado do Estado brasileiro em relação a seus acervos, algo histórico para a área no Brasil, mas também questões relacionadas à precariedade da área do Brasil, especialmente no que diz respeito aos profissionais atuantes nas diferentes frentes: museologia, arquivologia, biblioteconomia.

Especialmente no caso da Cinemateca Brasileira, a relação entre a falta de corpo funcional especializado e o incêndio é direta, mesmo que nem sempre a existência desses especialistas impeça a sua ocorrência, como exemplifica o Museu Nacional. Daí questionamos: como é possível fazer o gerenciamento de riscos e evitar “acidentes” em instituições sem funcionários, ou em número muito aquém de suas necessidades?

 

Os Riscos

 

O Programa de Gestão de Riscos ao Patrimônio Musealizado Brasileiro de 2021, define a gestão de riscos como “processo de natureza permanente de planejamento e organização de estratégias, diretrizes e ações destinadas a aumentar a capacidade institucional de prevenção e, ao mesmo tempo, de respostas em situações de desastres, emergências, contemplando-se o ciclo de identificar, analisar, avaliar, tratar e monitorar os riscos.” (IBRAM, 2021, p. 14, grifo meu).

Na implantação desse gerenciamento, a primeira tarefa é avaliar o contexto em que a instituição se insere em termos políticos, econômicos, de atores, ambiente físico e sociocultural, aspectos legais e administrativos. E as cinco etapas que se seguem baseiam-se no reconhecimento de dez agentes de deterioração de acervos: forças físicas; furto, roubo e vandalismo; fogo; água; pragas; poluentes; luz e radiação ultravioleta e infravermelha; temperatura inadequada; umidade relativa inadequada; dissociação (IBRAM, 2021).

A definição de agentes de risco do Programa de Gestão de Riscos inclui aspectos sociais e econômicos que provocam danos ao patrimônio. Os dez agentes citados podem ser vistos, portanto, como consequências de ações que têm como origem questões sociais e econômicas mais profundas e que justificam a necessidade de uma avaliação inicial do contexto do acervo. Isso pode ser observado especialmente no item vandalismo.

Se tomarmos a definição da Wikipedia como uma expressão do senso comum, vandalismo é considerado “a ação de destruir ou danificar uma propriedade alheia de forma intencional, seja esta pública ou privada, geralmente sem motivo aparente ou com o propósito de causar ruína.” Esse tipo de ação é repudiado socialmente pelo seu despropósito. Ao contrário do furto que tem uma finalidade mercantil, o vandalismo é desprovido de sentido o que o torna incompreensível para alguns. No entanto, na maioria dos casos, ele é resultado de questões sociais como a falta de sentido de determinado bem patrimonial para um grupo de pessoas, ou revolta causada pela mensagem imbuída no bem passa, entre outras questões. A sua razão, portanto, é social.

Outro exemplo é o fogo como agente. Olhando para os casos citados acima, os incêndios do Museu Nacional e da Cinemateca Brasileira tiveram suas causas físicas, imediatas, em curtos-circuitos. Entretanto, suas raízes estão na política para os acervos do Estado brasileiro. A causa da perda desses acervos foi a falta de verbas para a reforma e manutenção dos prédios e de uma equipe permanente, o que está diretamente ligada a questões político-econômicas do país.

Assim, em grande medida, os agentes de risco identificados nos manuais de gerenciamento, ainda que apareçam como naturais, estão estreitamente ligados às questões sociais e como elas se expressam na área patrimonial em cada contexto.

Além disso, há uma classificação em eventos raros, comuns e cumulativos.

“Os eventos raros são aqueles que ocorrem de maneira abrupta podendo causar danos de grandes proporções ao acervo, a exemplo dos incêndios, terremotos e enchentes. Já os eventos comuns correspondem às ameaças que ocorrem com maior frequência e de certa maneira fazem parte do dia a dia dos museus: infestações, colisões, vandalismo, infiltrações, entre outros. Por fim, os processos cumulativos são aqueles cuja ação acontece de maneira contínua e silenciosa, revelando seus efeitos apenas nos estágios mais avançados do dano, como observado nos casos em que os bens são acometidos pela ação da temperatura e da umidade relativa incorretas.” (IBRAM, 2021, p. 17)

Dentro dessa classificação, incêndios são considerados raros. Mas é de se pensar, no contexto brasileiro, se eles podem ser entendidos desta forma: em uma rápida pesquisa no jornal Folha de S.Paulo, identificamos que foram registrados onze incêndios entre 2007 e 2021 (15 anos), apenas em instituições da região Sudeste.[1]

Além disso, observamos tanto na definição da gestão de riscos, quanto nos agentes reconhecidos e na classificação deles em relação à frequência que é essencial a constância no trabalho, a rotina de verificação, o monitoramento. Além da própria elaboração de um programa de gestão de riscos. Tudo isso exige uma equipe dedicada e a colaboração dos demais funcionários da instituição.

E aqui aparecem as questões relativas às condições de trabalho que vão desde temas salariais até a estrutura para realização das tarefas.

 

Os Riscos e as Equipes

 

A Lei 11.904 de 14 de janeiro de 2009, conhecida como Estatuto de Museus, em seu artigo 9º diz que “Os museus poderão estimular a constituição de associações de amigos dos museus, grupos de interesse especializado, voluntariado ou outras formas de colaboração e participação sistemática da comunidade e do público”. Estipulando em seus parágrafos a possibilidade de criação de estruturas de voluntariado “que tenham por fim a contribuição para o desempenho das funções e finalidades dos museus.”[2]

Deste modo, o Estatuto dos Museus acaba incentivando a adoção de voluntários para o cumprimento de atividades-fim das instituições museológicas. Essa prática tem como efeito imediato o rebaixamento das carreiras profissionais vinculadas às atividades museológicas, e a consequente instabilidade dos trabalhos, o que vai de encontro às necessidades dos acervos, tanto no que diz respeito ao gerenciamento de riscos quanto nas atividades de rotina. É verdade que é possível criar programas com trabalhos específicos para esses grupos, mas isso gera uma fragmentação excessiva do trabalho e a questão: quem irá continuar a tarefa se equipes são reduzidas na maioria das instituições? Designar tarefas muito pontuais e muito mecânicas também não agrega à experiência e formação dessas pessoas, justificativa dada para a criação desses programas.

No caso do gerenciamento de riscos, coloca-se em questão a terceirização das atividades, inclusive das finalísticas com o modelo de Organização Social adotado em muitos estados do Brasil. Mas pensemos apenas a terceirização dos serviços de limpeza e segurança.[3] Para o gerenciamento de riscos, especialmente aqueles considerados comuns e cumulativos, a constância no monitoramento e a execução das atividades de maneira condizente com as necessidades dos acervos é essencial, e nisso a limpeza da reserva técnica e a observação de possíveis infiltrações são essenciais. É importante também conhecer o público da região em que se encontra e formas de abordagem que não intimidem o visitante e sim o convidem a se apropriar do espaço sem abrir mão da segurança do acervo e das pessoas. Como realizar essas atividades com equipes terceirizadas?

Algumas instituições possuem programas de formação dessas equipes, mas são poucas e esbarram nas questões administrativas relativas a hierarquias de comando e na alta rotatividade dos trabalhadores, determinada pela empresa contratada e não pela contratante. Em geral, esses funcionários ficam apartados da vida institucional e sem entender o porquê da existência daquele espaço, qual sua finalidade, qual a importância do acervo ali preservado, entre outras questões. Como pensar uma gestão de riscos nessas condições em que há divisões nas equipes estabelecidas pela própria forma de administrar e que impõe diferentes formas contratuais e diferentes relações entre as pessoas e com o acervo?

O gerenciamento de riscos é um dos exemplos da necessidade de constância das equipes quando lidamos com bens patrimoniais, mas a própria atividade, o próprio cerne desse trabalho exige estabilidade do corpo funcional, dado que o histórico da instituição é essencial para entender os acervos e seus estágios de conservação, pois os percalços por quais passaram ajudam a entender sua estabilidade ou instabilidade, só para citar um exemplo. E essa informação é conseguida pela confrontação de documentos com relatos da equipe em momentos de renovação e/ou crescimento delas.

Para além da constância das equipes, a manutenção predial, a existência de materiais e equipamentos adequados à realização das atividades, e uma remuneração decente com direito a férias também se apresentam como fundamentais no trabalho de preservação. Afinal, não foi por falta de manutenção que o Museu Nacional pegou fogo? (ver SOUZA, 2021)[4]

As condições de trabalho então se impõem na gestão dos acervos, e dada a sua precarização e instabilidade no Brasil, levam ao risco permanente dos conjuntos patrimoniais.

 

Condições de trabalho e modelos de administração

 

Luana Redini, em sua dissertação de mestrado, aponta para a relação entre o mercado de trabalho do conservador-restaurador e as leis de incentivo fiscal.

“O Pronac, como analisado, acaba sendo um dos programas que mais são acionados para financiar as grandes obras de conservação e restauração de bens móveis e integrados. Isso porque é interessante para as empresas de médio e grande porte, principalmente, conseguir isenção fiscal total ou parcial, além de publicidade, através da doação ou de seu patrocínio voltados à projetos culturais.” (REDINI, 2019, p. 48)

Na cidade do Rio de Janeiro, seu local de pesquisa, Redini observa que as obras de conservação e restauração são feitas por iniciativa do poder público e realizadas por empresas terceirizadas de médio e grande porte (REDINI, 2019, p. 77). E diz que “o mercado de trabalho do conservador-restaurador da capital fluminense ainda é incipiente, precário e instável, assim como em outras regiões do país.” (IDEM)[5]

As carreiras profissionais em instituições de acervo são diversas e a conservação é uma delas. Em muitos casos, a figura do conservador nem existe e a contratação é realizada com cargos genéricos que permitem uma multiplicidade de tarefas. Esse estado de coisas já aponta para a precarização, pois acarreta sobrecarga de funções, consequência da redução das equipes. A Cinemateca Brasileira, por exemplo, contava em 2020 com cerca de 60 técnicos contratados pela Organização Social, quando em outros momentos chegou a ter 124.[6]

Ana Letícia Fialho e Ilana Seltzer Goldstein (2020) mostram a dificuldade de se obter dados para o setor cultural e lançam mão de uma série de pesquisas para tentar avaliar alguns pontos. Em que pese a discordância com os prognósticos das autoras, elas indicam certa instabilidade e precariedade no mercado de trabalho da cultura, com alto grau de informalidade e sazonalidade e salários médios abaixo do nível geral no universo das organizações da sociedade civil (OSC’s). Na comparação de duas pesquisas realizadas pelo Ipea em parceira com outras organizações em 2010 e 2018, as autoras identificaram que       o salário médio em OSC’s vinculadas à cultura caiu de 4,6 salários mínimos para 2,9 salários, ficando abaixo da média geral, considerando apenas os trabalhadores formais.

Uma pesquisa realizada UNESCO em 2020, Pesquisa de Percepção dos Impactos da Covid-19 nos Setores Cultural e Criativo no Brasil, aponta que do universo de trabalhadores e coletivos estudado, 2,39% correspondia ao setor “museu e conservação” e 1,23% ao setor “Biblioteca (também virtual)”; 55,12% dos trabalhadores eram autônomos ou informais; 23,2% recebiam entre 2 e 3 salários-mínimos, 22,35% entre 1 e 2 salários-mínimos. Não há dados específicos sobre os setores dedicados a acervos, mas essas pesquisas indicam um certo nível de precarização da área, levando-se em conta o alto grau de especialização e formação dos profissionais.[7]

Alguns autores apontam que a introdução das organizações sociais (OS’s) no Estado de São Paulo foi um fator de melhoria das condições de trabalho, abrindo mais postos de trabalho, com melhores salários e maior estabilidade, dado que até o final dos anos 1990 a maioria dos cargos era composta por funcionários comissionados (ver PENTEADO, 2018).

Nos casos citados na introdução deste artigo, o exemplo de gestão por organização social da Cinemateca Brasileira parece ser um contraponto a essa ideia. Nesse caso, as instabilidades políticas atuaram diretamente sobre a gestão da OS, que por sua vez tinha suas próprias agendas, recaindo ao fim sobre o corpo funcional da empresa os ônus das disputas políticas e da falta de proposta para o campo patrimonial. Ao fim, como a implantação do regime de terceirização via OS não permitia a permanência de funcionários públicos, o patrimônio abrigado na instituição se viu mais ameaçado do que nunca, uma vez que nem os funcionários concursados permaneceram no local. Os trabalhadores perderam seus empregos e não receberam seus direitos e uma das reservas técnicas pegou fogo um ano depois.

O Museu Nacional, por outro lado, estava sob a administração pública e havia assinado com o BNDES um contrato para realização de obras estruturais em 2018, mas a verba não foi liberada a tempo. Isso demonstra a fragilidade dos acervos também sob a esfera pública, devido à incompreensão da preservação do patrimônio como um direito do povo brasileiro, e não como penduricalho do Estado.

Essa discussão entre OS e administração pública direta é antiga e tem sido apresentada como técnica, econométrica, partindo do pressuposto de que o Estado não tem dinheiro e que, portanto, deve-se percorrer o caminho da mão invisível do mercado, do cada um por si das verbas de isenção fiscal ou aportes diretos de empresas privadas.[8] É uma discussão que envolve diferentes perspectivas de Estado, como podemos ver nas políticas adotadas no governo federal a partir de 2003 e no governo do estado de São Paulo na mesma época.

A Política Nacional de Museus de 2003 coloca, em seu primeiro eixo programático “Gestão e Configuração do Campo Museológico”, o item “estabelecimento de planos de carreira, seguidos de concursos públicos específicos para atender aos diferentes níveis e instâncias governamentais e às diferentes especificidades das profissões museais” (POLÍTICA NACIONAL DE MUSEUS, 2003, p. 10). É verdade que o número de servidores públicos aumentou muito comparado aos governos de Fernando Henrique Cardoso, no entanto, não foram suficientes para a manutenção dos acervos (SOUZA, 2011). A Cinemateca Brasileira, por exemplo, não teve nenhum concurso em toda a sua história, incluindo este período; o MinC optou por fazer grandes aportes para a SAC, que contratava os profissionais por demanda.

Já o Estado de São Paulo optou por estruturar um modelo de gestão via OS que terceiriza a execução de recursos do Estado para empresas privadas sem fins lucrativos. A lei federal de OS é de 1998 (Lei 9.637) e a do estado de São Paulo também (Lei Complementar Estadual Nº 846/1998). Para a área da cultura, os primeiros contratos foram iniciados em 2004 com duas OS’s e alcançaram 27 em 2012, o número de funcionários dessas organizações saiu de 287 em 2005 para 4.389 em 2018 (BOLETIM UM, nº 15, 2020). Enquanto para a Secretaria de Cultura do Estado (SEC), o número de servidores caiu de 511 em 1994 para 222 em 2018. A média salarial em dezembro de 2018 na SEC era de R$ 5.500,66 e nas OS’s R$ 4.123,66 (BOLETIM UM, nº 14, 2019). Observamos que houve uma expansão substancial dos postos de trabalho, mas que esses postos, na média, significam menores salários.[9] Questiona-se se não havia a possibilidade de realizar concursos públicos para cargos especializados com salários melhores, com vistas a ampliar os postos de trabalho na área.

Do ponto de vista da maioria dos trabalhadores, as condições contratuais de concursos públicos como se apresentam atualmente são melhores: uma média salarial acima daquelas encontradas nas OS’s e estabilidade no trabalho, o que é fundamental especialmente em períodos de crise, quando o corte na área da cultura vem primeiro e a redução nos postos de trabalho no mercado privado é imediata. Assim, é uma forma também de assegurar certa estabilidade para os acervos, na medida em que garante alguma permanência do corpo funcional.

No entanto, não é suficiente. Vemos no caso do Museu Nacional que a existência de funcionários públicos não impediu a sua destruição. No entanto, condições de trabalho são garantidas também com manutenção, equipamentos, materiais, espaços adequados à realização das atividades. Como apresentamos acima, é necessário, portanto, uma política do Estado que garanta recursos para a Cultura, independentemente de crises econômicas e, para tanto, é necessário iniciar uma campanha de conscientização a respeito dos acervos e da importância de sua preservação, mostrando quais os impactos para todo o país.

É necessário admitir que as instituições ainda estão muito longe de grande parte dos brasileiros, suas origens elitizadas possuem raízes profundas e sua reprodução acontece também na ocupação dos cargos aí existentes. Em muitos casos, elas se voltam somente para os poucos nichos de suas respectivas especialidades e, às vezes, tratam o público que está fora como pessoas que precisam ser ensinadas, educadas, de uma maneira que lembra certo jesuitismo.

Essa postura se revela nas relações internas, sejam públicas ou terceirizadas, pois possuem sempre pelo menos uma parte de sua equipe apartada das discussões das atividades-fim: os seguranças e auxiliares de limpeza. O corpo funcional das instituições, portanto, está fracionado por dentro em duas esferas: aqueles que pertencem “de verdade” à instituição e aqueles que são “descartáveis”. Enquanto os museus tentam atrair novos públicos e descolonizar seus acervos, trabalhar com grupos periféricos etc., ignoram as questões sociais que se estabelecem nas relações de trabalho internas, o que dá às atividades descolonizadoras um certo tom cosmético.

Assim, as condições de trabalho na área patrimonial no Brasil perpassam muitas camadas sociais e econômicas e, principalmente, diferenças de perspectiva sobre o papel do Estado. Na atualidade, vivemos uma espécie de consenso neoliberal, já comentado acima. Não se questiona a insuficiência dos investimentos públicos,[10] busca-se formas de lidar com ela. É preciso também avaliar esse entendimento. Nesse sentido, o texto de Michal Kalecki sobre o Pleno Emprego é interessante, pois aponta que, dentro do sistema capitalista e com altos lucros para os empresários, é possível estabelecer o pleno emprego permanente. Mais do que isso, o importante para a área de acervos é que Kalecki demonstra como a economia é gerida politicamente e o discurso da falta de recursos do Estado, da necessidade de enxugar a máquina pública não é uma realidade concreta e natural, é uma ideologia implementada com determinados fins políticos e o Estado, na verdade, é um instrumento que pode servir para o bem estar de toda a população ou para os interesses de uma pequena parcela.

A organização da área patrimonial pela esfera privada, tendência que tem se mostrado na atualidade, tende a trazer trabalhos precários e instáveis, e mais, a selecionar os acervos que merecem ser preservados e os que não de acordo com interesses alheios aos da população e da pesquisa.[11] Em contraposição, é possível pensar a partir das ideias de Kalecki uma forma de gestão do orçamento público fora do consenso atual e que inclua a cultura como um direito da população, assegurando melhores relações e condições de trabalho na área.

 

Considerações finais

 

Procuramos colocar em debate, tomando como ponto de partida dois acontecimentos recentes, que os acervos brasileiros, na verdade, estão em risco permanente de desaparecer do dia para a noite, e que é questionável a ideia de risco raro, dado o cenário das equipes das instituições. O risco está diretamente ligado às condições de trabalho, pois não é possível sequer escrever um programa de gestão de riscos, quiçá colocá-lo em prática. Para pensarmos somente nesse aspecto.[12]

Essas condições no campo mostram-se ruins, com salários baixos e empregos instáveis, ainda mais em momentos de recessão como o que vivemos, além da situação material de trabalho ser precária. Mostra-se ainda como a política de terceirização fragiliza ainda mais esse contexto e insere dentro das instituições uma fragmentação do corpo funcional que não contribui para um cenário já instável.

Pensar estratégias para ultrapassar essas questões é uma tarefa imediata que envolve romper o paradigma neoliberal do Estado gestor, romper barreiras sociais buscando dar acesso a um público mais amplo, começando pelos próprios funcionários, além de pensar novos meios para assegurar recursos para o campo que estejam mais protegidos das flutuações econômicas e dos interesses de entes privados, e que levem em consideração a diversidade de acervos que têm sido trazidos a público no Brasil.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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[1] 2007 – Centro Cultural São Paulo; 2008 – Museu do Tropeiro; 2009 – Acervo Hélio Oitica; 2010 – Instituto Butantã; 2013 – Memorial da América Latina; 2016 – Cinemateca Brasileira; 2015 – Museu da Língua Portuguesa; 2018 – Museu Nacional; 2020 – Museu de História Natural da UFMG; 2021 – Cinemateca Brasileira; 2021 – Galpão Alke. O Museu da Língua não conta com acervo físico, mas é uma instituição importante e seu prédio é tombado. Não pretendemos dar conta de todos os incêndios ocorridos, apenas apresentamos os casos encontrados.

[2] Os acervos não se resumem aos museológicos, mas tomamos eles apenas como exemplo.

[3] Adotada em todas as instituições públicas do Brasil após a chamada “Reforma do Estado” dos anos 1990, que acabou com uma série de atividades consideradas não essenciais, conferindo ao Estado o papel de gestor e não de executor dos serviços públicos

[4] Para além de tantas questões, esse incêndio ainda demonstra o risco corrido pelos funcionários, como o caso de um professor que adentrou o prédio para resgatar alguns objetos.

[5] A conclusão de Luana Redini é que isso é decorrência da falta de regulamentação da profissão do conservador-restaurador, especialmente por um dos estudos de caso de sua dissertação em que as empresas realizaram trabalhos inadequados, explicitando a falta de controle do poder público na contratação dos profissionais que de fato executaram a obra, pois eles também são, em muitos casos, terceirizados pelas empresas terceirizadas. A conhecida contratação via MEI (Microempreendedor Individual). Entendemos que a regulamentação é um tema polêmico e que não é a única causa da precarização e da inadequação de procedimentos.

[6] Contratados também de maneira precarizada como pessoas jurídicas. Em 2013, “Segundo a CGU, os planos de trabalho empregavam 246 pessoas, sendo 206 pessoas jurídicas e 40 pessoas físicas”. https://epoca.oglobo.globo.com/regional/sp/cultura/noticia/2013/08/cinematografica-bcriseb-da-cinemateca-brasileira.html. “Em fevereiro de 2013, a equipe técnica da Cinemateca Brasileira era composta por 124 trabalhadores, muitos desses na instituição há mais de uma década. As demissões e desligamentos ocorridos desde o início de março significam uma redução de mais de 52% do quadro funcional. A equipe remanescente conta com 22 funcionários públicos e 37 prestadores de serviços – estes possuem contratos que se encerram em no máximo dezembro deste ano.” https://piaui.folha.uol.com.br/cinemateca-brasileira-a-que-ponto-chegamos/. Apesar das diferenças de números, percebemos a drástica redução da equipe comparado com 2020.

[7] Sem menosprezar as funções que exigem menor grau de educação formal. Considero que, em instituições de acervo, todas as atividades são especializadas. Independentemente disso, o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE para setembro de 2022 é R$ 6.306,97. Levando-se em conta a pesquisa da UNESCO, 23,2% dos trabalhadores da cultura recebem pouco mais da metade desse valor. https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html

[8] Que nunca vêm gratuitamente, pois as empresas aportam dinheiro em projetos de seu interesse, em muitos casos implementados por elas mesmas. Dessa forma, acabam dando também as diretrizes das pesquisas e atividades na cultura. Ver FIALHO e GOLDSTEIN, 2020

[9] Uma hipótese é que haja alguns salários muito altos e uma maioria muito baixos. Na Folha de Pagamento da Cinemateca Brasileira de março de 2020, três coordenadores tinham salário de quase R$ 9 mil e aditivos de “função comissionada” de R$ 2.158,20 ou R$ 4.454,32, enquanto 8 funcionários ganhavam pouco mais de R$ 1.800,00 em um universo de 34, sem incluir os gerentes e diretores, o que corresponde a 8,8% e 23,5% dos funcionários, respectivamente. Não estão contabilizados nessa folha, os profissionais contratados como pessoas jurídicas e os temporários.

[10] Insuficiência em termos, pois as leis de incentivo fiscal são recursos públicos que entes privados decidem como gastar, o que é apenas uma das críticas a elas.

[11] É verdade que isso ocorre desde sempre em alguma medida, mas na esfera pública o poder de pressão sobre as instituições é maior do que na esfera privada.

[12] Neste debate sequer chegamos a adentrar o universo dos acervos populares, que têm surgido no Brasil e indicam a importância que a população dá para a preservação de sua história. As relações nestes espaços são diferentes, muitos são coletivos, mas as condições de trabalho são ainda mais precárias, e se a análise das instituições mais consolidadas não é boa, para essas a situação é mais preocupante. Entendemos também que pensar em uma estrutura da área de patrimônio no Brasil deve levar em conta que as necessidades desses coletivos são diferentes das instituições públicas, pois a manutenção da autonomia é fundamental nesses lugares.

 


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