Mês da mentira...
DA VIDA NÃO SE LEVA NADA... NEM SALÁRIO, DOCUMENTOS OU JUSTIÇA: SILVIO SANTOS E A DITADURA
Fernando Sarti Ferreira
Professor substituto no curso de Relações Internacionais - Unifesp
Fonte: Jornal do Brasil, 06/07/1972
Silvio Santos adorava contar a história de que iniciou sua vida como camelô até se transformar em um dos maiores “comunicadores” do Brasil. O epíteto atenuante, condizente com a trajetória emocionante, é um costume das elites do país. Aqui, banqueiros e seus descendentes usam apelidos diminutivos, comuns à amigos de escola. Latifundiários e conglomerados multinacionais são transformados em simples “produtores rurais”. Completando este curioso quadro, “comunicadores” e “jornalistas” também têm como atividades paralelas verdadeiros impérios financeiros e fundiários.
O homem do Baú pode ter sido um empresário sagaz, mas seus superpoderes ficam muito mais interessantes quando colocados em perspectiva histórica. Silvio Santos foi um abençoado, mais um daqueles que receberam as bençãos do Programa de Ação Econômica de Roberto Campos (o avô) e do Santo Delfim Netto. Milagres que se expressam em números: segundo informação publicada pela Diretoria da Baú Financeira S.A. em janeiro de 1972[1], entre 1969 e 1971, o capital da empresa ascendeu de Cr$ 500 mil cruzeiros para quase 10 milhões de cruzeiros. Naquele último ano, a financeira era responsável pelo financiamento de 2,5% dos automóveis vendidos no Brasil e de eletrodomésticos em um valor equivalente a 30 mil televisores. Em outro informe público publicado alguns meses depois[2], o grupo avisava ter incorporado ao seu patrimônio 70.000 hectares de terra que serviriam de pasto para 60.000 cabeças de nelore. A operação deu-se por meio da aquisição do controle acionário das empresas agropecuárias do grupo Ometto-Almeida Prado, principalmente da Agropecuária Tamakay, sob os auspícios da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia.
Contudo, a poucos quilômetros do centro de São Paulo, nesses loucos anos de expansão do grupo Silvio Santos, uma história nos revela o verdadeiro mecanismo que operou os milagres econômicos da época: a imolação de trabalhadores.
No início da década de 1970, no quilômetro 19 da Via Anhanguera, no sopé do Pico do Jaraguá, o grupo Silvio Santos havia iniciado as obras do “Projeto Anhanguera”. Em um terreno de 230 mil metros quadrados, o grupo começou a construir uma estrutura para receber a sede de todas as suas empresas, além de estúdios de televisão, depósitos, armazéns e um centro de processamento de dados.
Foi nesta obra, cuja primeira etapa foi concluída em 1973[3], que ocorreu a história que nos interessa. Segundo o Informe número 2.407 do IIº Exército de 8 de novembro de 1973, reproduzido em ficha da Delegacia de Ordem Social (link), um servente de pedreiro que trabalhava na obra fez uma série de denúncias sobre o grupo Silvio Santos. O documento não indica para quem foram feitas as denúncias, mas destaca quais eram as acusações. Segundo o trabalhador, o atraso no pagamento dos salários era recorrente. Quando os trabalhadores reclamavam dos atrasos, eram obrigados a assinar documentos de quitação de pagamentos mediante ameaças de morte. Os jagunços do grupo Silvio Santos, identificados pelo denunciante pelos nomes de Marcos, Fernando e Ronaldo, eram também acusados de roubar os documentos dos trabalhadores. Quando os serventes se recusavam a participar da farsa sobre o pagamento, eram abordados por funcionários do grupo se passando por policiais. Sob alegação de não possuírem documentos, eram conduzidos para fora da obra. Em seguida, estes eram encontrados mortos em um lugar chamado de “curva da morte” e enterrados como indigentes.
Que Delfim Netto e Silvio Santos tenham morrido perto dos seus e de velhice constitui-se uma segunda derrota – e assassinato – desses trabalhadores. Que crimes como esses ainda possam ser revelados a partir da limitada documentação que temos acesso sobre o período demonstra como precisamos aprofundar a agenda de pesquisa e a agitação por memória, verdade, justiça e reparação para os trabalhadores vitimados pelo terrorismo de Estado e empresarial durante a última ditadura.
[1] Jornal do Brasil, 31/01/1972
[2] Jornal do Brasil, 15/05/1972
[3] OESP, 08/04/1973
- Resumo
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No dia da morte de Silvio Santos, fizemos uma homenagem à memória, justiça, verdade e reparação aos trabalhadores assassinados pelo conluio entre o empresariado e os militares durante a última ditadura.
Palavras-chave: Ditadura Militar (1964-1985); Terrorismo de Estado; Trabalhadores
- Abstract
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On the day of Silvio Santos' death, we paid tribute to the memory, justice, truth, and reparation for the workers murdered by the collusion between business leaders and the military during the last dictatorship.
Keywords: Military Dictatorship (1964-1985); State Terrorism; Workers
Comitê de Redação: Adriana Marinho, Clara Schuartz, Gilda Walther de Almeida Prado, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Carlos Quadros, Dálete Fernandes, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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