Ano 4 nº 09/2023:GILBERTO FREYRE E A USP - Lincoln Secco

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Mundo acadêmico...

 

 GILBERTO FREYRE E A USP

 

Lincoln Secco

Professor do Departamento de História – USP

 

No final do século XX, um jornal da mídia corporativa noticiava: “hostilidade histórica da universidade com sociólogo pernambucano é suavizada em evento uspiano dedicado a ele”[1]. A escolha do verbo “suavizar” convinha bem ao estilo de Gilberto Freyre. De acordo com professores de várias universidades ouvidos naquele seminário, houve por decênios uma disputa em torno do legado freyriano entre acadêmicos de São Paulo e de Pernambuco.

Carlos Guilherme Mota declarou naquele momento que as "arengas" entre a universidade e Gilberto Freyre teriam começado em 1943, “com uma crítica contundente do professor de literatura Antonio Candido ao conservadorismo do autor pernambucano”. A relação de Freyre com o salazarismo, sua defesa do “mundo que o português criou”, o apoio ao golpe militar de 1964 e a aproximação com o governo Médici sacramentaram a preferência uspiana[2] pela sociologia de Florestan Fernandes e por sua escrita científica contra o ensaísmo serpenteante e literário de Freyre. Entre a imagem do catedrático da USP de avental e líder de grupos de pesquisa e a do mestre de Apipucos[3] esparramado à rede, haveria um abismo.

 

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O sociólogo e historiador Gilberto Freyre - Foto: Acervo / Fundação Gilberto Freyre

 

 

Dante Moreira Leite

Na Universidade de São Paulo foi Dante Moreira Leite quem lançou o questionamento sistemático a Freyre. Apesar de sua carreira posterior no Instituto de Psicologia, Leite graduou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL - USP), em 1950. Em 1954 defendeu sua tese de doutorado O caráter nacional brasileiro: Descrição das Características Psicológicas do Brasileiro através de Ideologias e Estereótipos, publicada em livro posteriormente. Em 1975 o historiador Carlos Guilherme Santos Serôa da Mota defendeu sua tese de livre docência publicada sob o título de Ideologia da Cultura Brasileira, com inúmeras reedições. Na tese, Gilberto Freyre tem um lugar central entre os autores que Mota classificou como ideólogos.

Freyre havia adquirido importância em 1933, quando lançou Casa Grande e Senzala, porque seu principal livro trazia ares de vanguarda e beleza narrativa. Numa página que marcaria época, escrita décadas depois, Antonio Candido o situou ao lado de Caio Prado Júnior e Sergio Buarque de Holanda como um dos três explicadores do Brasil surgidos depois da Revolução de 1930.

Também se destacou a crítica do racismo que Freyre fazia no início da década de 1930, embora não fosse uma novidade. O médico sergipano Manoel Bonfim, que recebeu algumas farpas em Casa Grande e Senzala por sua simpatia “desmesurada” aos indígenas, já havia combatido em sua América Latina: males de origem, as teorias racistas. Porém, à medida em que o cientificismo da época constituía uma forma mentis que aprisionava os próprios críticos dentro de seus limites conceituais, ele não se desvencilhou da linguagem da biologia social como Roberto Ventura e Flora Sussekind notaram.

Também Euclides da Cunha, apesar de fazer um livro favorável aos grupos subalternos, não escapou de estudá-los à luz de teorias racistas da época. Sobressaiu-se, é verdade, pela revolução na forma, pela escrita adjetivada de dicionário, pelo vocabulário de bulas de remédio, tratados científicos, manuais militares e relatórios técnicos; e que, ao fim, concretizou-se numa grande obra literária tão inclassificável quanto o Facundo de Sarmiento.

O que Freyre agregou de novo foi o vasto conhecimento do que de mais avançado se discutia na antropologia, incorporando do debate estrangeiro aquilo que lhe permitia justificar a mestiçagem que ele identificou como uma característica brasileira mais do que meramente factual, desejável.

Dante Moreira Leite é taxativo, entretanto: “e aqui aparece uma diferença fundamental entre Euclides da Cunha e Gilberto Freyre: enquanto o primeiro, embora aceitando uma teoria errada, nem por isso deforma os fatos que observa, Gilberto Freyre realiza uma tarefa quase oposta: dispõe de uma teoria correta, mas ignora os fatos, de maneira que deforma a realidade”[4]. Euclides percebeu a inadequação de sua teoria e os limites de seus conhecimentos face à realidade que encontrou e, desajudado das leituras da época, recompôs o real pela observação e talento narrativo.

Explorando as afirmações contraditórias de Freyre em suas diversas obras, Dante Moreira Leite condenou o seu método por não utilizar recursos quantitativos e se limitar à história anedótica e pitoresca, interpretada do ponto de vista da classe dominante. Isso levou Freyre a afirmações sem base documental, ou ancorada em análises distorcidas das fontes, como a de que o negro se alimentava tão bem ou até melhor que o senhor para aguentar as tarefas produtivas, sendo os homens pobres livres os esquálidos, mal alimentados e inúteis para o trabalho.

Não passou pela mente de Freyre a ideia de verificar a vida média útil do escravo e os números do tráfico, para deduzir a mortandade e a constante substituição daqueles que os senhores tratavam como “peças”. Para ele a vida do escravo “não era apenas de alegria”…O que dispensa comentários.

 

Cardoso, Mota e Novais

As investigações sobre relações raciais em São Paulo dirigidas por Florestan Fernandes e por Roger Bastide na década de 1950, sob os auspícios da Unesco, em grande medida sepultaram a ideia de democracia racial, termo que Freyre não usou em Casa Grande e Senzala, mas que ficou colado à sua imagem.

O historiador Carlos Guilherme Mota fez sua crítica num momento decisivo. No auge da Ditadura ele se dispôs a confrontar luminares da cultura brasileira como seu professor Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.

Mota perscrutou antes a ideia de revolução, numa tese importante antes de tudo como exercício metodológico. Seu orientador Eduardo d’Oliveira França havia escrito uma bela tese sobre Portugal na Época da Restauração, em estilo braudeliano, cuja importância era fundamentalmente a de apresentar um método para o estudo das mentalidades no século XVII.

Na esteira do seu orientador, mas recusando o conservantismo daquele, Mota procurou as “tomadas de consciência” do processo histórico, ou seja, a “conscientização da realidade vivenciada” no final do século XVIII. As manifestações mentais, para Mota, não podiam ser emancipadas da história social e econômica. Conceitos cristalizam transformações em curso e, ao mesmo tempo, são catalisadores de processos de tomada de consciência[5].

Na sua pesquisa, ele construiu uma classificação histórica móvel, fluida, em que emergiram formas revolucionárias de consciência, mas também as formas ajustadas ao sistema e as intermediárias. Tratava-se de um livro inovador sob muitos aspectos, radical, inspirado pelas revoluções africanas que estavam deitando por terra o “mundo que o português criou”.

Mas, surpreendentemente, Mota se voltou a outra tarefa, decerto também pioneira, mas que conduziu a resultados menos objetivos. A crítica de Mota a Gilberto Freyre aparecerá em seu polêmico Ideologia da Cultura Brasileira.

Mota preferiu a polêmica do presente e o engajamento na batalha de ideias. Independentemente do juízo que se possa fazer, o livro de Mota se tornou único, posto que foi uma tentativa de história crítica abrangente de uma ideologia. Desigual, oscilou de um questionamento preciso da ideologia do mandarinato da própria universidade ao questionamento ligeiro a um autor como Nelson Werneck Sodré[6], acusado de stalinista, populista, esquemático e apressado, como se este fosse dotado apenas de uma “rígida e mecânica teoria das classes sociais”, como continuou afirmando depois[7].

Não é preciso dizer que Nelson Werneck Sodré era um contumaz crítico da ideologia dominante. Seus erros e acertos não colocavam em julgamento aquela condição. A resposta de Sodré não se fez demorar, fez críticas objetivas à tese de Mota, mas também resvalou para a excessiva adjetivação e a acusação generalizada contra “a insuficiência da USP” no campo das ciências sociais.[8]

Girando a mira para outro lado, Mota propôs a leitura de Casa Grande & Senzala como expressão de uma elite aristocrática e decadente[9]. Teria sido a saga da oligarquia dissidente. Freyre representou, segundo Mota, "um projeto suavizador de contradições em contraposição a um projeto histórico sociológico que examina os conflitos na transição de uma sociedade estamental escravista para uma sociedade de classes, em condição periférica"[10].

Mota encontrou em Freyre um “método dialético negativo” através do qual as polarizações, antagonismos e conflitos são harmonizados[11].

Fernando Henrique Cardoso também acentuou, alguns anos depois, o equilíbrio de antagonismos e viu em Freyre “a idéia mitificada de nós mesmos, do Brasil, que é necessária para dar a identidade nacional”.[12]

Fernando Novais afirmou que Freyre “analisa sempre o Brasil a partir de seu passado, isto é, daquilo que deixou de ser; Caio Prado Jr., ao contrário, pensa sempre o país pelas suas potencialidades, isto é, pelo que ele pode vir a ser. Se esta visão talvez possa considerar-se utópica, a primeira é seguramente nostálgica”.[13]

Freyre era um assumido saudosista, como comprovam as belas páginas iniciais de Casa Grande e Senzala e os comentários desenganados sobre os filhos dos engenhos abandonados, morando em chalés suíços e frequentando bordéis de Paris. Para ele o escravo foi substituído “pelo pária de usina; a senzala pelo mucambo; o senhor de engenho pelo usineiro capitalista ausente. As casas foram abandonadas por latifundiários “rodando de automóveis pelas cidades”.[14]

Mas tradicionalismo e conservadorismo são duas coisas diferentes, como ensinou Mannheim, ainda que haja também coincidências entre as duas atitudes.

Em Freyre há um programa conservador que visa antes de mais nada direcionar a política para um dado rumo, ditar-lhe os ritmos e moderar os arroubos radicais.

 

Violência

Para os críticos de Freyre ele não ocultava os conflitos sociais, mas eles eram secundários em sua obra, apareciam apaziguados e amolecidos. Ele teria sido, por exemplo, sagaz ao incorporar o negro numa ideologia nacional brasileira. Inúmeras páginas de Casa Grande e Senzala foram dedicadas a comprovar a igualdade de talentos entre negros e brancos. Mas em seguida, ele relativiza o rigor e a dureza das relações sociais entre a casa grande e a senzala através da “aliança da ama negra com o menino branco, da mucama com a sinhá-moça, do sinhozinho com o moleque”.

À mesa patriarcal numerosos mulatinhos, segundo Freyre, sentavam-se como filhos e moleques de estimação e até acompanhavam os senhores em passeios de carro[15]. Ele recorreu a vários viajantes para afirmar, como regra, o grande número de molequinhos negros e mulatos criados dentro da casa grande “com mimo extremoso” (a expressão é retirada de Vilhena).

Há um deslizamento persistente do eito para as relações interiores à casa grande, da plantation para a cozinha, da documentação sobre o gerenciamento do engenho para a dos costumes, da história econômica para a história íntima. Se isso fez de Freyre, ao lado de Alcântara Machado[16], um pioneiro da história do cotidiano muito antes de chegar ao Brasil a moda historiográfica francesa, por outro lado embaçou o mundo da produção material onde não havia espaço para a conciliação dos opostos.

Freyre foge das relações de produção e se refugia nas de reprodução sexual. Não que estas fossem menos violentas e veremos que ele não oculta esse fator; mas nelas abre-se uma brecha para a esfera humanizada, senão do amor, ao menos do eventual prazer mútuo e até de alianças estáveis, na visão freyriana. Já o trabalho no eito, sob o signo do desprazer máximo, passa ao largo da maioria das descrições freyrianas. O trato e o distrato, o acordo e o desacordo, mesmo gerando torturas e mortes, deslizam para o reino da subjetividade.

Encontramos uma crítica desse aspecto em Caio Prado Junior, quando escreveu que no Brasil-colônia, o “amor da senzala não realizou e não podia realizar” a “esfera propriamente humana do amor” em que o “ato sexual” se envolve de um “todo complexo de emoções e sentimentos” que chegam a fazer passar para “o segundo plano aquele ato que afinal lhe deu origem”.[17]

Freyre sentiu o golpe e numa nota a uma edição posterior de seu livro Casa Grande e Senzala, ele mudou de assunto e reivindicou para si a caracterização da colônia a partir da tríade grande propriedade, monocultura e trabalho escravo. Embora considerando extraordinário o trabalho de Caio Prado, este teria apenas confirmado a ideia esboçada por Freyre em 1933[18].

Não é o caso aqui de explorar essa afirmação, bastando dizer que o livro de Caio Prado Júnior não se limitou a revelar aqueles fundamentos da colonização; ele os situou num sistema colonial que Gilberto Freyre ignorou, embora tenha feito alusões a um “sistema” indefinido e abstrato quando se tratava de explicar, às vezes justificar, de onde provinham os males sociais da colônia.

Os vícios para Freyre são inseparáveis da economia escravocrata e os traços positivos de nossa formação adviriam de inclinações culturais. Para ele, o menino educando foi vítima quase tanto quanto o escravo do sadismo patriarcal porque ambos eram partes dominadas num sistema. Nesse caso, a definição do sistema não envolve diretamente a economia, mas o poder masculino patriarcal. Assim, crianças brancas foram submetidas a palmatórias, vara de marmelo, às vezes com alfinete na ponta, puxão de orelha, beliscão, cascudo etc. Mulheres brancas eram estupradas, espancadas e assassinadas pelo marido.

O “sistema” seria o responsável também pela antecipação da atividade sexual, pela ignorância das mães, a transmissão de doenças, modos grosseiros, linguagem viciosa etc. Mas a explicação se detinha num nível macroestrutural ininteligível e não havia mediações que integrassem os fatos num processo histórico racional, perdendo-se tudo no pitoresco e na exceção. Aquelas singularidades eram tão abstratas quanto a estrutura da qual teriam emergido.

É verdade que ele explica a luxúria dos portugueses: “soltos sem família, no meio da indiada nua, servia a razões de Estado, povoando a sociedade colonial num largo e profundo mestiçamento”[19]. Mas em seguida, a escassez de mulheres brancas serve para justificar, sem provas, o surgimento de zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos:

Sem deixarem de ser relações – as dos brancos com as mulheres de cor – de “superiores” com “inferiores” e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base. A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação. A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido da democratização social no Brasil[20].

De toda maneira, a simples menção às violências coloniais não é algo desimportante, como veremos a seguir, ainda que o autor as modere. O problema para o autor estaria novamente no “sistema”. As relações interpessoais corrigiram-no até onde foi possível. O sistema freyriano é situado na esfera da necessidade histórica. Citando Oliveira Martins, Freyre se indaga se teria sido um crime a escravidão e responde: “para alguns publicistas foi um erro enorme. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português do Brasil”[21].

 

Registros

Os exemplos de violência nas relações interpessoais são fortes no livro Casa Grande e Senzala.

Há o senhor que mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces da casa; há o Visconde de Suaçuna que mandava enterrar no jardim os negros supliciados por sua “justiça patriarcal”.[22] Em muitas casas grandes foram desenterrados ossos de escravos. Freyre registra senhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas grávidas. O rancor sexual levava sinhás moças a mandar arrancar os olhos de mucamas bonitas e os serviam ao marido, na sobremesa, dentro de compotas de doce, boiando em sangue[23].

Nas brincadeiras brutas os filhos de senhores de engenho montavam os moleques como cavalo de montaria ou carros de cavalo em que os meninos negros e até meninas serviam de parelhas, sob um barbante como rédea e um galho de goiabeira por chicote. Não há brasileiro das classes elevadas que “não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadeza e no gosto de judiar com negro”[24].

Os dominados não são sempre apagados enquanto sujeitos, embora Freyre acentue quase sempre a resistência adaptativa. Ele registra a violência e artimanhas dos dominados como o rapto de índias feitos por quilombolas; as sinhás que se podiam roçar nos negros da casa para aplacar o fogo do meio de suas saias e saiotes e de seu isolamento social; embora Freyre, uma vez mais criticando Manoel Bonfim, achasse isso muito raro; as histórias de filhas e esposas assassinadas por senhores de engenho se deviam a estes serem enredados por padres ou escravas, “negras enredeiras”. Mas não só a vingança relacionava sinhás e escravas e estas podiam ser também alcoviteiras.[25]

As relações sexuais, cuja descrição é quase idílica no que tange ao encontro entre os portugueses e indígenas, é também ressaltada em seu aspecto violento como “práticas sadistas e bestiais”, como vimos anteriormente: “as primeiras vítimas eram os moleques e animas domésticos; mais tarde é que vinha o grande atoleiro de carne: a negra ou a mulata”. A melancia e a fruta do mandacaru “com seu visgo e sua adstringência quase de carne” também serviam de iniciação. Animais, mulheres, meninos e frutos se igualavam.[26]

Para Freyre o missionário europeu trouxe extermínio e degradação, as doenças, a repressão à homossexualidade de indígenas. Ao mesmo tempo, citava os meninos brancos sonsos, criados na barra da saia da ama de leite, da mucama e da sinhá que se perdia e se degradava como efeminado.[27]

Cheio de contradições, Freyre não escreveu um tratado em que predominava o caráter científico. Antes, nos legou um ensaio ideológico brilhante calcado em muitas informações úteis. Em que autor encontraríamos o registro de que o brasileiro historicamente veste a cor vermelha e não o verde amarelo, seja no interior de São Paulo ou no norte e nordeste? As origens da valorização do vermelho estão, para Freyre, simultaneamente na cultura portuguesa, africana e, particularmente, indígena.[28]

A casa grande, expressão do comando do sistema de produção e das relações sociais, seria, apesar de tudo, a melhor expressão de nossa “continuidade social”[29], e nela encontramos a única possibilidade de uma história social totalizante do Brasil.

 

Conclusão

Passados vários decênios do movimento crítico à obra de Freyre, podemos hoje recalibrar os instrumentos analíticos e aquilatar o autor à luz do país a que chegamos. Cada momento histórico nos permite ler um autor relevando aspectos diferentes de sua obra. No caso em tela, lembramos do registro da violência em Casa Grande e Senzala.

É preciso também rever um dos pontos equivocados na crítica a Gilberto Freyre e que o historiador Nelson Werneck Sodré lembrou: Freyre foi um autor que passou por muitas fases. Pode ter defendido posturas racistas antes[30], mas não depois de 1930; assim como foi progressista em 1945 e reacionário em 1964. Basta lembrar sua simpatia pela Esquerda Democrática no fim do Estado Novo e seu papel na Constituinte, apesar de ser deputado da União Democrática Nacional (UDN). De liberal a apoiador do governo Médici e da perseguição a intelectuais como Florestan Fernandes, passaram-se algumas décadas.

Outro elemento a se reconsiderar é o papel de sua origem regional e de classe. Embora possa ter fornecido uma moldura importante, ela não determinou de maneira inescapável o seu pensamento. Não seria inusual encontrar uma posição crítica no conservantismo aristocrático, como no monarquista paulista Eduardo Prado com seu libelo anti republicano e contrário ao imperialismo estadunidense: A Ilusão Americana.

Quando Fernando Henrique Cardoso intitulou um artigo sobre Freyre com a expressão “grande indústria & favela”, pretendeu falar a partir de São Paulo para um intelectual conservador de Pernambuco. Mas sua blague perdeu o sentido rápido com a desindustrialização do país que ele mesmo promoveu e, hoje, ele teria que escrever “o grande agronegócio e a favela”.

O nosso dever é historicizar o pensamento, por isso aqui me detive exclusivamente em Casa Grande e Senzala, pois me faltaria a inclinação, o espaço e o tempo para tratar de toda a obra de Gilberto Freyre. Suas posições conservadoras posteriores foram mobilizadas apenas para explicar os seus críticos e não a ele mesmo, pois seria necessário avaliar seus muitos livros, intervenções públicas e sua carreira política, além de ser impossível qualificá-lo como ideólogo sem atentar para o fato de que todos, de algum modo, estamos envoltos numa ideologia.

Os inúmeros exemplos das violências em Casa Grande e Senzala não são desprezíveis e nem gratuitos. Devemos nos perguntar por que o autor se viu obrigado a multiplicá-los. Ainda que não quisesse desenhar um quadro diverso do sistema que idealizou, os fatos que ele sentiu necessidade de descrever revelaram, pela força e atrocidade, algo dissonante de qualquer idealização de uma democracia racial.

 

[1] Folha de São Paulo, 19 de agosto de 2000. Sob uma falsa neutralidade aquela empresa jornalística era conhecida pelas indefinições políticas e pela busca fácil de polêmicas para aumentar as vendas. Ao contrário de O Estado de S. Paulo, nos estertores de sua história conservadora, antes de perder sua identidade, a relação da Folha de São Paulo com a USP era caracterizada pela busca de “escândalos”, como o da lista de professores “improdutivos” nos anos 1980.

[2] Decerto quando falo em “uspiano” em nenhum momento desejo reduzir a instituição ao pensamento dominante de alguns de seus expoentes, mas definir uma tendência que predominou, não quantitativamente, mas em termos de capacidade de polarizar o debate intelectual sobre determinado tema numa época definida.

[3] Em 1940 Freyre comprou o engenho Dois Irmãos, vivenda de Santo Antônio de Apipucos, no Recife, onde atualmente funciona a Fundação Gilberto Freyre.

[4] Leite, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Pioneira, 1983, p. 302 e 314.

[5] A inspiração braudeliana do termo é evidente. Também de Henri Lefebvre. Eu me baseei neste livro de Mota, assim como em Braudel e Vovelle, para escrever minha tese defendida na USP em 2003, A Crise do Império colonial Português: economias, espaços e tomadas de consciência (1961-1975).

[6] No Departamento de História da USP, apesar do severo questionamento ou esquecimento da obra de Sodré, ele não deixou de ser valorizado por professores como Emilia Viotti da Costa e Edgard Carone. Mais tarde registrem-se Wilson do Nascimento Barbosa, Jorge Grespan, Lincoln Secco, Luiz Bernardo Pericás e, especialmente, Marcos Silva. Veja-se: Silva, Marcos A. Dicionário Crítico Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. Id. (Org). Nelson Werneck Sodré na Historiografia Brasileira. Bauru: Edusc, 2001. Grespan, Jorge Luis da Silva. “O marxismo de Nelson Werneck Sodré”. In: Silva, Marcos A. Nelson Werneck Sodré na historiografia brasileira, cit. Secco, L. Apresentação in: Sodré, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010; Secco, L.; Deaecto, Marisa M. “O que se deve ler para conhecer o Brasil”. In: Silva, Marcos Antonio da (Org.). Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré, op. cit.

[7] Mota, Carlos Guilherme. História e Contra-História. São Paulo: Globo, 2010, p.162.

[8] Nesse caso ele dava como exemplo Caio Navarro de Toledo, mas considerava a obra deste um esforço sério de pesquisa. Ele chegou a cobrar Florestan Fernandes por se calar diante do ataque de Mota a Fernando Azevedo. O aluno teria sacrificado o antigo mestre em troca de elogios recebidos. Sodré, Nelson W. História e materialismo histórico no Brasil, São Paulo, Global, s/d, p. 72.

[9] Mota, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: 1933-1974: pontos de partida para uma revisão histórica. 4ª Ed. São Paulo: Ática, 1978, p. 58.

[10] Folha de São Paulo, 17 de agosto de 2000.

[11] Mota, Carlos Guilherme. História e Contra-História. São Paulo: Globo, 2010, p. 229.

[12] Cardoso, Fernando Henrique. “À espera de grande indústria & favela” . Senhor Vogue, São Paulo, n. 2, p. 115-116, maio 1978. p. 115-121.

[13] Novais, Fernando. “Caio Prado Júnior historiador”. In: Novos Estudos Cebrap, nº 2, 1983.

[14] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, p. 33.

[15] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro pp. 353 e 371.

[16] Os dois autores eram as primeiras leituras do curso História do Cotidiano de Laura de Mello e Souza na USP em 1988.

[17] Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 4 ed., 1953, p. 342.

 [18] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, p. 295.

 [19] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, p. 128.

[20] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, p. 13.

[21] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, p. 269

[22] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, p. 19.

[23] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, pp. 27 e 358.

[24] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, pp. 357 e 388.

[25] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, pp. 81, 359, 359, 417, 439 e 441.

[26] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, p. 389.

[27] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, pp. 143 e 152.

[28] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, pp. 139-143.

[29] Freyre, Gilberto. Casa Grande e Senzala, p. 26

[30] Como demonstrou a professora da Faculdade de Educação da USP, Maria Pallares. Vide: Hollanda, Bernardo Buarque. “Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke”. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 68, p. 765-811, dez. 2019. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010321862019000…;. acessos em 25 mar. 2020.


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