Ano 4 nº 10/2024: Nota de pesar; Mês da mentira - A Lista de Greves do Delegado Calandra - Fernando Ferreira

boletim4-11


Nota de pesar

É com tristeza que recebemos a notícia no domingo a tarde do falecimento do Prof. Marcos Antônio Silva. 

Marcos Antonio da Silva | História Social

Foi Professor Titular de Metodologia da História, Doutor e Mestre em História Social pela FFLCH/USP com Pós-Doutorado na Université de Paris III. Assessorou Equipes de Professores de História das Redes Estadual Paulista e Municipal Paulistana durante a primeira gestão do PT em São Paulo. Publicou Prazer e Poder do Amigo da Onça (Paz e Terra, 1989), História – O Prazer em Ensino e Pesquisa (Brasiliense, 1995; reeditado em 2003) e Dicionário Crítico Câmara Cascudo (Perspectiva, 2003, relançado em 2006), dentre outros livros, além de artigos. É autor do projeto e co-autor do texto final do Atlas Histórico do Rio Grande do Norte (Diário de Natal, 2006). Sua mais recente obra é Ditadura Relativa e Negacionismos, editora Maria Antônia, GMarx-USP.

Marcos foi um crítico do revisionismo histórico que buscou isentar a ditadura de seus crimes. Era rigoroso na metodologia da história e não fugia ao debate, pelo contrário, o fomentava.

Foi ainda professor de várias gerações de estudantes e um orientador dedicado de inúmeros historiadores e historiadoras atuantes em escolas e universidades públicas e privadas em todo o país. Marcos Silva faleceu hoje 31 de março de 2024. Rendemos homenagem a ele e abraçamos todos os seus que ficam, solidárias neste momento.

 


Mês da mentira...

 

A LISTA DE GREVES DO DELEGADO CALANDRA

 

Fernando Sarti Ferreira

Doutor em História Econômica – USP e Pós-doutorando UNIRIO

 

mercedez

Fonte: Arquivo Geral 50-Z-341-1.098. Informe sobre pichação no banheiro da Mercedes Benz, setembro de 1974

 

Nos estertores da história do famigerado Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP), um dos mais famosos torturadores do DOI-CODI, o então Delegado Assistente da Superintendência Regional de São Paulo da Polícia Federal, Aparecido Laerte Calandra[1], solicitou à Cauby Mendes de Morais, encarregado do Setor de Informações do Departamento, um levantamento relativo a todas as greves registradas nos arquivos da polícia política entre 1964 e 1983. É difícil imaginar o que se passava na cabeça de Calandra. No ano de 1983, as greves, eventos cruciais para o processo de redemocratização, viviam um momento de refluxo, por mais que a década de 1980 ainda fosse marcada pela recorrência  a esse tipo de protesto social. O pedido foi feito em junho de 1983, três meses depois do departamento ter sido extinto pelo governador biônico José Maria Marin (1982-1983).

A lista Calandra apresenta as seguintes cifras:

Ano

Greves

Ano

Greves

Ano

Greves

1964

1

1971

7

1978

94

1965

0

1972

0

1979

401

1966

10

1973

3

1980

190

1967

9

1974

11

1981

61

1968

14

1975

1

1982

130

1969

1

1976

6

1983

4

1970

6

1977

9

Total

958

Fonte: elaboração própria a partir de DEOPS/SP -43-Z-000-4996

          A maior parte das greves registradas ocorreram no Estado de São Paulo, com destaque para seus subúrbios industriais do ABCD e Osasco.  À primeira vista, é possível observar uma certa dinâmica das greves, relacionando-as aos processos políticos e econômicos mais gerais do período. Há poucas mobilizações após o golpe e a intervenção nos sindicatos entre 1964 e 1965. Em seguida, ocorreu um período de crescimento até 1968, ano das greves em Osasco e Contagem (MG). O refluxo nas mobilizações, ocorrido logo após o Ato Institucional Nº 5, seguiu durante a presidência do ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). A política “milagreira” de Antônio Delfim Netto, a que muitas vezes se atribuiu a responsabilidade por uma espécie de esteio e consentimento dos brasileiros com a ditadura, não tem como ser dissociada da maturação e pleno funcionamento dos aparelhos de terrorismo de Estado. Ao fim, os números são elucidativos sobre a dimensão da explosão do protesto social a partir de 1978, sendo seu auge o ano de 1979.

 

Refluxo: como o terrorismo de Estado operou o “milagre” de acabar com as greves

 

O levantamento, contudo, deve ser matizado. Ou seja, alguns desses números não correspondem exatamente a ocorrência de uma greve, mas à simples menção desta palavra em documentos do arquivo policial. Nos debrucemos sobre algumas ocorrências registradas no sombrio ano de 1971. Na lista Calandra foi registrado em 18/07/1971 uma “Greve de Operários de Osasco”, nos remetendo ao documento depositado no Arquivo Geral sob o código alfanumérico 50-Z-009-36.292. Este documento trata do interrogatório ao qual foi submetido um militante do Partido Operário Comunista (POC) na data assinalada, quando o preso mencionou a greve de Osasco de 1968. Outro registro do ano de 1971, por sua vez, traz outro tipo de situação que, se não faz referência direta a uma greve, pode indicar outro tipo de agitação trabalhista ocorrida durante o ápice da repressão. O relatório sobre o plantão no DEOPS durante a madrugada do dia 26/03/1971 (50-Z-129-8.709), nos informa que naquela noite, uma equipe de agentes se deslocou até uma fábrica na Vila Leopoldina para averiguar a ocorrência de uma paralisação. Sem encontrar ninguém nas imediações da fábrica, os policiais apenas relataram que as vidraças do estabelecimento estavam quebradas. Seria este um caso desesperado de protesto social? Como analisou Edgard Carone sobre a ação dos trabalhadores em outra ditadura: “Não existe passividade e a reação, neste momento da ditadura, se dá na medida das oportunidades”[2].

 

A retomada da ação coletiva: a greve tartaruga de agosto e setembro de 1974

 

          Por sua vez, conforme avançamos pela década de 1970, a lista torna-se um profícuo guia da crescente ação coletiva dos trabalhadores. Em 1974, por exemplo, a lista registra a “Greve Tartaruga – A.B.C.”, cujo documento referenciado (50-Z-341-1096) faz um importante registro sobre a ação dos trabalhadores ainda sob o jugo do terrorismo de Estado. Em 12/09/1974, o Delegado Assistente Seccional ABC, Firmiano Pacheco Netto, enviou para o Delegado Chefe do Serviço de Informações, Romeu Tuma, um detalhado relatório sobre “A ocorrência de greves tartaruga na região ABC, além de outras manifestações de menor significação, se vistas isoladamente” (50-Z-341-1.112). Das vidraças da Vila Leopoldina em 1971 para o ABC em 1974, o relatório destaca uma diferença fundamental: não se trata mais de ocorrências de menor importância, pois foram o resultado da ação coletiva.

          Segundo o relatório (50-Z-341-1.012), havia desde agosto sinais de irritação por parte dos trabalhadores da Volkswagen, da General Motors, da Ford e da Mercedez Benz em relação aos salários. Como tentativa de conter a insatisfação, as direções destas indústrias resolveram antecipar o dissídio coletivo e dar um aumento de 10% nos salários a partir de outubro daquele ano. A ação foi rechaçada pelos trabalhadores. Na General Motors, os comunicados internos referentes a antecipação dos salários “(...) foram rasgados e alguns apareceram com palavras obscenas à margem, tais como: ‘BELA MERDA’”. Na Volkswagen, naquele mesmo dia, 15 trabalhadores da funilaria e pintura reuniram-se com a chefia do seu departamento exigindo aumento de salários. Em consequência, ocorreram dois picos de paralisações parciais do trabalho nas montadoras.

          No dia 26 de agosto, segunda-feira, registrou-se a primeira paralisação. Após o almoço, cerca de 20 operários da General Motors demoraram 40 minutos para retornar ao trabalho. Quatro dias depois, 450 operários da empresa, em diferentes turnos e seções, paralisaram suas atividades por 30 a 40 minutos. Na semana seguinte, as paralisações voltaram a ocorrer, agora na Volkswagen. Na manhã do dia 5 de setembro, no setor de ferramentaria, aproximadamente 300 operários cruzaram os braços por até 1h30. Na Chrysler, ao fim daquela tarde, 20 operários da estamparia paralisaram suas atividades por 45 minutos.

          O segundo pico teve início no dia 11. Na Volks, por volta das 22h00, 440 operários da seção de montagem final de veículos, ao retornarem do jantar, paralisaram suas atividades por 15 minutos. Ao mesmo tempo, cinco operários invadiram a sala da chefia “(...) apresentando reivindicações dos elementos da linha, enquanto estes em coro e em altos brados diziam: ‘QUEREMOS AUMENTO’”. Segundo o delegado, a ação teria ocorrido depois da distribuição de boletins nos banheiros da fábrica criticando a antecipação. Na Ford, no mesmo dia, diversas seções paralisaram de 20 a 40 minutos, sendo que, na ferramentaria de manutenção, 60 operários demoraram 1h40 minutos para voltara do jantar.   

          Os boletins distribuídos no banheiro da Volks não foram encontrados pela segurança da empresa, mas nos banheiros da Mercedez foram aprendidos “3 ou 4 panfletos, manuscritos, à tinta, com os dizeres: ‘EU ESTOU PASSANDO FOME, MAS PRECISO DE AUMENTO NÃO DE ESMOLA. VOCÊ ESTÁ CONTENTE COM OS 10% OU SERÁ PRECISO FAZER GREVE?’”.

          Ao fim de setembro, segundo os relatórios do DEOPS, 2.240 operários teriam tomado parte nas “greves tartarugas” das montadoras de São Paulo.

 

1979: o povo se fez classe?

 

          Apesar de ser muito conhecido o papel dos trabalhadores industriais, e especialmente dos metalúrgicos, no ciclo de greves ocorrido no fim dos anos 1970, é outro aspecto que nos chama a atenção na listagem de greves feitas pelo DEOPS. Em 1978, e até mesmo em 1977, a lista Calandra registrou algumas greves que extrapolaram o operariado. Nesses anos foram registradas greves de estudantes, professores e médicos. Em 1979, por sua vez, é difícil encontrar uma categoria profissional ou um ramo da economia que não tenha sido chacoalhado pelas greves. Operários, médicos, servidores públicos, professores universitários e da educação básica, estudantes, jornalistas, vigilantes particulares e de bancos, boias-frias, trabalhadores de usina de cana-de-açúcar, lavradores, bancários, trabalhadores da TV Tupi, autônomos, empresas de cinema, trabalhadores em pedreiras, carroceiros, trabalhadores do Jockey Clube, coveiros, feirantes, enfermeiros, garis, até mesmo estudantes do Mackenzie, são algumas das categorias  que recorreram à greve como forma de protesto social, sem contar a articulação e desdobramento desses movimentos nos bairros com a criação dos movimentos contra a carestia e outras demandas populares. Depreende-se dessa profusão de mobilizações que não só setores da classe média se alinharam com a ação sindical dos trabalhadores industriais, como também todo amplo e heterogêneo universo de trabalhadores manuais. Rompeu-se o controle da ditadura sobre a sociedade civil brasileira com uma rebelião liderada pelos sindicatos operários.

          A partir de 1980, as greves começam paulatinamente a se restringir novamente aos círculos operários. É verdade que ainda há greves de médicos, estudantes e professores, mas voltam a predominar na lista empresas, endereços e categorias industriais. Entre 1978 e 1982, há também importantes variações em relação a localidade das greves, sendo ao longo dos anos cada vez mais presente mobilizações no interior do Estado.  É possível que a lei de Anistia e o fim do bipartidarismo, ao abrir novos flancos de expressão para a contestação política à ditadura, tenha circunscrito novamente aos circuitos operários a ação grevista? Professores e bancários abraçaram este instrumento, sendo até hoje uma das poucas categorias que recorrem a essa modalidade de protesto. Também foram categorias que se notabilizaram pelo violento ataque às suas condições de trabalho no fim do século XX, seja pela precarização (professores), seja pela automação (bancários)[3]. Ou seja, são categorias cujo processo de proletarização já se insinuava naquele momento, deixando claro que sua comunidade de destino estava mais próxima a do operário fabril do que a dos grupos dominantes.

 

Alguns comentários

 

A lista Calandra foi obtida no contexto da realização do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a Ditadura”, coordenado pelo Centro de Antropologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/UNIFESP) e financiado pelo MPF com recursos provenientes do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) da Volkswagen do Brasil (para acessar o informe público: https://ichf.uff.br/event/projeto-a-responsabilidade-de-empresas-por-violacoes-de-direitos-durante-a-ditadura-informe-publico/). O IIEP - Intercâmbio Informações Estudos Pesquisas - foi um dos parceiros desta investigação, dando seguimento ao trabalho realizado há anos por memória, verdade e justiça para as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros perseguidos pela ditadura. A relação promíscua de parte do empresariado com os órgãos da repressão no combate ao movimento dos trabalhadores e na implementação de sua agenda econômica regressiva foi um campo de pesquisa e militância por reparação, verdade e justiça, aberto nesses últimos anos por esses processos de investigação e que ainda podem e devem ser aprofundados. As iniciativas do CAAF e do IIEP são fundamentais para a reconstrução de uma perspectiva popular sobre o período e, quem sabe, uma forma de enraizar socialmente a condenação ao regime, uma vez que estas pesquisas revelam como dois dos principais projetos da ditadura, a superexploração do trabalho e a gestão militarizada da pobreza, são ainda uma realidade no país.  

 

[1] Calandra foi um dos poucos torturadores a ser reconhecido e condenado pela justiça brasileira. Ver “Justiça condena três delegados a pagarem R$ 1 milhão de reais por torturas e mortes na ditadura”, Ponte Jornalismo, 21/01/2023. https://ponte.org/justica-condena-delegados-a-pagarem-r-3-milhoes-por-torturas-e-mortes-na-ditadura/ Acessado em 25/03/2024.

[2] CARONE, Edgard. O Estado Novo (1937-1945), Rio de Janeiro e São Paulo: DIFEL, 1976, p. 124.

[3] Aos professores, parece ter sido reservado o inferno no século XXI: precarização, somada à automação e ao controle ideológico.

 


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