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TEMPO E PROJETO: NOTA SOBRE A PERIODIZAÇÃO EM FERNAND BRAUDEL
Lincoln F. Secco
Professor do Departamento de História - USP
A linguagem habitual é enganadora a respeito do tempo. “Tempo” remete a “temporal” e a “temporário”. Alude ao que passa, portanto ao que não dura. Um dicionário nos diria que temporal (para além de um evento climático) alude ao que sucede no tempo, ao mundano, portanto, ao que se opõe a espiritual (que pertence, por sua vez, à ordem do eterno). A palavra temporário é mais ainda evidente: lembra o que tem escassa duração1.
Fernand Braudel recuperou, incorporou e superou várias concepções de tempo2. A ideia imediata de tempo homogêneo, linear e cronometrado é típica das sociedades posteriores à Revolução Industrial. Já o tempo como eterno retorno, como repetição faz parte da nossa própria constituição como ser genérico e “civilizado” e é tributária das primeiras observações dos ciclos da natureza.
Assim, o movimento lunar (“revolução”), os tropismos sazonais na reprodução dos peixes, a sucessão das pequenas eras glaciais, a repetição do circuito do dia e da noite são formas de tempo repetitivas e permanentes. Mas as sociedades do capitalismo comercial desenvolveram outra concepção que agregaram à tradicional visão temporal absorvida da observação dos ciclos naturais. Trata-se do tempo múltiplo e plural.
Na ausência de relógios precisos e onipresentes, o indivíduo do Renascimento não pode mais encarar o tempo apenas como o eterno retorno, já que ele (ou uma parcela que se dedica aos jogos do capitalismo) precisa entender as diferenças de tempo e espaço como definidoras dos juros, das operações de câmbio etc.
A hora do dia é repartida de forma ainda imprecisa e a data do calendário é raramente invocada. Quando se a invoca é relacionada a um marco importante (o São João de 1500 que vê perecer o neto dos Reis Católicos). Faz parte dessa concepção o anacronismo: uma pintura medieval de uma batalha da Antiguidade retrata os homens vestidos como no presente de quem pinta o retrato, como se houvesse uma permanência não só da natureza, mas também das práticas sociais3. Mas esse tempo do capitalismo comercial é ainda um tempo que não se percebe como coletivo, como social e global, portanto simultâneo, o que só é possível com o advento da Revolução Industrial que permite a progressiva unificação dos espaços sem abolir suas diferenciações.
O historiador não pode estudar qualquer fenômeno senão no próprio tempo. Ele precisa nos contar o que aconteceu, quando e onde4. É claro que ele tem outros problemas como o de tentar apreender um objeto in flux; o de que ele não é exterior ao objeto que estuda etc.
Ele precisa articular as diversas temporalidades tornando-as solidárias, múltiplas, simultâneas. Ao tempo linear dos eventos percebidos pela historiografia événementielle (eventual ou acontecimental) de Leopold Ranke foi preciso agregar a historiografia dos vastos períodos culturais, como a de Guizot ou Burkhardt, e as conjunturas econômicas dos ciclos e interciclos de média duração de Nikolai Kondratiev. Assim, “cada atualidade reúne momentos de origem e de ritmo diferentes: o tempo de hoje data simultaneamente de ontem, de anteontem, de antanho” e “as durações que distinguimos são solidárias umas com as outras”5.
A um tempo de curta duração, superpõe-se um tempo médio, conjuntural, cíclico que existe sobre tendências mais que seculares, estruturais e quase permanentes. O acontecimento único e singular, visto como objeto da história, perde a primazia. A economia volta-se para as conjunturas, para um tempo médio, ainda que muitos economistas, depois de Braudel, tenham, na verdade, abandonado as reflexões de uma economia retrospectiva, que recuava no tempo para estabelecer as bases do presente. Afogaram-se num mar de oscilações econômicas de curtíssima duração, como as do mercado financeiro.
Na história econômica encontraram-se, para Braudel, estudos estruturais e históricos. Marx estabelecera modelos sociais a partir da longa duração que foram equivocadamente transformados em explicações apriorísticas, prévias de qualquer espaço ou sociedade. Vidal de La Blache concebeu o gênero de vida como uma relação social duradoura entre a população e os recursos. Para Braudel seria preciso fazer tais modelos sociais, como barcos sólidos que são, navegarem nas águas móveis do tempo6.
Mas como operacionalizar num projeto de pesquisa a cronologia de uma pesquisa? O próprio Braudel defendeu uma tese que pode ser sumariada tão somente para fins didáticos na descoberta de um longo século XVI em que a economia mundo mediterrânica não desaparece com a mudança do eixo comercial para o Atlântico. Sua narrativa recua até a metade do século XV e avança até o XVII. Por vezes, os exemplos remontam à Antiguidade e atingem o século XX.
Note-se que ele pode ampliar e diminuir os marcos cronológicos como o geógrafo incrementa ou reduz a escala de um mapa. Ele pode fazê-lo porque a longa duração não é uma cronologia mas um ritmo. A lentidão é a perspectiva que permite ao historiador destacar as estruturas que resistem ao tempo e terminam por explicar melhor a totalidade, mas isso não nos faz abandonar outros ritmos conjunturais ou velozes. Também como o geógrafo o historiador pode trabalhar em múltiplas escalas.
Para fazer isso é preciso conhecer a diferença entre a cronologia da pesquisa projetada e o período que ela abrange. Um fenômeno de longa duração pode ser observado num dia (o Domingo de Bouvines a 27 de Julho de 1214 estudado por Georges Duby). Por outro lado, um historiador pode escrever um projeto panorâmico. Digamos que ele queira tratar da ciência da antiguidade aos nossos dias. O mais provável é que apresente apenas uma enumeração de descobertas sem revelar nenhuma estrutura.
Na definição de Milton Santos, o período é “um segmento homogêneo de tempo histórico”7. Ele é uma abstração que combina tempos diversos. Para o historiador, a cronologia é a delimitação visível de um período, é a sua expressão acontecimental e constatada empiricamente. O período é a síntese duma diversidade de tempos e ritmos orientados por uma tendência. Ele confere aos fenômenos históricos estudados um sentido8.
A cronologia é empírica, o período é o concreto. Ele já é um resultado. Mas uma vez definido, é o nosso verdadeiro ponto de partida da exposição.
1 Abagnano, N. Dicionário de filosofia. México, 1998, P. 1122.
2 Aguirre Rojas, C. Braudel a debate. México: J. G. H. Editores, 1997, pp. 147-182.
3 Id. Ibid.
4 Deixemos de lado aqui as discussões sobre o historicismo e suas variantes (relativismo, presentismo) e também a questão do anacronismo.
5 Apud Fiori, J. L. O vôo da coruja. Para reler o desenvolvimentismo brasileiro. São Paulo: Record, 2003, p. 60.
6 Para Fiori, o que no prefácio de 1859 de Marx aparece como “a base real” ou base material da sociedade, seria simplesmente o tempo longo de Braudel. Id. Ibid., p. 61.
7 Santos, Milton. O Espaço Dividido. Tradução Myrna Viana. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2004, p. 33.
8 Temos um grande exemplo desse método na historiografia brasileira. Caio Prado Júnior escreveu Formação do Brasil Contemporâneo tendo como marco cronológico a situação do território “brasileiro” após três séculos de colonização (1800). Ele utiliza esse posto de observação para recuar ao século XV e, por vezes, avançar ao XX. Ele o fez porque desvendou um significado de longa duração que orienta a história do Brasil: o sentido da colonização. Na forma de exposição ele é um ponto de partida. Mas é simultaneamente o resultado da pesquisa. Sobre este método vide: Secco, L. Caio Prado Júnior: o Sentido da Revolução. São Paulo: Boitempo, 2007. E Secco, L. “Posfácio”, in: Prado Júnior, C. A Revolução Brasileira e a Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, pp.265-280.
Expediente
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