Ano 01 nº 62/ 2020: Um Pequeno Levantamento dos Trabalhos do Professor Wilson do Nascimento Barbosa - Dálete Fernandes

boletim 62


Mundo acadêmico ...

 

UM PEQUENO LEVANTAMENTO DOS TRABALHOS DO PROFESSOR WILSON DO NASCIMENTO BARBOSA1

 

Dálete Fernandes

matemática e graduanda em História - USP

 

wb

Foto de Daniel de Andrade Simões

 

O Professor Wilson do Nascimento Barbosa é uma referência para todas as pessoas que se interessam por história econômica, social ou mesmo metodologia e teoria da história. Além de grande historiador, é economista e estatístico formado pela Universidade de Lund. Trabalhou no Ministério dos Transportes do Governo da Frente de Libertação de Moçambique, e foi Professor Titular de História na Universidade de São Paulo, atuando principalmente com temas de história econômica, economia e cultura negra no Brasil.

Publicou livros como Atrás do muro da noite: dinâmica das culturas afro-brasileiras2 com Joel Rufino dos Santos; Cultura Negra e Dominação3; Balanço da Economia Brasileira (1940-1980)4; A Surda5 e o mais recente Escritos Estratégicos6.

Esse grande militante e intelectual marxista estudou e praticou da poesia ao conto, da filosofia às diferentes formas de luta, e em seus escritos a história, a economia, a estatística, a teoria e a práxis sempre estão presentes.

No texto “A Importância da Estatística para o Historiador”, o Professor demonstra que a curiosidade que leva à busca pelo conhecimento histórico levará também à procura por novas ferramentas que possibilitem a organização de informações, com a “construção de modelos quantitativos e qualitativos de grande vantagem, para obtenção de poder analítico e conclusivo”7. A ampliação dos campos de investigação com a utilização de matemática, estatística, lógica e cálculo irão aparecer como ferramentas indispensáveis assim como foram para Marx e Engels em suas pesquisas.

Em sua tese de livre-docência, A Crisálida: aspectos histórico-econômicos do fim da escravidão no Brasil, fruto de 10 anos de pesquisa, traz uma “reflexão sobre o papel do comércio internacional, da divisão internacional do trabalho, no processo de término do capital escravista e do trabalho escravo no Brasil, no período 1850-1888.”8. Por meio da análise macroeconômica de problemas relacionados à escravidão, o autor busca uma explicação global para os fenômenos analisados. Evidenciando uma abordagem quantitativa9, essa tese contém uma introdução à estatística, sessões sobre séries numéricas, funções, gráficos e variáveis.

Se em trabalhos como A Crisálida podemos concluir com o autor que mesmo com a Abolição e a República os ex-escravizados continuaram a ser hostilizados e os salários foram colocados abaixo do mínimo de subsistência; em O negro na economia brasileira fica escancarado que a “consolidação do racismo antinegro no Brasil, praticamente indestrutível nas condições da sociedade republicana, causou a exclusão do negro e impediu seu acesso à propriedade”.10

Nesta análise há uma descrição que se inicia no século XVI, com a instalação do sistema escravista, as origens dos quilombos, passando pelos séculos XVII, XVIII e XIX com a hegemonia cafeeira, e chegando aos séculos XX e XXI descrevendo a situação da força de trabalho; a participação do negro na economia; os impactos da escravidão, da industrialização e da globalização; a situação das mulheres negras; entre tantas outras análises com informações e referências importantes para se compreender a realidade brasileira e o racismo antinegro.

Ao encerrar o Professor mostra que

O desemprego, a falta de instrução, a miséria, a fome, a má alimentação, a ausência de assistência médica e dentária, entre outros fatores, contribuem poderosamente para doenças cardiovasculares e mentais, reduzindo drasticamente a esperança de vida dos negros.11

Em A lógica da submissão é possível perceber que o “neocolonialismo, como força e violência, tende a bloquear os processos locais de desenvolvimento da consciência social”12, mas em Cultura Negra e Dominação: O encontro de culturas negro-africanas e ameríndias no Brasil produziu uma cultura própria onde se fundiram mitos e tradições é descoberta a importância da etno-história, pois esta contribui “para eliminar preconceitos, permanências interpretativas de fundo ideológico e a base teórica do racismo”.13

Continuando as análises sobre a história do Brasil é possível perceber as relações entre o conservadorismo, o racismo e o golpe de 1964, no artigo “Conhecendo Câmara Ferreira” o autor descreve que “o projeto da ditadura era racista [...] O que eles entendiam por ocidental excluía os negros, os indígenas e todos os seus descendentes”.14 No “Curso Médio do Partido Comunista Brasileiro” é descrito que a “única coisa que restava para os ‘advogados do atraso’, era o anticomunismo mais feroz, o racismo mais cego e brutal, o desprezo aberto à massa do povo brasileiro. Este ambiente crescente de ódio e desprezo é que está na raiz do golpe de 1964”.15

Na mesa “Prática política e questão racial”, o historiador coloca questões de extrema importância para o materialismo histórico

O primeiro ponto que eu queria destacar é a pouca importância ou a importância secundária que a questão racial tem dentro da concepção do materialismo histórico, da concepção marxista [...] entre as categorias que o materialismo histórico desenvolveu e que considera como ferramentas primárias para explicação dos fenômenos sociais e das lutas sociais, a raça é uma categoria que não tem relevância [...] por que não sendo importante a questão da raça do ponto de vista prático, mesmo assim se torna ela uma categoria importante? Na medida em que o capitalismo foi inventado num continente onde predominava um grupo que correspondia ao agrupamento branco, o problema da raça começou a ser denotado quando houve a luta pelo espaço, quer dizer, quando os diversos agrupamentos brancos procuravam ocupar outras regiões do mundo com o fim de exploração. Então a questão da raça passou a ter importância, porque, para justificar moralmente a opressão de povos, tornou-se importante diferença que existia entre os opressores e os povos oprimidos16 [grifo nosso]

Já na mesa “Materialismo histórico e a questão racial”, o historiador mostra que o materialismo histórico pode contribuir com as lutas do movimento negro e apresenta

algumas hipóteses de trabalho ou teses do materialismo histórico tendo por objetivo mostrar que é perfeitamente possível e até necessário que surjam formulações da problemática do negro a partir do ponto de vista desta doutrina e que a influência desta doutrina não empobreceria o referido movimento, mas certamente daria uma contribuição ao seu maior vigor.17

Portanto é possível vislumbrar na obra desse importante historiador tanto a análise do método marxista e a importância da questão racial quanto a análise do Movimento Negro18 e a crise de identidade. Com artigos que mostram os problemas da sociedade, o autor também traz os métodos, as motivações e os objetivos da pesquisa em história social dizendo que “uma história cultural para ser trazida, a esta altura do drama brasileiro, não pode ser uma história de enganos”, pois ela “tem que ser uma história para valer, uma história militante, ou ao menos participante”, capaz de “remover a ingenuidade das cabeças, para torná-las pensantes, aptas ao exercício crítico e, portanto, capaz de contribuir para uma nova construção”.19

No artigo “Repensando o Negro” é descrito o significado da ginga, já na introdução, como “a integração desalienante e coletiva de uma psicologia e de uma ideologia sociais; significa a exteriorização, pela emocionalidade, dos símbolos ocultos de uma cultura perdida”, e continua, “o retorno de uma superestrutura que se recusa a morrer mas que nessa recusa não completou ainda sua função”, pois “nem tudo está dito, o discurso não foi encerrado”.20 A ginga é ainda apresentada como “um ‘elo perdido’ que justifica todas as buscas”,21 pois nos conecta com “nossos ancestrais” por meio de uma “sabedoria, consubstanciada na ginga, de movimento negro e de cosmovisão”.22

Trabalhando e analisando temas relacionados à cultura negra esse brilhante intelectual traz reflexões e polêmicas,23 questiona uma possível destruição da potencialidade revolucionária e subversiva do Movimento Negro,24 fala sobre as visões empobrecidas e preconceituosas no estudo das religiões afro-brasileiras,25 apresenta a importância da alimentação como um “ato cultural mais profundo, que criou de fato a alma brasileira”26 e mostra a “extraordinária importância”27 da capoeira.

A leitura desses textos nos expõe a necessidade do debate étnico-cultural e sua relevância para a história do Brasil, pois o “avanço dos negros na racionalização, no estudo, na compreensão dos seus problemas, é um avanço de parcela ponderável dos brasileiros. Pode-se entender como um avanço de todos os brasileiros”.28

A compreensão da identidade negra no Brasil produz impactos nas ações dos movimentos negros, como a articulação do Movimento Negro Unificado (M.N.U.), em um período de ditadura, que foi manchete em muitos jornais e colocou em evidência a participação desse movimento e suas personagens na história do Brasil. Pois a “recolocação do negro como um fato histórico e sociológico brasileiro foi, portanto, um resultado inevitável daquele despertar político, com a busca de novos caminhos pela maioria da sociedade brasileira, e um novo interesse pela democracia”.29

Dessa forma, por meio de sua vasta e imprescindível obra literária30 e histórica,31 o Professor, historiador, estatístico e economista Wilson do Nascimento Barbosa mostra a importância da história, das análises quantitativas, da estatística, do marxismo e da literatura; com ênfase na economia, na cultura e na questão racial. É autor inevitável para a compreensão crítica de nossa sociedade.

 

capa WB
O livro Escritos Estratégicos foi publicado pela editora do GMarx-USP, a Maria Antônia Edições, e pode ser encontrado no site https://mariaantoniagmarx.blogspot.com/2020/11/escritos-estrategicos.html

 

1 Esse levantamento procura apresentar uma pequena parte da obra do Professor Wilson do Nascimento Barbosa com foco na questão racial.

2 BARBOSA, W. N. Atrás do Muro da Noite (Coautoria com Joel Rufino dos Santos). Brasília: Fundação Palmares, 1994.

3 BARBOSA, W. N. Cultura Negra e Dominação. São Leopoldo - RS: Editora Unisinos, 2002.

4 BARBOSA, W. N. Balanço da Economia Brasileira: 1940-1980. São Paulo: LCTE Editora, 2006

5 BARBOSA, W. N. A Surda. São Paulo: Com-Arte, 2013.

6 BARBOSA, W. N. Escritos estratégicos. São Paulo: Maria Antonia Edições, 2019.

7 BARBOSA, W. N. A Importância da Estatística para o Historiador. São Paulo, 2016. p.12.

8 BARBOSA, W. N. A Crisálida: Aspectos Histórico-Econômicos do Fim da Escravidão no Brasil, 1850 - 1888. Introdução a uma Análise Quantitativa. Tese de livre-docência. São Paulo, FFLCH-USP: 1994. Apresentação.

9 “...por duas razões: (a) os métodos indutivos e dedutivos se completam, como nos ensinou Frederich Engels; e (b) o uso do número contido na informação facilita ao historiador processá-lo e vinculá-lo, tirando proveito de sua lógica específica de modo que, a partir de um certo ponto de análise e processamento, gera-se para ele todo um campo auxiliar de explicações contidas no material e que, de outra forma, teria a possibilidade de ficar perdido” – Idem, “Introdução”.

10 BARBOSA, W. N. O negro na economia brasileira. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 2006, p.1.

11 Idem, p. 45.

12 BARBOSA, W. N. A lógica da submissão. São Paulo, 2019.

13 BARBOSA, W. N. Cultura Negra e Dominação: O encontro de culturas negro-africanas e ameríndias no Brasil produziu uma cultura própria onde se fundiram mitos e tradições. São Paulo, 2002, p. 4.

14 BARBOSA, W. N. Conhecendo Câmara Ferreira. Agosto de 1996.

15 BARBOSA, W. N. Curso Médio do Partido Comunista Brasileiro. Rio de Janeiro, 1962.

16 BARBOSA, W. N. Mesa-Redonda: Prática Política e Questão Racial. Rio de Janeiro, 1985

17 BARBOSA, W. N. Mesa-Redonda: Materialismo Histórico e Questão Racial. Rio de Janeiro, 1985

18 BARBOSA, W. N. Nota Sobre o Movimento Negro.1992.

19 BARBOSA, W. N. História Cultural e Etnicidade Negra. 1989

20 BARBOSA, W. N. Repensando o Negro. 1992.

21 BARBOSA, W. N. Ginga, o elo perdido. 1991

22 BARBOSA, W. N. Ginga e cosmovisão. 1991.

23 BARBOSA, W. N. O Caminho do Negro no Brasil. Câmara do Livro: São Paulo, 1999.

24 BARBOSA, W. N. Língua de Branco, Língua de Negro.1982

25 BARBOSA, W. N. Recorrência Afro-religiosa e Nova Mística. Palestra na PUC - São Paulo, 1998.

26 BARBOSA, W. N. Interdição Alimentar. Palestra no 1º SENUN (Seminário do Negro Universitário), Salvador, Bahia, agosto/1996.

27 BARBOSA, W. N. A Capoeira Dura e a Religião Afro-Brasileira. Artigo para o Curso de Pós-Graduação Aspectos da Cultura Negra no Brasil, Departamento de História, Programa de História Social, FFLCH-USP.

28 BARBOSA, W. N. A Identidade do Negro no Brasil. Artigo para o Curso de Pós-Graduação Aspectos da Cultura Negra no Brasil, Departamento de História, Programa de História Social, FFLCH-USP.

29 BARBOSA, W. N. O Problema do Negro na História do Brasil. Artigo para o Curso de Pós-Graduação Aspectos da Cultura Negra no Brasil, Departamento de História, Programa de História Social, FFLCH-USP. “O problema do negro na história do Brasil é, na verdade, um problema de dupla mão. De um lado, é o problema do negro enquanto sujeito brasileiro, seu papel, o mundo de suas ações brasileiras. De outro, é um problema de quem inventou o negro, ou seja, um problema do homem ocidental, o colonizador, o escravizador, o deseducador e/ou repressor. Este duplo problema é um drama com atores definidos e, para melhor ser compreendido, deve-se produzir seu texto, analisá-lo, submetê-lo à reflexão coletiva.”

30 Um exemplo entre tantas outras obras literárias: BARBOSA, W. N. A Flor Mais Sensível. 1964 – Fala sobre o fim da guerra do Paraguai e cita o numeroso contingente militar predominantemente negro.

31 Exemplos entre tantas outras obras históricas, como as já citadas: BARBOSA, W. N. Metodologia da Negritude e das Culturas Negro-Africanas no Brasil. São Paulo, 2018. Nesta obra, fala sobre a importância do negro e da África serem apresentados como sujeitos históricos. BARBOSA, W. N. “A Discriminação do Negro como Fato Estruturador do Poder”. Sankofa (São Paulo), 2(3), 2009, 71-103. ttps://doi.org/10.11606/issn.1983-6023.sank.2009.88739 - Mostra que a “desconstrução do racismo no país é apresentada como luta política dos movimentos negros, fazendo-se necessário, para isso, compreender como se dão as ações fascistizantes do Estado articulado ao modo de produção capitalista”.

 


Expediente

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
Endereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000

Email: mariaantoniaedicoes@riseup.net