Ano 01 nº 65/ 2021: Resenha: AmarElo - É tudo pra ontem! - John Kennedy Ferreira

boletim65


Coluna ARTirando ...

 

RESENHA: AMAR Elo - É TUDO PRA ONTEM!

(OU UMA PROPOSTA DE NOVA SEMANA DE ARTE MODERNA, A DISPUTA PELA HEGEMONIA NO BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA BRASILEIRA)

 

John Kennedy Ferreira

Doutor em História Econômica - USP , Professor de Sociologia - DESOC-UFMA

 

emicidaFicha do Filme: Amarelo - É Tudo Pra Ontem

Brasil | 2020 | Documentário | 89 min.

Direção: Fred Ouro Preto

Elenco: Emicida

Produzido por: Laboratório Fantasma

Distribuição: Netflix

No início da década de 1920, vive-se uma imensa tensão social e política. O pacto que originou o sistema político brasileiro está em frangalhos: insatisfação em todos os poros da sociedade; manifestações de trabalhadores e de seus sindicatos são fortemente reprimidas; classes médias e setores burgueses expressam seu descontentamento; uma epidemia devasta as cidades. O governo reacionário encontra-se paralisado e atua com contenção, força e repressão contra os setores opositores e seus partidos. Não raro é desenhado como saída um autogolpe de Estado, os setores da situação e da oposição discutem a emergência de um novo pacto federativo e de uma nova constituição.

Às vésperas do centenário da Independência, uma parte da classe dominante quebra a regra e apresenta à sociedade um manifesto expressando o que deve ser discutido no país: o Brasil Oficial e Real se depara com a questão do negro, dos indígenas, das classes trabalhadoras, das mulheres, da brasilidade. Diversos temas são colocados em pauta através da música, das artes plásticas, da poesia e da literatura criando um imenso alvoroço, questionando-nos o futuro, as incertezas e o Brasil.

Esse era o ambiente conjuntural da Semana de Arte de Moderna de 1922, guardada a devida distância, nos lembra um pouco do que estamos vivendo hoje: a sociedade está passando por uma imensa transformação social e estrutural e exige uma nova forma de organização e de rumos.

O reacionário governo Bolsonaro aponta para uma contrarrevolução restauradora, capaz de bloquear as diversas demandas existentes na sociedade brasileira. A pauta oficial depara-se com a pauta real e é nesse ínterim que o filme AmarElo - É Tudo pra Ontem abre um debate muito importante à sociedade brasileira: o filme é acima de tudo uma proposta política; é um texto (manifesto) político, talvez o melhor que vi nos últimos 25 anos (desde o manifesto do MST sobre a terra em 1995-6).

É imprescindível assistir, tive a séria impressão — no final com a participação do Pablo Vitar, Majur e do Emicida, cantando uma estrofe da música de Belchior ("Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro...") - que algo está sendo gestado e uma nova geração está assumindo o seu posto.

AmarElo foca a contribuição dos negros — e não brancos — na construção da brasilidade; dessa forma, parte do Negro Tebas, passa por Luiz Gama, os Oito Batutas (Pixinguinha, Donga, João Pernambucano e outros até chegar a Wilson das Neves, "o dia que o morro descer, e não for carnaval..."), até o Hip Hop.

Define nesse histórico que por mais que os negros e todos os “não brancos” tenham sido recusados e marginalizados, eles deram através da arte, e de suas habilidades, contribuições importantíssimas — não raras vezes negadas — à construção do Brasil. Depois temos uma descrição sociológica de São Paulo e do Brasil; nesse momento, o filme mostra, ainda, como vem sendo travada essa luta, como ela continuará sendo travada: a arte e a música é um locus fundamental para enfrentar a perseguição e a marginalidade históricas.

O filme-documentário é a memória de todos que tombaram pelas liberdades, pela democracia e pelas integrações e causas sociais no Brasil; não cai na tentação sectária e neoliberal de pensar o país como raça contra raça, ou gênero contra gênero …. Mas passa pela lógica de que há classes e cores de pele e gênero dentro dessas classes, que podem viver em harmonia desde que haja interesse de todos nessa integração. Como demonstra a própria escolha do nome, AMAR Elo, referencia o poema de Paulo Leminski.

Lélia Gonzalez, Mario de Andrade (e os modernistas), Racionais MC's, Ruth de Souza, Mariele Franco, Ângela Davis.... ganham cores bem fortes.

O filme–movimento ganha ação mostrando a geografia (Gentrificação) e os espaços das quebradas, sua linguagem e as estratégias de sobrevivência. A presença, nada pequena, do Estado através da contenção-repressão, a música (Ismália) dos 80 tiros disparados contra o músico e pai de família no Rio de Janeiro mostra essa dimensão. O papel ideológico também é mostrado através dos cânticos católicos como uma borracha que ataca e visa apagar a memória dos negros e dos índios e de suas religiosidades e crenças na formação histórica do Brasil. Descreve como as classes dominantes veem o lugar do pobre e como ele deve pensar e ser pensado enquanto pobre e negro (ou não branco).

O filme resgata a bandeira modernista e o desejo de pensar um Brasil inclusivo e não racista, usa o Teatro Municipal, palco de fundação do modernismo, como espaço para refletir uma nova modernidade e um novo manifesto antropofágico e é ali numa plateia misturada que é mostrado o novo enredo e seu novo ritmo. Do lado de fora, os que não puderam entrar (ou pagar) assistem, cantam e dançam também.

O sentido político e direcional toma conta quando Emicida, e o público, saúda a Federação dos Homens de Cor (FHC) da primeira metade do século XX e também a presença no show de Fátima, Miltão Barbosa e outros membros do ato de fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) que, nas escadarias do Municipal em 1978, denunciou a perseguição e a marginalização dos negros e não brancos no Brasil. Nesse instante, a impressão que tive é que eles pegaram e mantêm firme a bandeira de lutas dos direitos sociais dos negros e outros grupos não brancos.

E mais que isso, o filme mostra a necessidade de reatualização da Semana de Arte de Moderna, contando com outros setores, que, na época, não tinham voz como os negros, os trans, as mulheres e os indígenas. Ou seja, AmarElo mostra que irão disputar a hegemonia do bicentenário, propondo um amplo leque de manifestações artísticas e multiculturais capaz de contrapor a comemoração desenhada pela direita e pelo Brasil oficial.

Por fim, mais algumas palavras. A boa produção e a excelente direção de Fred Ouro Preto, que conseguiu fazer um documentário bem movimentado contando ainda com uma miríade de artistas e personalidade de hoje e do passado. Vale conferir.

 


Expediente

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