Ano 01 nº 34/ 2020: Vidas Negras Importam Só Agora? Breve Discussão Sobre a Imprensa Negra no Pós-Abolição - Simone Almeida; Coluna Socialista por Rosa Rosa Gomes

Boletim 34


A conjuntura ...

 

VIDAS NEGRAS IMPORTAM SÓ AGORA? BREVE DISCUSSÃO SOBRE A IMPRENSA NEGRA NO PÓS-ABOLIÇÃO

 

Simone Almeida

Historiadora, pesquisadora, estudante de Técnico de Arquivo (ETEC) e estudante de Engenharia da Computação (Univesp)

 

Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial.

(Lélia Gonzalez)

 

Devido aos acontecimentos atuais de violência policial contra a população preta, a hashtag #blacklivemattes ou #vidasnegrasimportam tomaram conta das redes sociais, resultando na eclosão de diversas manifestações pelo mundo afora: vários monumentos e estátuas que simbolizam a escravidão estão sendo retirados e derrubados pelos manifestantes antifascistas e antirracistas, representando um grande marco na historiografia mundial.

Diante do crescimento da extrema direita brasileira e do saudosismo da ditadura militar, com suas manifestações antidemocráticas, incentivadas pelo presidente, nada mais justo que uma reação à altura, em defesa da democracia. Porém, para comunidade preta, não há nenhuma novidade nisso, aliás, a violência policial é uma velha realidade presente no cotidiano de boa parte da população brasileira.

Muitos youtubers famosos, influencers, artistas, políticos, entre outros, estão cedendo espaço em seus perfis virtuais para a discussão antirracista, disponibilizando, assim, o seu lugar de privilégio ao conceder espaço para ativistas e intelectuais pretos. Embora a intenção seja boa e válida para a ampliação do debate sobre as questões raciais para todas as esferas da sociedade (discutir o racismo é discutir sobre a democracia), deve-se ter a preocupação de não ser criada uma dependência de só se falar no assunto quando o privilegiado socialmente permitir.

Além disso, muitas marcas também aderiram à campanha antirracista com hashtags e mudanças para a cor preta em seus perfis , porém sabemos que existem empresas voltadas para o ramo da moda/produtos de beleza que, por muito tempo, perpetuaram a imagem da mulher branca, de traços finos e cabelo liso, como padrão de beleza estético ideal. Quando observamos tais empresas que agora se manifestam publicamente em apoio às pautas antirracistas, fica sempre a dúvida: será que existem mulheres negras em seu quadro de funcionários com bons cargos e salários adequados, equivalentes aos do homem branco que exerce a mesma função? Uma hashtag, uma mudança de status no Instagram ou um texto “enfeitado” no Twitter não podem reverter anos e anos de racismo estrutural que, de certo modo, destrói vidas indiretamente: à exemplo da mulher negra, a quem por muito tempo foi imposta a necessidade de alisar o cabelo para ser aceita socialmente, influenciando na sua autoestima, matando, pouco a pouco, a sua essência e ancestralidade africana.

Na mídia televisiva, o racismo estrutural está presente em diversos aspectos, como na teledramaturgia, e foi muito bem evidenciado através do documentário “Negação do Brasil”1, no qual é possível identificar como a questão foi sendo abordada e reproduzida ao longo dos anos: em alguns casos o racismo é explícito e, em outros, ele se manifesta pela reprodução do mito da democracia racial (somos todos iguais).

Recentemente, alguns veículos de imprensa começaram a dar mais ênfase nas pautas antirracistas, no entanto, esses mesmos canais midiáticos são os responsáveis pela disseminação do racismo estrutural que está presente há tempos em nossa sociedade. Embora tenham incluído jornalistas pretos como âncoras, em contrapartida continuam reproduzindo a mulher negra como “engraçada, desengonçada, que fala o português incorreto e com atitudes infantis”, como em determinadas atrações humorísticas; da mesma forma, os programas sensacionalistas do jornalismo policial, que sempre partem de um julgamento moral e tendencioso, continuam retratando o negro como propenso à criminalidade.

Por outro lado, quando as discussões das pautas raciais ocorrem no terreno virtual, verifica-se, infelizmente, a mesma tendência dos veículos midiáticos televisivos/jornalísticos, onde as discussões tomam uma grande proporção inicialmente (viralizam), inflando a opinião pública, mas depois de um curto espaço de tempo, caem no esquecimento. João Pedro, Ágatha, Marcos Vinicius, Evaldo dos Santos Rosa (o músico que foi morto com 80 tiros disparados contra seu carro pelo Exército), Amarildo... Os casos são diversos, incontáveis e corriqueiros, e, no entanto, naturalizados e normatizados, como se fizessem parte do cotidiano.

Por essas e outras tantas questões, é possível questionar se o atual movimento midiático simpático às pautas antirracistas é realmente genuíno ou se está apenas seguindo uma onda passageira, acompanhando o calor dos movimentos insurrecionais que eclodiram por conta da violenta morte de George Floyd em solo norte americano. Além disso, outra problemática se faz presente: ao disponibilizar seus espaços midiáticos para discutir e se debruçar sobre as pautas antirracistas, a mídia/imprensa branca, e por vezes burguesa, não acaba por ofuscar os espaços e veículos midiáticos da imprensa alternativa, dos coletivos periféricos, dos movimentos negros diversos?

Ao discutir as pautas raciais de maneira “improvisada” e no calor dos acontecimentos verificados nos EUA, a mídia/imprensa oficial no Brasil dá a impressão de que nossos George Floyd da violência urbana cotidiana passam despercebidos e invisibilizados perante a comoção pública. E mais, tais iniciativas passam, por vezes, ao imaginário popular, a falsa impressão de que inexiste uma preocupação de outras esferas sociais com essas problemáticas, ficando a impressão de que só existe discussão sobre tais temáticas quando a mídia/imprensa oficial ou youtubers se interessam em ceder espaço para tais discussões. Acabam, com isso, invisibilizando lutas cotidianas da população negra para se fazer ouvir e denunciar seu duro cotidiano em uma país extremamente racista como o Brasil.

A imprensa negra há tempos se faz presente evidenciando a importância da discussão das pautas raciais e denunciando a violação dos direitos civis que, por muitas vezes, lhes foi negado pelas classes dominantes. Não é diferente nos dias atuais, quando vasta produção literária, jornalística e midiática negra possui seu papel fundamental nas discussões sobre o racismo estrutural, mas, normalmente, não tem visibilidade.

As atuais iniciativas da mídia/imprensa oficial em tratar as pautas raciais dão ainda a impressão da não existência de uma imprensa negra ativa e combatente no passado. Ledo engano, pois através de uma breve análise documental de fundos arquivísticos, é possível verificar que a imprensa negra sempre se fez presente.

As publicações jornalísticas após a abolição da escravidão retratam as condições que o negro se encontrava, tentando sobreviver e ascender socialmente, inclusive enfrentando dificuldades de inserção no mercado de trabalho, acentuadas pelo contingente imigratório predominantemente branco e europeu, cuja chegada foi incentivada pelo crescimento econômico do café em conjunto com o interesse, por parte do governo brasileiro, em promover o branqueamento da população, intensificando ainda mais a marginalização do negro.2

Logicamente, a imprensa tradicional negligenciava a questão negra, sempre atribuindo o insucesso do recém liberto à incapacidade intelectual ou à propensão natural ao crime. Por esses motivos, os periódicos da imprensa negra foram importantes para a integração do negro no começo do século XX, a despeito dos níveis de analfabetismo da população negra serem muito altos naquela época.

No Arquivo Público do Estado de São Paulo, é possível consultar os arquivos permanentes sobre a imprensa negra, como esses a seguir.

alfinete

O Alfinete (1918-1921)

 

alvorada

Alvorada (1948) – Jornal da Associação dos Negros Brasileiros (ABN)

 

bandeirante

O Bandeirante (1918-1919)

 

Liberdade

Liberdade (1919-1920)

 

tribuna

Tribuna Negra pela União Social e Política dos Descendentes da Raça Negra (1935)

 

senzala

Senzala (1946)

 

quilombo

O Acervo da revista Quilombo (1950) pode ser consultado através do site da IpeAfro

 

Em suma, a imprensa negra sempre se fez presente. Os espaços “cedidos” pela mídia/imprensa oficial, youtubers, blogueiros, influencers etc., ainda que importantes diante da conjuntura atual, não devem, no entanto, serem vistos como os únicos espaços onde as pautas antirracistas são discutidas. Por outro lado, é necessário também que os diversos movimentos negros não fiquem “reféns” dos espaços disponibilizados improvisadamente pelo calor sensacionalista do momento. Cabe aos negros reivindicar a discussão permanente de tais pautas nesses espaços, de maneira paralela ao trabalho desempenhado pela imprensa negra ao longo da história.

 

Referências bibliográficas

A NEGAÇÃO do Brasil. 2017. Vídeo (1h29min07s). Publicado pelo canal Cine Clube Dionel. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=S5bgipo2Dic&gt;. Acesso em: 28 jun. 2020.

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Repositório Digital de Jornais e Revistas. Disponível em: <http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/acervo/repositorio_digital/jorn…;. Acesso em: 28 jun. 2020.

A VOZ DA RAÇA. São Paulo, 1933-1937. Disponível em: <http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx&gt;. Acesso em: 28 jun. 2020.

BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de S. Paulo. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.

IPEAFRO. Acervo Digital. Disponível em: <https://ipeafro.org.br/acervo-digital/leituras/ten-publicacoes/jornal-q…;. Acesso em: 28 jun. 2020.

SITE do Arquivo Público de SP reúne jornais históricos da “imprensa negra”. G1, 13 maio 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/site-do-arquivo-publico-de…;. Acesso em: 28 jun. 2020.

 

1A NEGAÇÃO do Brasil. 2017. Vídeo (1h29min07s). Publicado pelo canal Cine Clube Dionel. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=S5bgipo2Dic&gt;. Acesso em: 28 jun. 2020.

2BASTIDE, Roger. A imprensa negra do Estado de S. Paulo. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.

 


 

Coluna socialista...

"Muitos são os memes na internet de pessoas que tinham projetos de aprender mandarim, praticar ioga e virar o novo maromba do pedaço durante a quarentena, aproveitando as 2h de transporte que seriam poupadas, mas que no final não conseguiram concretizar nada. Ao fim, a quarentena parece uma vida em suspenso, um eterno esperar pelo reencontro que parece que nunca vai chegar.

Somado a esse caos, esse sentimento estranho de uma vida interrompida sabe-se lá até quando, eu e meus colegas passamos por mais um processo ao mesmo tempo: somos trabalhadores da Cinemateca Brasileira.

Repassar todos os acontecimentos seria muito torturante e enfadonho, desde março quando os vales não caíram e depois no mês seguinte quando o salário não caiu e a espera semana após semana, promessas semanais de resolução do problema e de novo, de novo, de novo. Passaram-se três meses nessa situação...

A vida em suspenso pela quarentena virou uma abstração, como se estivesse no espaço, vagando sem controle. Olhar para amanhã, para a próxima semana é um grande nada. Não é possível fazer qualquer tipo de plano, porque simplesmente não sabemos nada do que acontecerá. A quarentena piora tudo, porque não há empregos possíveis, perspectivas de estudos, nada... E nem de receber os salários já devidos.

Após o quarto ato, que foi mais um piquete para lembrar que ainda não recebemos um real sequer, um sentimento de vazio ficou, de não ser possível planejar qualquer coisa. O que fazer, se toda semana reuniões acontecem ou são adiadas e nada é dito sobre quando receberemos? Bate um cansaço, um certo desespero, desânimo, uma decepção enorme com algumas pessoas durante este processo.

Mas fica também um alento, um sentimento de amparo em alguns colegas de trabalho, companheiros nessa luta, que conheci melhor durante esse processo, nos aproximamos, começamos a trocar ideia, outros que tiveram os laços reforçados. Nos apoiamos uns nos outros, nos dias difíceis, trocando ideia, tentando encontrar uma solução conjunta, amenizar a situação dos mais frágeis e tentar não enlouquecer... A esses colegas um agradecimento gigante, um carinho imenso, fico muito feliz de estar com vocês, da gente ter se encontrado e se aproximado, se apoiado, mesmo que desse jeito torto, nessa situação horrível!

Obrigada por estarmos juntos e sobrevivendo a esse pesadelo que parece não ter fim…"

 

Rosa Rosa Gomes, trabalhadora da Cinemateca Brasileira

 

sambacb

Ato pelos trabalhadores da Cinemateca Brasileira, dia 26 de junho de 2020. Nesta fotografia, de longe, não estão todos aqueles que têm sido companheiros de jornada. Pessoal do Sindicato dos Radialistas de SP e ainda outros tantos colegas que não podem sair de suas casas e fazem o trabalho de organizar tudo e agitar das internet!

Forças companheiros!


Expediente

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