Ano 2 nº 44/2022: Memória operária - Símbolos e Insígnias do Processo Colonial - Clara Schuartz; Fernando Camargo

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Memória operária ...

 

SÍMBOLOS E INSÍGNIAS DO PROCESSO COLONIAL:

POR UM NOVO NAUFRÁGIO DA “CARAVELA DO DESCOBRIMENTO” EM CAMPINAS/SP

 

Clara Monteiro Schuartz

Graduanda em História – UNICAMP,  participa do Centro de Humanidades Digitais da Unicamp (CHD)

 

Fernando Monteiro Camargo

Doutorando em Ciências Sociais - UNICAMP, participa do Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas – Visurb, UNIFESP e do Laboratório de Estudos Socioantropológicos sobre Tecnologias da Vida – Labirinto, UNICAMP

 

Introdução

 

O debate sobre a memória nos espaços públicos e a revisão dos “monumentos históricos” e seus sentidos nas paisagens das cidades ganharam palco nos anos de 2020 e 2021 no Brasil. Em 24 de julho de 2021, por volta das 13h, uma estátua do bandeirante “Borba Gato” foi queimada por um grupo de manifestantes na Zona Sul da cidade de São Paulo. Esta não foi a primeira vez em que o monumento foi alvo de protestos. Em 2020, réplicas de crânios foram colocadas ao lado de vários monumentos de bandeirantes em São Paulo. Estas ações alimentam o debate sobre a memória do período colonial no Brasil que, apesar de sua indiscutível dimensão violenta e racista (genocídio, escravização de indígenas e negros, tráfico e estupro de mulheres indígenas…), ainda aparece eternizado por meio da “narrativa romantizada”, nas cidades brasileiras, da chegada dos portugueses ao Brasil em 1500.

Em 26 de julho de 2021, o prefeito da cidade de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), afirmou que a estátua do bandeirante será restaurada com custos pagos por um empresário que não teve sua identidade revelada. O monumento levou seis anos para ser construído e foi feito pelo artista Júlio Guerra, falecido em 2001, que utilizou trilhos de bonde e pedras coloridas de basalto e mármore para executar a obra. O monumento tem 13 metros de altura, pesa 20 toneladas e foi instalado sobre um pedestal revestido de granito rústico, de cerca de 2 metros de altura.

O objetivo deste texto é adicionar mais uma camada de reflexão crítica sobre as práticas colonizadoras no Brasil, oferecendo formas que deem visibilidade a outras histórias. São possibilidades de narrativas especulativas de vestígios, sobrevivências, que (r)existem, apesar de toda a violência e tentativa de apagamento. Tal como os vaga-lumes de Didi-Huberman (2011), essas histórias surgem e ressurgem como pontos luminosos entre as incertezas de um mundo que tem se revelado catastrófico diante do (des) governo brasileiro de Jair Bolsonaro, dos crimes socioambientais, do colapso climático, das epidemias (zika, dengue, febre amarela, covid-19) etc.

Se o fogo não foi suficiente para destruir por completo os monumentos que perpetuam a violência dos processos coloniais nas cidades brasileiras, como o fogo na estátua do Borba Gato e outras intervenções, sejam elas humanas e não humanas, podem se apresentar como (re)existências e transformações de processos violentos de construção de uma identidade nacional? Como subverter de forma crítica e reflexiva essas fontes históricas tão presentes nas cidades brasileiras?

 

Uma Caravela em Campinas

 

Os acontecimentos com as estátuas dos bandeirantes, na cidade de São Paulo, e a proximidade com o bicentenário da “Independência do Brasil”, a ser comemorado em 2022, levaram-nos a percorrer, atentamente, os espaços das cidades que habitamos[1] refletindo sobre essas presenças, de certa forma, fantasmagóricas. Campinas é uma cidade localizada no interior do Estado de São Paulo, a cerca de 70 km de distância da capital do estado, e possui uma estimativa de 1.204.000 habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ali, em um dos parques mais tradicionais da cidade, foi instalada uma grande embarcação. A Caravela, inaugurada em 1972, é uma réplica do barco Anunciação, uma das embarcações que foram comandadas por Pedro Álvares Cabral na chegada ao Brasil, em 1500. Financiada pelo governo brasileiro, após ficar pronta, a Caravela foi levada para o centro da Lagoa do Taquaral.

O barco é parte, portanto, da narrativa oficial da história do Brasil. Originalmente, o interior da Caravela abrigava um museu naval, com armas, documentos e outras peças da época da chegada dos portugueses ao Brasil. Até 1978, a embarcação permaneceu ancorada no centro da Lagoa. No entanto, uma mudança de gestão da prefeitura resolveu movimentar a embarcação até a margem da lagoa. Durante essa manobra, a caravela sofreu seu primeiro naufrágio. As peças e documentos da Marinha foram então devolvidas. Após um longo período de restauro, a embarcação foi reaberta à visitação em 1992. Nos anos 2000, em comemoração aos 500 anos de “descobrimento do Brasil”, a nau passou por pequenas reformas.

Em março de 2008, a réplica acabou afundando novamente, após fortes chuvas que atingiram a cidade de Campinas. Além do temporal atípico, outra causa noticiada para o naufrágio da réplica foi a falta de manutenção da prefeitura de Campinas, responsável pela embarcação. Em setembro de 2008, aquilo que havia sobrado da caravela foi retirado da água para a realização de um novo restauro. De acordo com o projeto de restauração, apresentado pela prefeitura, esse processo deveria ter durado um ano, no entanto, uma série de acontecimentos, envolvendo o sumiço do madeiramento que seria utilizado, fizeram com que a obra só fosse concluída em 2014. Durante o processo de restauro, os responsáveis pelo projeto decidiram que a embarcação deveria ser colocada fora da água, sobre um deque de madeira ao lado da lagoa, com o objetivo de evitar um novo naufrágio.

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A caravela na Lagoa do Taquaral nos faz refletir sobre dois períodos históricos centrais do Brasil: a chegada dos portugueses em solo brasileiro, em 1500, e a Ditadura Militar, que tem como marco de início o ano de 1964, mas tem como seu período mais duro os anos de 1968 a 1978 (conhecidos como “Anos de Chumbo”). Com sua construção iniciada em 1970, a Caravela tem como palco de seu surgimento o governo Emílio Garrastazu Médici, marcado não só pela violência e arbitrariedade do regime militar, mas pela mobilização de símbolos e insígnias da identidade nacional. Exemplos são os eventos da Copa do Mundo de Futebol de 1970 e as comemorações dos 150 anos da Independência do Brasil, em 1972. Tendo sua construção realizada em colaboração com o Museu da Marinha Nacional no Rio de Janeiro, a Caravela no Parque da Lagoa do Taquaral é um dos muitos monumentos criados durante o regime militar e que impõe no espaço urbano a memória do processo de colonização.

A violência do monumento, no entanto, não é a tônica da representação da nau de Pedro Álvares Cabral em Campinas. A Caravela interativa localiza-se em um dos cartões postais da cidade, o Parque Taquaral, espaço de grande circulação de pessoas diariamente. A embarcação permite a entrada constante de pessoas, que fotografam e exploram por dentro a réplica do símbolo da colonização. O monumento recebe constantemente excursões de estudantes de escolas públicas e privadas de Campinas. Diante disso, a narrativa da chegada dos portugueses ao Brasil como descobrimento impõe-se por meio do barco que, com um caráter quase lúdico, imprime a memória e a valorização de uma presença portuguesa. Mas convém olhar como um arqueólogo, tal como Didi-Huberman (2013), pois nessa estrutura lúdica, aparentemente neutra e ingênua, repousa uma desolação humana, todo o horror do genocídio provocado tanto pelo processo de colonização quanto pelos militares no período da ditadura. Repousa nesse monumento o sangue de incontáveis assassinatos.

Diante da Caravela, podemos não apenas retomar os eventos de chegada dos portugueses, mas problematizar histórias silenciadas nesse processo. Olhando de perto o casco da caravela, pintado de vermelho, uma gota de água chama a atenção de quem procura por fragmentos e vestígios de outras histórias. O olhar atento pode percorrer a estrutura da nau. Se o projeto colonial é não deixar rastros do extermínio de centenas de populações, olhar as gotas de perto pode nos levar a imaginar o inimaginável (DIDI-HUBERMAN, 2013). As gotas escorrem por todo o casco e pingam no chão formando pequenas poças ao redor da embarcação. As gotas são quase imperceptíveis, mas as tomamos como gotas-resistência, que aos poucos (re)destroem o trabalho de restauro realizado ali. Escorridas no casco, elas se apresentam como pontos de intersecção de diferentes temporalidades, como um personagem que (re)constrói as imagens dessa caravela. São vestígios da água do oceano por onde os portugueses navegavam, da água da lagoa onde originalmente estava a réplica, da água da chuva da noite anterior. São essas águas que insistem em provocar naufrágios do projeto de colonização do Brasil. Mais do que isso, porém, as gotas no casco vermelho são os vestígios do sangue derramado pelo projeto colonizador.

Seriam as gotas-imagens sobreviventes que permitem construir outras narrativas? As gotas são vestígios de outros tempos. Estar diante da gota é reunir tempo, gesto, permanência, experiência e história. As imagens das gotas são pedaços de memória, do presente e do desejo (futuro). Ela é ao mesmo tempo existência e resistência, tensão e caos. As gotas são vestígios do real, são memórias, temporalidades que estimulam nossas reflexões. E nesse sentido é preciso ver a Caravela como um território de sensibilidade, uma paisagem aberta, um terreno para embarcações, um lugar que tanto contém quanto se move. Mas, para isso, é preciso olhar para a Caravela como entidade simbólica que exige um especial tempo de dedicação. É necessário ver, debruçar-se sobre ela, olhar novamente, permitir-se experimentar a embarcação para saber algo e, a partir daí, construir um movimento de recolocar em relação e permitir a imaginação. Ao navegar pela gota ou pelo fogo da queima da estátua do Borba Gato, é possível perceber como esses elementos podem ganhar novos poderes ao se associarem a projetos de resistência, provocando novos modos de relação com a história do Brasil.

 

Considerações

 

O episódio da queima da estátua do Borba Gato em 2021, na cidade de São Paulo, retorna os olhares aos debates sobre memória histórica pontuados no artigo. O fogo evocou os fantasmas da estátua recolocando a memória da colonização nos espaços da cidade. Muitos se voltaram à reflexão sobre os porquês da presença deste tipo de monumento, às problemáticas que envolvem a exaltação deste tipo de narrativa e ao problema do discurso do descobrimento e do bandeirantismo como mitos fundadores do Brasil e do Estado de São Paulo. A Caravela do Taquaral insere-se como um desses monumentos representativos de uma visão específica sobre a identidade nacional e a história do Brasil: tornando lúdico e contemplativo o movimento de chegada dos portugueses ao Brasil, a instalação remonta a valorização da herança lusitana no País, aquela mesma que apagou e continua apagando as narrativas de outros povos que compõem a história brasileira, narrativa essa arduamente construída especialmente ao longo da Ditadura Militar de 1964. É fato que devemos repensar o lugar deste monumento na cidade de Campinas e refletirmos sobre as histórias silenciadas por este processo.

Nosso esforço nesse texto foi fazer uma reflexão sobre a presença desses “monumentos históricos” nas cidades brasileiras, a partir da estátua do Borba Gato, na cidade de São Paulo, e da Caravela do Descobrimento, na cidade de Campinas e de como eles provocam o apagamento de outras histórias. Com isso queremos propor, de forma crítica, a construção de outras relações para fazer rememorar histórias silenciadas. Para isso, é preciso insistirmos na perspectiva do naufrágio da Caravela, enquanto projeto de resistência e não de restauro aos processos violentos de colonização.

 

Sobre as imagens

 

As imagens da Caravela foram feitas por Fernando Monteiro Camargo, em 2014, em uma atividade de experimentação com imagens, no âmbito da disciplina “Antropologia e Imagem: questões para uma metodologia”, ministrada por Fabiana Bruno, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

 

Referências

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. Serrote, São Paulo, Instituto Moreira Salles, v. 13. p. 98-133, 2013.

 

[1]Apesar de Clara morar em São Paulo e Fernando morar em Piracicaba, ambos estudam na Unicamp. Somos, portanto, habitantes passageiros de Campinas.


Comitê de Redação: Adriana Marinho, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes , Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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