Ano 2 nº 46/2022: Mundo acadêmico - Um Breve Balanço sobre o Surgimento do Movimento Negro Unificado e Sua Radicalidade Anticapitalista - Willian Silva

boletim2-46


Mundo acadêmico ...

 

UM BREVE BALANÇO SOBRE O SURGIMENTO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO (MNU) E SUA RADICALIDADE ANTICAPITALISTA

 

Willian Marcos Antonio Silva

Graduando em História - USP

 

MNU

Imagem: Reprodução/Amarelo. Fonte: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/07/07/ha-43-anos-mnu-…

 

Para compreendermos melhor o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU) no final da década de 1970, necessitamos retroceder um pouco no tempo a fim de visualizar a conjuntura histórico-social que possibilitou a emergência desse importante movimento negro brasileiro com determinadas caraterísticas que lhes são pertinentes.

Seguindo o caminho dado por Lélia Gonzalez em uma das suas importantes obras, Lugar de Negro, o golpe de 1964 acarretou uma desarticulação das principais organizações negras naquele momento, que encampavam a luta contra o chamado “preconceito de cor”, gerando o que a autora chamava de “semiclandestinidade”[1] das lideranças. Nesse contexto, podemos mencionar personagens fundamentais do movimento negro, como o fundador do Teatro Negro Experimental (TEN), Abdias do Nascimento, que no período da ditadura-empresarial militar, mais especificamente após o AI-5, em 1968, foi perseguido e exiliado. Desse modo, o período compreendido entre o início da ditadura, até a criação do MNU, constitui-se como um momento de interregno das mobilizações de uma luta antirracista nos moldes das experiências de décadas anteriores[2]. Todavia, é importante ressaltar que já em meados da década de 1970, as iniciativas de discussão e organização no que toca à questão racial no Brasil começaram a tomar forma, refletidas pelas particularidades desse momento histórico.

Exemplos de organizações são: o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) em 1976; o Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan) fundado por Thereza Santos e Eduardo Oliveira Oliveira; os bailes Blacks no Rio de Janeiro no mesmo período; o Grupo Palmares (1971) que serão os primeiros no país a reivindicar a troca da data de comemoração do 13 de maio para 20 de Novembro;  o grupo Sociedade de Intercâmbio de Brasil-África (SINBA) de grande influência dos movimentos anticolonais em África e no marxismo; as escolas de Samba que romperiam com o discurso de uma democracia racial nos carnavais tais como a escola de Samba Quilombo (1975) fundada por Candeia, Wilson Moreira Neizinho e Mestre Darcy do Jongo; o bloco afro da Bahia Ilê Aiyê (1974); o Núcleo Negro Socialista, grupo esse surgido de uma corrente marxista de orientação trotkista chamada Convergência Socialista, que dentre outras coisas assumiram uma coluna chamada Afro-Latino América na revista Versus, essa coluna contou com contribuições de pessoas como Hamilton Cardoso e Neusa Perreira, quadros do Núcleo Negro que irão fundar posteriormente junto com outros integrantes o próprio MNU. É necessário também destacar que o MNU não veio a ser um rompimento das experiências antirracistas ocorridas no contexto do século XX no Brasil. Como muitos militantes do próprio movimento negro afirmam, era na verdade uma continuidade. Ademais, fundamentado na leitura de autores e autoras pesquisadores do MNU, eu me atreveria a acrescentar que, dentro do paradigma histórico do socialismo ainda patente na época, o antirracismo moldado na práxis do movimento era claramente anticapitalista.

Explicitado  os antecedentes da criação do MNU no contexto brasileiro, não podemos deixar de lado outras referências internacionais, que também contribuíram para a orientação política do significado do protesto negro para o movimento negro contemporâneo. Podemos elencar aqui, por exemplo, a luta por direitos civis nos EUA, no contexto da década de 1960, que levaria ao fim do regime de segregação racial (pelo menos do ponto de vista jurídico-formal) na terra “da liberdade”, encabeçado pelo pastor negro e de origem protestante, Martin Luther King. Outra referência essencial é a figura de Malcolm X e sua radicalidade no mesmo contexto de lutas pelos direitos civis em busca da emancipação da população negra estadunidense e dos povos do terceiro mundo[3]. Malcom X antagonizava com Luther King nos métodos para a construção desse processo emancipatório, seguindo a trilha que iria por “todos os meios necessários”. Ademais, no final da sua vida caminhava para uma luta anticapitalista com vistas a pôr fim ao racismo, fato que podemos conferir em um discurso de 1964, no Harlem, um ano antes de sua morte:

 

"Não sei. Mas eu sou flexível... Como foi declarado anteriormente, todos os países que estão emergindo hoje, quebrando as correntes do colonialismo, estão se voltando para o socialismo. Eu não acho por acaso. A maioria dos países que eram potências coloniais eram países capitalistas e o último baluarte do capitalismo hoje é a América. É impossível para uma pessoa branca acreditar no capitalismo e não acreditar no racismo. Não se pode ter capitalismo sem racismo."[4]

 

Ainda sobre as experiências estadunidenses, a organização negra de orientação marxista Black Panther Party (Partido dos Panteras Negras)[5] foi referência direta na criação do MNU, segundo o próprio Hamilton Cardoso[6]. Além disso, outras referências foram os movimentos socialistas e de luta anticolonial em África, sobretudo no que tange aos países africanos de língua portuguesa, com destaque para os seus principais líderes: Amílcar Cabral em Cabo Verde, Agostinho Neto em Angola ou Thomas Sankara em Burkina Faso.

Como já dito anteriormente, parte fundamental da formação do MNU partirá do Núcleo Negro da Convergência Socialista. Essa constatação é essencial, pois nos possibilita entender que tipo de luta antirracista se edificou dentro das proposições do MNU. Segundo Petrônio Domingues:

 

"Na concepção desses militantes, o capitalismo era o sistema que alimentava e se beneficiava do racismo; assim, só com a derrubada desse sistema e a consequente construção de uma sociedade igualitária era possível superar o racismo."[7]

 

A concepção de que a superação do racismo se constituiria na superação das estruturas do modo de produção que fundamentavam tal opressão, ou seja, a articulação entre a questão de raça e a questão de classe, foi sustentada por figuras como Milton Barbosa, Flávio Carrança, Vanderlei José Maria, e a própria Lélia Gonzalez, que mesmo não sendo marxista teve papel fundamental na criação do MNU. Além disso, outras figuras importantes da intelectualidade negra estiveram muito próximas do movimento negro, apesar de não terem se integrado oficialmente na militância do MNU, como foi o caso de Abdias do Nascimento e Clóvis Moura, cujos escritos serviram de  base para a formação da militância.

Essa conjuntura de reorganização dos movimentos negros no sentido da constituição de uma práxis negra, somados a todo um contexto de fortalecimento dos movimentos sociais e de contestação da ditatura militar, levou à criação do Movimento Unificado contra a Discriminação Racial (MUCDR) em uma reunião organizada no dia 18 de junho de 1978, por diversas entidades negras (CECAN, Grupo Afro-Latino América, Câmara do Comércio Afro-Brasileiro, Jornal Abertura, Jornal Capoeira e Grupo de Atletas e Grupo de Artistas Negros)[8]. Também foi decidido que a primeira atividade a ser organizada seria um ato público contra a discriminação racial sofrida por quatro jovens negros no clube de Regatas Tietê e pela morte de Robson Silveira da Luz, homem negro torturado e morto pela polícia de São Paulo do 44º distrito de Guaianases. O objetivo maior, contudo, era fazer uma denúncia mais ampla contra o racismo estrutural da sociedade brasileira, que se manifestava não somente na discriminação direta do preconceito racial, mas também nas marcas da superexploração da força de trabalho de negros e negras[9], bem como no processo de genocídio da população negra. O ato foi marcado para dia 7 de julho e ocorreu nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, onde contou com o apoio de diversas associações negras.

O ato em frente ao Teatro Municipal foi ratificado como marco fundador do MUCDR, que depois se tornaria só MNU. Sobre as diretrizes da carta de princípios, que lançou as bases que deveria nortear a práxis do movimento, podemos citar:

 

"[...] desmistificação da democracia racial brasileira; organização política da população negra; transformação do Movimento Negro em movimento de massas; formação de um amplo leque de alianças na luta contra o racismo e a exploração do trabalhador; organização para enfrentar a violência policial; organização nos sindicatos e partidos políticos; luta pela introdução da História da África e do Negro no Brasil nos currículos escolares, bem como a busca pelo apoio internacional contra o racismo no país."[10]

 

Milton Barbosa no ato fundante do MNU, em 7 de julho de 1978. (Foto: Jesus Carlos, via Memorial da Democracia)

 

A mobilização do movimento negro não se limitaria somente a uma luta local, como já bem explicitava a Carta Aberta à População, de 07 de julho de 1978: “POR UM MOVIMENTO UNIFICADO CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL, nos bairros, nas vilas, nas prisões nos terreiros de candomblé, nos terreiros de umbanda, nos locais de trabalho, nas escolas de samba, nas igrejas, em todo lugar onde o negro vive”[11]. Partindo de uma influência de organização leninista foi proposta a criação do que o MNU chamou de Centros de Luta “que promovam debate, informação, a conscientização e organização da comunidade negra, tornando-nos um movimento forte, ativo e combatente, levando o negro a participar em todos os setores da sociedade brasileira”.[12] É relevante mencionar que nesse contexto existia ainda a Lei de Segurança Nacional que, enquanto aparato de repressão ao inimigo interno da ditadura, via nas discussões sobre a questão racial no Brasil um ato de subversão, explícito no artigo 39: “incitar ao ódio ou à discriminação racial”. É evidente que no corpo da lei isso parece vago, mas nas pesquisas realizadas pela historiadora Karin Kössiling, mais especificamente em sua dissertação de mestrado As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP (1964-1983), fica muito claro que os órgãos de repressão se utilizavam dessa justificativa para investigar os diversos movimentos e militantes negros e negras — já que, dentre outras coisas, a presença desses movimentos, a sua produção intelectual, atos etc., romperiam com o discurso oficial da ditadura da democracia racial:

 

"Dessa forma, os movimentos negros eram entendidos como 'fatores adversos', ao impedir que a 'harmonia racial', um dos objetivos nacionais, fosse 'preservada'. A ação contestatória dos movimentos negros também poderia ser identificada como um ‘antagonismo'. Analisando o Movimento Nacional dos Blacks, a mobilização afro-brasileira em torno das idéias do black power ou poder negro dos movimentos negros nos EUA, a Polícia Federal afrimava que ‘Esses movimentos revelam o incremento das tentativas subversivas de exploração de antagonismos raciais em nosso País, merecendo uma observação acurada das infiltrações no Movimento ‘black’, tendo em vista que se por ventura houver incitação de ódio ou racismo entre o povo, caberá Lei de Segurança Nacional’”.[13]

 

Destarte, as características desse movimento histórico social nos leva a compreender o MNU não como um simples ponto cintilante de um desenvolvimento histórico fora da curva, mas sim como um acúmulo de expressões de uma luta antirracista que durante um período de interregno entra as décadas de 1960 e 1970 se amalgamou, e tomou forma nas escadas do Teatro Municipal em 7 de julho de 1978, a organização radical dos “maus cidadãos negros” que, como já falou Clóvis Moura, seriam aquele elemento “constestador ou descontente, que se insere nas diversas organizações ou grupos que procuram dinamizar a realidade social a fim de integrá-lo definitivamente no nível de cidadão”[14] que pautava uma luta por uma “nova sociedade onde todos realmente participem”[15] .

 

Bibliografia

DOMINGUES, P. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, v. 12, n. 23, 2007.

GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo. Lugar de negro. Vol. 3. Editora Marco Zero, 1982.

KÖSSLING, Karin Sant' Anna. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP (1964-1983). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

MANOEL, Jones & LANDI, Gabriel. Raça, Classe e Revolução: a Luta pelo Poder Popular nos Estados Unidos. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. 

MOURA, Clóvis. O Negro: de Bom Escravo a Mau Cidadão? São Paulo: Dandara Editora, 2021.

NOGUEIRA, Fabio; RIOS, Flavia Matheus. Consciência Negra e Socialismo: mobilização racial e redes socialistas na trajetória de Hamilton Cardoso (1954-1999). São Carlos: Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 4, n. 2, 2014.

PERREIRA, Amilcar Araujo. Mundo Negro Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2013.

X, Malcolm. Há uma Revolução Mundial em Andamento: Discursos políticos do Malcolm X. São Paulo: Editora Lavra Palavra, 2020.

[1]GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo. Lugar de negro. Vol. 3. Editora Marco Zero, 1982.

[2]A respeito desses momentos anteriores podemos citar aqui o artigo do professor Petrônio Domingues sobre alguns apontamentos sobre os movimentos negros: DOMINGUES, P. “Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos”. Tempo, v. 12, n. 23, 2007, p. 100-122.

[3]X, Malcolm. Há uma Revolução Mundial em Andamento: Discursos políticos do Malcolm X. São Paulo: Editora Lavra Palavra, 2020.

[4]Ibid., p.20-21.

[5]É relevante mencionar que há um debate em aberto sobre a orientação que seguiu o marxismo dos Panteras Negras. Por um lado, se reivindica que o Black Panthers Party era de fato uma organização aos moldes do leninismo, ao passo que outros defendem uma maior aproximação ao maoísmo (o que em si não me parece ser um antagonismo). Para mais informações sobre esse debate: MANOEL, Jones & LANDI, Gabriel. Raça, Classe e Revolução: a Luta pelo Poder Popular nos Estados Unidos. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. 

[6]NOGUEIRA, Fabio; RIOS, Flavia Matheus. Consciência Negra e Socialismo: mobilização racial e redes socialistas na trajetória de Hamilton Cardoso (1954-1999). São Carlos: Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar, v. 4, n. 2, 2014, p. 507.

[7]DOMINGUES, P. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, v. 12, n. 23, 2007, p. 100-122.

[8]Ibid, p. 100-122.

[9]“Como já foi dito, o arrocho salarial, imposto como uma das condições de desenvolvimento do país resultou na queda do nível de vida da grande massa trabalhadora (basta lembrar que em 1976 cerca de 80% da força de trabalho era constituída por trabalhadores manuais, rurais e urbanos). Se em 1960 a população pobre participava da renda nacional numa faixa de 18%, em 76 essa percentagem havia caído para 11%. Por outro lado, se em 1960 a participação do negro na força de trabalho não era das mais significativas, em 76 ela atinge a faixa dos 40%. Por aí se vê que esse aumento de participação no mercado de trabalho não significou uma melhoria no nível de vida para o conjunto da população negra”. GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo, op. cit., p. 14-15.

[10] DOMINGUES, P., op. cit., p. 113.

[11] Carta Aberta a População - Lida nas escadarias do Teatro Municipal SP (07/07/1978) apud, GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo. Lugar de negro. Vol. 3. Editora Marco Zero, 1982. 1982 p.50.

[12]Carta Aberta a População - Lida nas escadarias do Teatro Municipal SP (07/07/1978) apud, GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo. Lugar de negro. Vol. 3. Editora Marco Zero, 1982. 1982 p.50.

[13]KÖSSLING, Karin Sant' Anna. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob vigilância do DEOPS/SP (1964-1983). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 43.

[14]MOURA, Clóvis. O Negro: de Bom Escravo a Mau Cidadão?. São Paulo: Dandara Editora, 2021. p. 36.

[15]GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos Alfredo, op. cit.



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