Mundo acadêmico...
O LIVRO A SERVIÇO DA HISTÓRIA:
ECONOMIA DA CULTURA E ESTRUTURA INTELECTUAL
(notas para uma pesquisa)
Lincoln Secco
Professora do Departamento de História – USP
Fonte: desconhecida
O que é um livro? Uma reunião de signos dentro de um conjunto de folhas dobradas. Esta e outras centenas de definições seriam insuficientes. Ela mesma nos remete à passagem do volumen (o rolo que suportava os escritos dos antigos) ao códice, um formato que revolucionou a cultura nos primeiros séculos da cristandade[1]. Mas um conjunto de livros pode ser encarado antes de tudo como uma imensa coleção de mercadorias. Ele pode ser tão mistificado quanto qualquer outro objeto mercantil. Separado do produtor, ele pode reaparecer como se existisse por conta própria, iludindo os seus leitores[2].
Marx tratou do ingresso do escritor na engrenagem do processo de acumulação de capital ao considerá-lo um trabalhador produtivo submetido a uma empresa editorial. Mas ressalvou que a natureza artesanal da confecção das obras impedia que aquele trabalho fosse submetido realmente ao capital e que a escrita pudesse ser “rotinizada” como as operações de supervisão de uma máquina na grande indústria.
No entanto, no século XIX a pena de alguns escritores, como já o demonstrara Balzac em suas Ilusões Perdidas, se tornara venal e a padronização dos serviços literários foi feita mediante grandes tiragens no século XX. Eugene Sue produzia suas obras atendendo às demandas imediatas do mercado. Faltava um passo para a formação de equipes de redatores. O processo de criação não podia ser parcelado, como os alfinetes de Adam Smith, somente os suportes. Mas a velocidade da reprodução técnica e o tamanho das tiragens alteraram o processo da escrita.
No que se refere à revolução dos suportes do texto, Marx sugeriu que era possível tratar da circulação de livros do ponto de vista da valorização do capital, sem descurar de sua função ideológica. Ele citava o exemplo dos compêndios de Direito Penal, os quais só podiam ter funções vinculadas às necessidades de legitimação da sociedade burguesa. Como questionasse a necessidade social do Direito, ele afirmou: “O fato é que estes trabalhadores verdadeiramente são produtivos na medida em que aumentam o capital de seu patrão; improdutivos no que concerne ao resultado material do seu trabalho”[3].
Vamos deixar de lado as opiniões negativas de Marx sobre o Direito e ignorar o conteúdo dos textos. Se eles satisfazem uma necessidade do momento, têm valor de uso. Se são comprados e vendidos assumem a forma mercantil. O trabalho produtivo já havia sido definido por Adam Smith como aquele “que acrescenta algo ao valor do objeto sobre o qual é aplicado (...), pelo fato de produzir um valor”[4].
É produtivo o trabalho que gera mais valia e está, portanto, subordinado ao capital produtivo e não ao capital comercial, pois o tempo de compra e venda não cria valor. Isso não quer dizer que não haja lucro no comércio.
Marx considera, na primeira seção do volume II de O Capital, todo o trabalho produtivo como aquele que se subsume formalmente à esfera do capital produtivo e é organizado de modo especificamente capitalista. Esta definição não diz respeito ao conteúdo produzido mas às funções reais de produção, seja na fase de produção do capital seja nos momentos de prolongamento dessas funções na circulação (custos de conservação e transporte). Tanto faz se a mercadoria é material ou imaterial[5].
Não se trata aqui da noção de economia da cultura restrita aos impactos econômicos do ramo livreiro. A História pode mensurar os dados contidos em sucessivas edições do Anuário editorial brasileiro, v.gr., para, em seguida, reconstituir a totalidade da cultura do livro num dado período, incluindo seus valores simbólicos intrínsecos[6].
A abordagem inicial parte da circulação como ponto de articulação dessas duas esferas inseparáveis do capital: produção e consumo. Quando o editor consegue aferir a curva de lucratividade dos livros, os historiadores investigam que tipo de necessidades sociais aquelas obras satisfazem e como elas auxiliam na reprodução social. A história quantitativa se combina à avaliação da recepção do texto por um público e do seu significado cultural.
O estudo de uma corrente de pensamento interessa mais se ela teve alguma efetividade mensurável na vida social. Cum grano salis, é verdade. O número de edições do Manifesto Comunista na Rússia antes de 1917 ou da Bíblia no período clássico do imperialismo são índices (na terminologia da linguística): indicam, sugerem, corroboram parcialmente, mas isoladamente não são números definidores de uma transformação cultural. Neste caso, a tiragem deve estar a serviço da História[7]…
Economia da Cultura
A cultura do livro, como outras, não se define apenas como um conjunto de valores, preferências, hábitos, sentimentos e ideias compartilhadas. Há uma organicidade e reciprocidade da economia e da cultura que as torna inseparáveis, exceto para fins analíticos. A economia da cultura, para o historiador, não se confunde apenas com a economia em geral. A cultura possui sua própria (infra) estrutura intelectual[8].
As instituições vinculam-se às ideias que as constituem, e essa é a leitura marxista acerca da materialidade das ideologias. Não há forma sem conteúdo e vice-versa. Podemos tratar da história de uma editora enquanto uma empresa. Mas convenhamos que, dificilmente, a economia do livro terá algum significado relevante para o PIB de um país[9]. O cinema também é uma indústria desse tipo e sua história precisa ser avaliada do ponto de vista interno, da arte cinematográfica em si, mas também como parte de um modo de produção. Trata-se de uma indústria que existe em função do mercado consumidor que ela mesma criou.
Há uma economia do cinema. No passado, isso envolveu desde a contabilidade do capital fixo e circulante, número de salas de exibição, financiamento, tipos de filmes mais assistidos, nichos de mercado, vanguardas artísticas etc. Existem meios de produção. A história empresarial, nesse caso, é indissociável da superestrutura ideológica e esta, por sua vez, tem uma existência material nos rituais de ir a determinado local, ver de determinada forma, sujeitar-se a um ritmo, sentar-se num lugar, reconhecer-se naquele lugar ou ângulo. Tanto quanto o formato poche do livro se combinou à literatura leve para mulheres trabalhadoras no transporte público[10].
As ideologias existem materialmente[11] e não somente como ideias. Uma história da cultura que seja só a de autores, escolas, estilos etc é idealista. É preciso fazer uma história da existência material das ideologias: estrutura e superestrutura.
Essa forma de estudo tem raízes no próprio pensamento social brasileiro. No Sistema Literário de Antonio Candido que permite a passagem de manifestações literárias individuais e ocasionais para uma situação em que escritores, leitores e meios de difusão integram-se; nas discussões sobre forma literária e estrutura social (Schwarz, Bosi); na forma de desarticulação entre o setor principal da produção colonial e o mercado interno, segundo Caio Prado Junior.
Assim como a produção principal era interna e o mercado era externo, o consumo de ideias por parte das elites coloniais era interno, mas a produção daquelas ideias era externa, excetuadas as culturas de resistência dos dominados[12]. Se a produção não estava voltada para dentro, na colônia existiu um modo de produção sem superestrutura (sem imprensa, sem escolas ou universidades, sem ideologia nacional), o que não quer dizer que não tenham existido manifestações críticas ocasionais. Só há uma infraestrutura intelectual no século XIX.
Igualmente o ilhamento cultural do qual falava Viana Moog e que Alfredo Bosi citava, exprimia a desarticulação territorial e a orientação da produção para o litoral e ao exterior. Não havia, portanto, possibilidade de uma superestrutura articulada nacionalmente. O avanço de atividades produtivas vocacionadas ao mercado interno faz brechas naquele organismo social. O inorgânico é o nacional em potencial. Não será acaso o primeiro partido político nacional do país ser o Partido Comunista do Brasil (PCB).
Houve uma correspondência de movimentos de ideias com o exterior, houve ora autêntica tradução, ora cópia. Mas sempre com defasagem técnica. O fenômeno editorial tinha um obstáculo em seu interior, pois era uma infraestrutura intelectual numa economia agro exportadora, sem urbanidade.
O subdesenvolvimento reposto e permanente é cultural. A dependência econômica se traduz em pensamento cosmopolita, mas o pensamento local contribui para a afirmação de elementos nacionais econômicos através da ação pública, daí a necessidade de impedi-lo pela ausência de meios ou pela força da censura, jamais pelo debate de projetos alternativos, carente que é a burguesia de consciência nacional.
A questão não é só a materialidade da superestrutura, já que conferir primazia ontológica à ideia ou à matéria não muda a natureza idealista da abordagem. O questionamento ao determinismo não pode perder de vista que há uma base cuja imagem se cristaliza e adquire a concretude dos fatos sociais. Todavia, a base é relacional. Logo, constitui não um conjunto de sentimentos ou de ligações interpessoais. Para que sentimentos e pensamentos compartilhados sejam mais do que uma extravagância, é necessário que se materializem em práticas, lutas, rituais e que existam materialmente, como jornais, revistas de um certo grupo, livros, imagens etc.
Nessa infraestrutura intelectual as relações de produção cultural correspondem aos meios de produção (técnicas, instrumentos do trabalho espiritual e força de trabalho intelectual cuja matéria-prima são ideias, práticas culturais, mores etc). Tais relações se exprimem como hegemonia e domínio cultural. Assim, a hegemonia é relacional, mas tem como último recurso o domínio que pode ser exercido pelo controle da propriedade dos media, pela censura, publicidade, campanhas e outros meios coercitivos do campo superestrutural, onde supostamente só há direção por consenso.
O livro é parte da estrutura ou da superestrutura? Como Marx argumentou em sua crítica a Proudhon (vide a “Carta a Annenkov”)[13], os seres humanos como conjunto produzem simultaneamente os objetos e as ideias que os acompanham. O pensamento analítico separa o que está organicamente ligado.
A História apreende o objeto livro enquanto uma contradição. O livro é uma unidade de contrários. Sua produção depende dos avanços da técnica. As ideias que carrega, por outro lado, não têm uma história em si mesma. Rigorosamente, não há história das ideias[14] e é por isso que a História do marxismo deve ser antes de tudo a do livro marxista, dos seus movimentos, das suas revoluções, dos seus partidos, sindicatos etc e não apenas a dos autores e seus pensamentos. É evidente que uma análise das ideias constantes nos livros é essencial, mas para o historiador somente em conjunto com as formas de leitura, o público leitor, as maneiras de difusão etc.
A organização ideológica das classes sociais é material. Nos limites de uma dada estrutura social e econômica os grupos sociais lutam pelo poder e criam a concepção de mundo adequada aos seus interesses. A vitória e a manutenção do poder dependem da difusão da ideologia. E esta difusão, por sua vez, de instrumentos materiais (seja a tipografia, o rádio ou a informática). Dependem, em suma, dum suporte material no interior da superestrutura e que pode ser contabilizado, como dizia Gramsci.
A História do livro também encontra em seu objeto a contradição clássica entre desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção. No âmbito da circulação do livro, o avanço dos conteúdos desfaz os obstáculos à sua difusão mediante as mudanças de suporte. Assim, a variedade de concepções religiosas e a crítica racional das escrituras sagradas, necessárias ao desenvolvimento do próprio Estado Nacional e do capitalismo mercantil, encontraram na invenção da imprensa sua possibilidade de desenvolvimento.
O impresso foi a forma em que a contradição entre o monopólio do escrito pela Igreja e difusão das obras em língua vulgar, destinadas a um público que viria a ler (ou ouvir) nela e não em latim, foi resolvida. Mas a imprensa não se resume a uma nova técnica e implica uma organização empresarial da cadeia do livro.
No século XIX, a emergência do romance burguês numa sociedade ainda aristocrática gerou uma nova contradição. Lukács observou que naquele gênero, um herói solitário luta contra a sociedade, ao contrário do herói épico que espelha os valores de uma comunidade. No entanto, o personagem burguês busca valores que já foram corrompidos e degradados. Por isso Marx afirmou numa famosa nota de rodapé de O Capital que “Dom Quixote já pagou pelo erro de presumir que a Cavalaria Andante seria igualmente compatível com todas as formas econômicas da sociedade”[15].
A identidade entre herói e a comunidade típica do gênero épico desapareceu. O próprio consumo do livro impresso é solitário e exige uma nova revolução da imprensa. A resolução da contradição entre produção limitada e consumo disseminado nos lares burgueses se deu pelo advento das grandes tiragens, novos espaços de venda e leitura e pelo formato in octavo e mais tarde in-16, mais práticos para a leitura nos trens, ruas e cafés.
O mesmo se pode dizer da indústria do filme (fotogramas), do cinema. É preciso estudar a relação entre dimensão técnica (passagem ao digital) etc e a representação. A fotografia e o cinema são casos em que uma determinada arte se desenvolveu em função do avanço da técnica. No entanto, a relação não é imediata porque os instrumentos utilizados têm uma dupla fenomenologia, como diria Gramsci: são estrutura e superestrutura. Assim, a fotografia, processo que dependeu de muitos “inventores” ao longo do tempo, gerou a arte de fotografar, mas esta criou necessidades artísticas e também de consumo que condicionaram o desenvolvimento da fotografia. O daguerreótipo, por exemplo, pode ter inspirado pintores impressionistas.
A estrutura não é material no sentido do materialismo francês anterior a Marx. As relações sociais são tão materiais quanto os meios de produção. Por outro lado, um laboratório científico constitui uma “estrutura especial” (Gramsci) que é criada pelo pensamento científico. As classes sociais também criam essas estruturas especiais para a difusão de sua concepção de mundo. Mas esses instrumentos não se confundem com a estrutura geral da sociedade. A música e o cinema, por exemplo, são superestruturas onde artistas e técnicos criam novos instrumentos musicais ou de filmagem. Por isso, na sequência de Gramsci temos: estrutura social - superestrutura - estrutura material da superestrutura (a infraestrutura intelectual)[16].
Superestrutura Espiritual
De diferentes maneiras, os autores marxistas ofereceram os princípios para uma análise do livro como fenômeno reprodutível em escala industrial. Ernst Mandel revelou a evolução dos desejos e as formas desenvolvidas pela indústria editorial para atendê-los em diferentes conjunturas da história dos séculos XIX e XX. Todavia, ele não empreendeu uma leitura do fenômeno total, abarcando apenas o lado da demanda. No entanto, ao tratar do romance policial como fenômeno social e não literário, ele conseguiu evitar a História tradicional da literatura (que é diversa de uma História do livro) e as explicações psicológicas para as mudanças na história do gênero policial. Este existe na modernidade capitalista porque responde dentro do horizonte burguês (e só aparentemente contra ele), a uma necessidade de semi-emancipação e semi-sublimação, o que sugere que a emancipação plena está interditada.
A natureza bem sucedida do gênero não está no reflexo dos interesses burgueses, mas na capacidade de criticá-los sem extrapolar os limites estruturais do capital. Funcionar como eletrodo negativo é vital para que o circuito se feche e não deixe verdadeiras saídas, apenas fugas ilusórias que, ao cabo, permitem a reconciliação com o mundo burguês.
Se o romance é burguês, a literatura policial é burguesa par excellence[17]. Mesmo aquela feita por autores “menores”. Todavia, isso não significa que os conteúdos não possam ter elementos críticos. O romance policial sueco teve um exemplo na trilogia Millenium (Stieg Larsson) escrita em defesa do feminismo e com personagens que oscilam entre a esquerda moderada e a extrema esquerda anarquista[18]. Ele teve um antecedente mais ortodoxo no jornalista comunista Per Wahlöo (1926-1975) e na escritora Maj Sjöwall (1935-). O primeiro romance deles foi Roseanna (1965), com a temática da violência contra a mulher. Ainda nas edições atuais (ao menos na Europa e Estados Unidos, a pequena biografia dos autores inclui necessariamente a informação: “They were both committed marxists” [Eles eram ambos marxistas comprometidos]. Mas tais elementos, embora educativos para um meio como o da literatura comercial, eram suficientes para modificar o significado formal e a função social do romance policial?
Vários dos autores menores venderam muito mais livros do que vanguardistas que inscreveram seus nomes no cânone acadêmico, como prova o caso de Feuillet, na França, ou de Humberto de Campos, no Brasil, para não falar de outros mais recentes. Muitos autores copiosos integram aquilo que os alemães chamaram de Trivialliteratur e que implica escrita mecânica[19] e enredo decidido em pesquisas de mercado, de tal sorte que a autoria quase se torna uma marca.
Tal literatura importa ao historiador do livro. Klaus Inderthal chamou aquele tipo de obra de “literatura irrefletida”. Argumentou que ela visa sobrepujar a monotonia de uma vida padronizada burguesa “através de uma inofensiva (posto que vicária) reintrodução da aventura e do drama na vida cotidiana”[20]. É uma literatura em que o herói encarna os valores da classe média, entre o submundo das ruas e as altas rodas dos mercados financeiros e suas taras e crimes sexuais. Isso nos lembra a experiência do protagonista do Romance de sonho de Arthur Schnitzler.
Quando Dom Quixote enlouqueceu com suas leituras ainda não havia hospícios e ele podia conviver em sociedade. Mas depois, foi preciso que as aventuras fossem previsíveis, controladas ou punidas. Assim, Madame Bovary reencontra nos seus adultérios a mesma rotina do seu casamento. Dom Casmurro retoma o argumento de Otelo, mas aqui a solução foi trágica enquanto Bentinho e Capitu têm a solução mais burguesa possível: desfazem um contrato. Por isso, a ascensão do romance entronizou um estilo serieuse, nem trágico e nem cômico[21].
A História do livro pode associar conteúdos e cultura de dada época. Mas deve, depois, recorrer ao estudo do circuito de valorização do capital editorial para ressignificar o objeto cultural. O Marquês de Sade, antes proibido e feito em edições descuidadas e sem mediação editorial explícita, integrou a prestigiosa coleção Pléiade e fez-se um clássico francês tanto quanto outro iconoclasta: Rimbaud. A Sociedade do Espetáculo, assim como o seu autor, gozou de uma aura revolucionária e anti mercantil nos anos pós 1968. Mas depois, Debord preferiu negociar seus direitos autorais com uma editora prestigiosa: a Gallimard[22], cujo editor era o mesmo que tornara Sade um clássico.
Toda obra pour épater le bourgeois só abala a moral vigente na primeira vez. Na segunda, ela é absorvida e seus autores são expostos nas galerias de arte. De tal sorte que o capital rompe continuamente suas próprias normas, mas dentro da forma mercadoria. Toda a violação inofensiva da padronização da vida só é realizada por um produto padronizado.
O marxismo como mercadoria
Mas nem só os conteúdos “populares” servem à reprodução social. Não poderia o próprio marxismo se tornar (num nível bem mais elementar, é verdade) um objeto cultural valorizado e mercantilizado?
Neste caso, o que chamaríamos de “marxismo” seria uma mercadoria com este conteúdo, com este nome e tão legítima quanto a leitura de O Capital num grupo de pessoas preparando suas carreiras. Mas este livro, O Capital, seria, parafraseando fora de contexto o jovem Gramsci, o dos burgueses.
Quando Marx estabeleceu os circuitos de recepção ativa da literatura socialista, ele mostrou como os alemães incorporaram a literatura revolucionária francesa: pela “tradução”. Mas a tradução era feita como um palimpsesto. A filosofia alemã se reescrevia por cima do original francês e fragilizava aquelas obras políticas que eram revolucionárias porque correspondiam às exigências sociais e econômicas francesas. O verbo escrever ou traduzir não tinha ali o significado denotativo. Os “alemães” traduziam quando liam. Marx criticava assim o “Socialismo verdadeiro ou alemão” no Manifesto Comunista e mostrava como as obras importadas eram “reescritas” na tradução para o mercado importador.
O problema não está, de novo, no conteúdo apenas e sim em apreendê-lo como parte do processo de reprodução social. Segundo Jameson, como “objeto cultural, o marxismo se volta contra a atividade cultural em geral para desvalorizá-la e por a nu os privilégios de classe e o ócio que ela pressupõe para seu deleite. Desse modo, o marxismo se destrói como mercadoria espiritual e interrompe o processo de consumo cultural no qual, no contexto ocidental, veio a se engajar”[23]. Ou como pensavam Marx e Engels, o comunismo não é um ideal; portanto, não é um pensamento exterior ao mundo e que o julga a partir de uma posição extrínseca. Ele é um movimento real que se auto conhece. Por isso, o marxismo não pode se apresentar senão despindo-se de sua ganga mística e revelando atrás de si as origens sociais de sua produção. A autoconsciência do movimento é possível porque não se trata de mero reflexo invertido da realidade, ou não haveria nela mesma nenhum critério para distinguir o que é conhecimento e o que é ideologia[24]. Para a História do livro, isso mostra que a materialidade dessa mercadoria, tão vinculada à produção ideológica, está sempre imersa em relações sociais. Por isso a abordagem marxista não a apreende como uma matéria tout court[25]. O livro é, antes de tudo, uma relação social que envolve autores, o Direito, o público, os editores e todo o contexto social e político.
Uma obra não se completa sem a leitura. Sem um conteúdo radical, qualquer mediação editorial e qualquer contexto político não bastam para engajar uma obra em ações radicais. Todavia, a forma não é simples fôrma. Ela significa. A simples leitura de um livro altera o seu conteúdo[26], embora as letras no papel impresso continuem as mesmas. É que sua entrada neste ou naquele circuito, sua leitura coletiva ou individual, sua comercialização e os espaços em que circula nunca são indiferentes.
Isso não está em contradição com a “eternidade” da obra. Antes, a corrobora. Marx argumentou que certas épocas artísticas não estão relacionadas com a “ossatura” da sociedade. A literatura grega dependia da mitologia, um tipo de explicação que molda fantasticamente a sociedade na imaginação[27]. Ésquilo só foi possível porque a sociedade em que produziu não tinha um modo de produção avançado. Aquelas condições “imaturas” é que permitiram um modelo de arte inalcançável hoje. Independentemente da sua gênese, uma obra pode ter validade universal. No entanto, Homero não é mais predominantemente escutado publicamente ou lido num volumen. Essa mudança de suporte está ligada a outras transformações sociais.
Objetivos de uma abordagem dialética do livro
A história da produção cultural no campo do livro visa responder inúmeras questões: quais as características do público leitor? Quais são as relações entre escritores, tradutores e editores? Como as práticas de leitura incidem na produção literária? Como a letra impressa afeta as práticas de leitura? Qual o custo do livro em termos relativos? Como determinados momentos históricos se manifestaram no campo do livro?[28]
A história marxista do livro não difere muito daquela de outros impressos, mas há que se refletir sobre as funções diversas deles. O jornal é um aparador de choques do cotidiano, introduzido originalmente em muitos casos para reportar notícias da indústria. Sua leitura é efêmera e a disposição das matérias pode neutralizar qualquer reflexão (algo semelhante, em escala maior, acontece com as notícias na TV e internet). O livro é uma reflexão continuada e sua leitura é demorada. Ainda que haja livros curtos de ocasião sobre assuntos explosivos e jornais com encartes de teoria. O jornal visa estabilizar o leitor diante de uma multidão de fatos contraditórios e inexplicáveis.
Ao lermos um livro somos tão modificados pelo seu conteúdo quanto também o mudamos à revelia da vontade do autor. A produção do texto, impressão, distribuição e consumo só existem como atividades autônomas em primeira análise. A cultura que os envolve constitui a totalidade. O mistério da leitura se revela na forma: um conjunto de signos impressos que compõem um sentido que apenas se realiza pela circulação e prática da leitura. E, no capitalismo, também pela sua circulação mercantil.
Conclusão
Os “funcionários” da infraestrutura intelectual são os intelectuais orgânicos. Um editor pode não escrever nenhum livro, mas é um organizador da cultura, além de proprietário e/ou dirigente de uma empresa. Um escritor pode escrever uma obra clássica, mas será um intelectual tradicional se não operar também naquela infraestrutura que dá corpo às ideias.
Como vimos, não há fronteira definida entre estrutura “econômica” e superestrutura. Gramsci recusa a “imagem de uma base sobre a qual se eleva uma construção, pela qual, faltando a primeira, necessariamente se derruba a segunda”[29]. O Dictionnaire du Marxisme, organizado por Georges Labica, indaga no seu verbete sobre superstructure: pode existir uma base sem ideologia e vice-versa? Ninguém nunca viu uma economia sem sociedade. Portanto, base e superestrutura são conceitos relacionais.
Na análise da relação entre superestrutura e base corre-se sempre o risco, para Gramsci, de substituir a primazia da Ideia na exposição da história pela das forças produtivas e, assim, recriar-se uma nova forma de idealismo: o economicismo. A separação operada por Marx (segundo a metáfora arquitetônica de base e superestrutura) é metodológica e não empírica, pois não há economia sem sociedade e nem uma separação mecânica entre infraestrutura e superestrutura. Para Gramsci, “as forças materiais não seriam concebíveis historicamente sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais, sem as forças materiais”.
A estrutura econômica é um conjunto de relações de força que se projeta na sociedade civil e no próprio Estado. Muitos gramscianos se utilizaram da categoria bloco histórico como unidade (sempre provisória) de estrutura e superestrutura. Contudo, as recentes leituras filológicas tentaram desautorizar o conceito e buscaram corrigir tanto o “desnível ontológico” entre estrutura e superestrutura, quanto a unidade entre ambas no bloco histórico[30].
De fato, a política não é mera superestrutura, pois são políticas as relações de produção. Em Marx, a relação entre a forma do Estado e a da exploração econômica já existia. E mesmo Clausewitz estabeleceu uma correspondência da guerra com as relações de comércio. Comprar e vender é um ato que supõe a força mediada pelo dinheiro.
A hegemonia é uma relação de forças, mas de forças desiguais (sem isso, não haveria nem direção intelectual e moral e nem coerção policial e militar). Portanto, isso não implica dilui-la numa “luta entre hegemonias”. A expressão teórica disso é o salto analítico sobre um passo fundamental da apreensão do objeto que é a identificação da superestrutura em sua autonomia e ao mesmo tempo em suas determinações e limites. Sem isso, abre-se espaço para que todas as opressões espalhadas pela sociedade se igualem à coerção econômica e militar que garantem, em última instância, a ordem existente. Essa leitura pode ser correta ou não, apenas não é a de Marx.
Exatamente porque as relações de produção são forças em oposição é que existe uma dominação: o despotismo de fábrica. Ali nasce a hegemonia. Há um grupo que comanda a produção. Há, portanto, uma direção posta na sociedade civil e no interior dela relações de força variáveis ao longo do tempo. Por isso, a hegemonia é processual e ora tem predomínio da força, ora do consenso. A própria coerção tem algum consentimento, assim como o consenso exerce pressão sobre os que discordam.
A classe dominante detém os meios materiais da difusão da ideologia dominante. Ou seja, ela comanda o processo produtivo e predomina na estrutura intelectual ou cultural da sociedade, a qual é material. A classe trabalhadora não tem os mesmos recursos para disputar hegemonia ou estabelecer outra hegemonia[31]. Ela terá que avançar no terreno da produção da vida material, modificando as relações de produção; criar meios materiais de difusão cultural e, por fim, tornar-se majoritária nos aparelhos repressivos.
A produção artística também envolve relações de produção, meios materiais de difusão e uma superestrutura ideológica. Além disso, um livro pode sintetizar todo um processo histórico. Pode ser uma revolução ou uma reação subterrânea das classes dominantes. A História registra seu alcance por via da análise interna e do alcance crítico da obra[32]. Leva em conta seu valor estético e os meios materiais que permitem o acesso a ela. O alcance pode mesmo ser avaliado pela dificuldade, pela proibição, pelo incômodo.
[1] Faria, Maria e Pericão, Maria. Dicionário do livro. São Paulo: Edusp, 2008, pp. 730 e 171.
[2] Embora eu tenha tratado dos livros mais como amador (no duplo sentido da palavra) do que enquanto especialista, tive oportunidade de me dedicar ao tema num artigo sobre Gramsci (Secco, L. “Biblioteca gramsciana: os livros da prisão de Antonio Gramsci”, Revista de História, n. 150, Universidade de São Paulo, 2004). Já as anotações aqui apresentadas, não visam ser um guia metodológico. Elas derivam de uma pesquisa empírica e foi para responder às demandas impostas pelo tratamento da documentação primária que elaborei algumas reflexões que acabaram não integrando meu livro sobre o assunto: Secco, L. A batalha dos livros: formação da esquerda no Brasil. São Paulo: Ateliê editorial, 2017.
[3] Marx, K. Teorias da Mais Valia. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, V. I, p. 214.
[4] Smith, A. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, I, p. 252.
[5]Vide https://gmarx.fflch.usp.br/sites/gmarx.fflch.usp.br/files/inline-files/LINCOLN-SECCO_Trabalho%20Produtivo%202020.pdf
[6] Vide Valiati, Leandro. “Introdução à Economia - uma abordagem prática”, in: Reis, Ana Carla Fonseca e de Marco, Kátia (organizadoras). Economia da cultura: ideias e vivências. Rio de Janeiro: Publit, 2009.
[7] A expressão, assim como o título, inspirados em Febvre, Lucien e Martin, Henri-Jean. O Aparecimento do Livro. Apresentação de Marisa Midori Deaecto. São Paulo: Edusp. 2019.
[8] Trata-se da infraestrutura imediata, intelectual. A infraestrutura dentro da própria superestrutura, conforme a defini a partir das observações de Gramsci acerca do prefácio à Contribuição para a crítica da economia política, de Marx. Vide: Secco, L. A batalha dos livros, cit., introdução.
[9] Decerto, há no século XXI conglomerados midiáticos através dos quais o livro tem um espaço relevante. O desenvolvimento editorial da França até 1914, por exemplo, foi estudado por Jean-Yves Mollier do ponto de vista da formação de um capitalismo editorial.
[10] As coleções Julia, Sabrina e Bianca iniciadas em 1977 apresentavam heroínas submissas e tinham final feliz. Dionilo, Wigna. Entre Sabrina, Júlia e Bianca: análise sobre família e tradição nos romances sentimentais. Natal, RN, 2016. Entretanto, seu formato pequeno, leve, mole, era próprio para a leitura de mulheres nos trens e ônibus de São Paulo. Eram leituras de mulheres nos trens de subúrbio em São Paulo. Vendiam-se nas bancas de jornal. Os enredos respondiam a pesquisas de mercado e eram feitos em laboratórios de redação.
[11] Albuquerque, J. Guilhon. “Introdução crítica”, in Althusser, Aparelhos ideológicos de Estado, 14 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2022.
[12] O colonizador é um híbrido, pois é tanto expropriador, quanto dominado. “A metrópole do ocupante nunca se encontra onde ele está”, mas fora. Salles Gomes, Paulo Emílio. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 77.
[13] Marx, K. e Engels, F. Obras Escolhidas, t. 1. Lisboa: Avante, 1982.
[14] Muito corretamente, Horacio Tarcus sugere a História Intelectual que pode reconstituir redes onde autores menores podem ser “importantes”. Sua pesquisa se desloca para os portadores das ideias: difusores, animadores culturais, tradutores, editores, livreiros etc. Tarcus, H. Marx em la Argentina. Mexico: Siglo XXI, 2007.
[15] Marx, K. H. O Capital. Trad. Flavio Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 77.
[16] As referências anteriores a Gramsci em: Gramsci, A. Quaderni del Carcere. Torino: Einaudi, 1975, p. 433.
[17] Mandel, E. As delícias do crime. São Paulo: Busca Vida, 1988, p.117.
[18] Sobre o posicionamento de esquerda da revista de um dos heróis do romance em: Larsson, Stieg. The Girl with the Drago Tattoo. N. York: Vintage, 2009, p. 55.
[19] Id. Ibid, p.13.
[20] Id. Ibid., p. 27.
[21] Moretti, Franco. O Burguês. São Paulo: três Estrelas, 2014
[22]Após a morte de Debord, suas obras passaram à Fayard.
[23] Jameson, F. Marxismo e Forma. São Paulo: Hucitec, 1985, p.128.
[24] Merleau-Ponty, M. As Aventuras da Dialética. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.82.
[25] Jakubowski, Franz. Ideology and Superstructure in Historical Materialism. London: Pluto Press, 1990, pp. 61-62. Lukács, G. Histoire et Conscience de Classe. Paris: Éditions du Minuit, 1960, p. 39.
[26] Tratei de maneira esparsa desse tema em: Secco, L.; Deaecto, M. M. “Seditious Books and ideas of revolution in Brazil (1830-71)”. In: Ana Claudia Suriani da Silva; Sandra Guardini Vasconcelos. (Org.). Books and periodicals in Brazil (1768-1930). Londres: Legenda, 2014, v. , p. 52-67. Deaecto, M. M. e Secco, L. Bibliomania. São Paulo: Ateliê, 2016.
[27] Marx, K. H. Elementos fundamentales para la critica de la economía política (Grundrisse). México: Siglo XXI, 1987, p.33.
[28]Subercaseaux, Bernardo. Historia del Libro em Chile. 3 ed. Santiago: LOM Ediciones, 2010, p.10. A pesquisa modelar sobre o sistema literário e o papel do objeto livro no Brasil em: Deaecto, M. O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leitura na São Paulo Oitocentista. São Paulo: Edusp, 2011.
[29] Cospito, G. “Estructura y superestructura: um intento de lectura diacrônica de los cuadernos de la cércel”, in Kanoussi, D. Gramsci em América. México: Plaza y Valdés, 2000, p. 249.
[30] Balza, Javier. “Uma avaliação das leituras filológicas da obra de Gramsci e seus possíveis aportes para as estratégias políticas”, Revista Práxis e Hegemonia Popular, ano 4, n. 5, p. 82-104, Ago/Dez, 2019 - ISSN 2526-1843
[31] Nos anos 1990 a Internet gerou expectativas de democratização da estrutura intelectual, logo frustradas pelo comando monopolista das Big Techs.
[32] Pensemos no número de edições do Manifesto Comunista na Rússia, antes de 1917.
Comitê de Redação: Adriana Marinho, Clara Schuartz, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Carlos Quadros, Dálete Fernandes, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
Endereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000
E-mail: maboletim@usp.br