Coluna Arte e Revolução
CARTA ABERTA AO CAMARADA MAURICIO
Alexandre Barbosa de Souza
Poeta e tradutor
Camarada Mauricio, não nos conhecemos pessoalmente, mas traduzi uma biografia sua, O astro negro do surrealismo, e sua Antologia de mitos, lendas e contos populares da América, seu trabalho de uma vida inteira, cuja introdução foi escrita no México e no Brasil, de modo que sinto como se o conhecesse. Como você, também sou tradutor, gráfico, revisor, poeta, pesquisador, militante comunista. Estou agora ouvindo regravações das canções de Elsie Houston no disco do Goma Laca, vendo uma foto sua no encarte, e ouso dizer que sinto como se você fosse uma espécie de avô comunista que eu nunca tive.
Os surrealistas de São Paulo que eu conheci, Willer e Piva, não falavam em comunismo, não mencionavam o período de quase dez anos em que quase todos os surrealistas franceses pertenceram ao PCF (1925-1935). Dos seus contemporâneos da Oposição de Esquerda trotskista no Brasil, minhas grandes referências sempre foram Lívio Xavier e Mario Pedrosa (estou aqui com as cartas que vocês trocaram, reunidas no livro do seu admirador Karepovs), na chamada Liga Comunista.
É preciso dizer que sua posição era muito mais radical do que a deles, e mesmo que a dos modernistas (penso no Cunhambebinho) em termos de estética e política nessa época. Eis como traduzi sua resposta à enquete sobre a literatura proletária de 1928 da revista Monde:
“No estado atual das coisas, penso que a literatura proletária não pode existir. O proletariado, único capaz de criá-la, atualmente tem mais o que fazer além de ‘escrever’. A preocupação de se libertar o domina. Nem preciso dizer que não considero sinceros aqueles que reivindicam essa concepção. Parem de tentar nos fazer crer no ‘talento’ (sic) de um Barbusse. Ele leva e traz a brisa empesteada que circula nas igrejas e pelas lixeiras. [...] A literatura proletária de hoje em dia? Um arrivismo como outro qualquer. [...] Quanto aos Istrati, Duhamel, Rictus, Durtain e outros Meganhas racionalizados e racionalizantes, deixem, se quiserem, se interessar pelas moscas que infestam os abatedouros no verão. A vez deles chegará como ao Pierre Hamp, de quem sabemos para que lhe serve sua ‘literatura proletária’. Método de espionagem junto às organizações operárias, método de espionagem que serve para aumentar as tiragens de seus livros.”
Imagino, portanto, você militante no Rio de Janeiro, morando na casa do pai de Elsie, indo pesquisar no arquivo da marinha brasileira sobre a Revolta da Chibata e João Cândido, sua expulsão do Brasil, seu ingresso na Liga francesa recusado por Naville e a recusa ratificada pela Liga brasileira... eles pediram para você renegar o surrealismo como condição de ingresso e você não renegou! Outra coisa importantíssima, poeta, eu não sabia, descobri: Tio Faustino, o pai de santo que você visitou no Rio, é o Faustino da Conceição, percussionista baiano, do grupo Guarda Velha de Pixinguinha!
Quando me aproximei do PCB em 1992, ainda estudante de medicina, já não existia União Soviética, e meu interesse era a luta anti-manicomial, e foi aí que conheci o surrealismo através de Artaud. Fiz minha a ideia surrealista de que todos sonham, do burguês ao proletário, todos deliram, e que o inconsciente seria sempre, por assim dizer, domínio público. Ou: não se submetia totalmente às leis da propriedade privada dos meios de sua produção.
Camarada Mauricio, divago, mas não posso deixar de lhe dizer que traduzi recentemente também as entrevistas de André Breton explicando esse período em que os surrealistas apostaram no marxismo-leninismo, bem como traduzi o Manifesto da FIARI (Federação Internacional da Arte Revolucionária Independente), escrito por Breton e Trótski (assinado por Breton e Diego Rivera) em 1938 – e mesmo ali a defesa de toda licença em se tratando de arte não deixa de fazer uma ressalva elogiosa à boa propaganda do realismo socialista de Jdanov. Quero dizer com isso que a afinidade entre surrealismo e comunismo – o horizonte da revolução, mudar a vida e transformar o mundo - é muito profunda e permanece viva!
Como você mesmo diz na introdução à sua tão sonhada Antologia de mitos:
“Não se trata de fazer aqui a apologia da poesia contra o pensamento racionalista, mas de se insurgir contra o desprezo pela poesia demonstrado pelos defensores da lógica e da razão, também descobertas, contudo, a partir do inconsciente. A invenção do vinho não incitou o homem a abandonar a água para tomar banho e passar a se banhar em vinho tinto e ninguém há de contestar que, sem a chuva, o vinho não existiria. Da mesma forma, sem a iluminação inconsciente, a lógica e a razão, mantidas no limbo, não seriam tentadas a denegrir a poesia. Se a ciência nasceu de uma interpretação mágica do universo, ela parece muito em todo caso essas crianças da horda primitiva que, segundo Freud, assassinaram o pai. Ao menos estas fizeram deles prestigiosos herois celestes. As gerações futuras precisam restabelecer a harmonia entre a razão e a poesia. Não podemos continuar opondo uma à outra, a lançar deliberadamente um véu pudico sobre sua origem comum. Podemos censurar o pensamento racionalista demasiado seguro de si mesmo de não ter em geral nenhuma noção de suas bases inconscientes, de separar arbitrariamente o consciente do inconsciente, o sonho da realidade. Enquanto não reconhecermos sem reticência o papel capital do inconsciente na vida psiquica, seus efeitos sobre o consciente e as reações deste àquele, continuaremos pensando como um padre, isto é, um selvagem dualista a esse respeito, com a diferença de que o selvagem continua poeta, enquanto o racionalista que se recusa a admitir a unidade do pensamento continua um obstáculo ao movimento cultural. Aquele que entende isso se revela um revolucionário que tende, talvez sem saber, a se ligar à poesia. É preciso, definitivamente, que seja reduzida de uma vez por todas a oposição artificial, criada por espíritos sectários vindos de um lado e do outro da barricada que ergueram juntos, entre o pensamento poético, outrora qualificado como pré-lógico, e o pensamento lógico, entre o pensamento racional e o irracional.”
Despeço-me recomendando meu artigo sobre outro dos meus escritores brasileiros favoritos, Aníbal Machado, “Comunista surrealista”, publicado na página do Coletivo Cultural Vianinha do PCB.
Alexandre Barbosa de Souza
ALGUNS RECORTES SOBRE O CAMARADA BENJAMIN PÉRET
Alexandre Barbosa de Souza
Poeta e tradutor
Benjamin Péret, por volta de 1945
Em um programa de rádio francês na década de 1950, o poeta Benjamin Péret explicaria a situação política que o levou a deixar o Partido Comunista Francês ao qual se filiara em 1927: “Nessa época, duas posições se enfrentavam no partido e na IIIa Internacional. A teoria oficial pregava a edificação do socialismo em um só país, a Rússia, enquanto a Oposição de Esquerda, da qual eu defendia as teses apresentadas por Trótski, defendia a revolução internacional. Aliás, as intrigas e combinações sombrias que eu via ocorrer no jornal L´Humanité me incitaram a me afastar do PCF, tanto por minha hostilidade ao socialismo em um só país, quanto para escapar da atmosfera empesteada que reinava no partido, e a estreiteza de visão que nele constatei.”
Segundo seu biógrafo Barthélémy Schwartz: “Sua descoberta das ideias da Oposição de Esquerda em Paris em contato com Pierre Naville se concretizou no Brasil com seu engajamento político nos meios comunistas dissidentes. [...] Instalado no Rio de Janeiro em 1931 como secretário do Comitê Regional, Péret ocupou funções importantes no interior da Liga. [...] Péret era encarregado principalmente da propaganda, das relações com a Oposição de Esquerda internacional, e da difusão de textos de Trótski, de quem ele traduzirá Minha vida. Ele se interessará longamente pela revolta dos marinheiros de 1910, a Revolta da Chibata, conduzida por um líder negro, João Cândido, ao qual ele consagrará um livro, L’Amiral nègre. Ele fazia um paralelo histórico com o encouraçado russo Potemkin em 1905.”
Segundo depoimento de outro membro da Liga Comunista, Hylcar Leite (1985): “Péret e Mario Pedrosa moraram na casa dos pais da Elsie Houston, que durante muito tempo foi uma espécie de sede doméstica da Oposição de Esquerda no Rio de Janeiro. O pai de Elsie era um dentista, o que, na época, lhe dava uma situação financeira relativamente boa. Na sua militância política, Péret sempre participou mais das atividades internas do partido e, às vezes, de panfletagens em atos públicos. Não chegou a militar em nenhum lugar especificamente, embora a sua célula fosse a dos gráficos. Nesta época, a divisão formal das células era por profissão, mas como o grosso dos militantes era formado por gráficos, eles ficavam em todas as células. Além disso, gráficos e jornalistas militavam na mesma célula e tinham um sindicato só. O PCB possuía influência na direção dos jornais, na base da categoria ou do sindicato não. A célula de Péret era formada por Mario Pedrosa, Livio Xavier, Azambuja, Costa Pimenta e Dalla Déa (responsável pela entrada de Mario Pedrosa no PCB). Além disso, Péret sempre mantinha contato muito estreito com os gráficos, principalmente com João Matheus. Na época que Péret militou, aqui no Rio de Janeiro nós éramos uns 30 militantes, um grupo pequeno, mas muito coeso. O PCB, por exemplo, nos superestimava. Quando íamos às assembleias eles eram obrigados a nos respeitar: ninguém gritava “Fora trotskista”! Era um período de grande agitação, principalmente nos gráficos, com distribuição de manifestos, inscrições em paredes, manifestações. Depois, Péret foi expulso porque o governo brasileiro não admitia estrangeiro contestador, inventaram um pretexto e o mandaram embora.”
Depois de sua expulsão do Brasil, Péret solicitaria ingresso na Liga Comunista da França, ingresso que lhe seria negado como atesta sua carta aberta aos membros da Liga (19 de março de 1932): “Participei da fundação da L. C. do Brasil e, desde sua fundação, militei em suas filas. Fui mesmo distinguido pela confiança dos camaradas do Rio de Janeiro, que me designaram para o posto de secretário da região. Trabalhamos na ilegalidade completa. Muitos dos nossos foram deportados, presos ou se acham foragidos. Eu mesmo fui preso e expulso e cheguei há dois meses a Paris. Assim que cheguei, escrevi ao camarada [Pierre] Naville e me coloquei à disposição da Liga Comunista., que por intermédio do mesmo camarada me pediu que fizesse um relatório sobre a atual situação brasileira. Esse relatório se encontra com a Comissão Executiva há mais de um mês com uma carta que lhe juntei, protestando contra o afastamento dos trabalhos da L. C. em que eu era conservado. Enfim, a 27 de fevereiro, pude encontrar-me com os camaradas Naville, Molinié [sic], Treint e três outros camaradas que me disseram ser a C. E. Soube então que me era impossível pertencer à L. C. porque estava ligado aos surrealistas! Como se pode pensar, fiquei extremamente surpreendido. No Brasil, onde defendi publicamente na imprensa as ideias surrealistas, militei ilegalmente na L. C. E ninguém nunca viu lá qualquer incompatibilidade entre essas duas atitudes. [...] Nessas condições, me pareceu impossível aceitar a injunção que me foi feita, de abandonar toda atividade surrealista e de denunciar esse movimento na Vérité. Isso para mim não tem sentido e exigi-lo de mim é dar prova do mesmo sectarismo que condenamos, com muita razão, nos stalinistas.”
Segundo Jean Puyade, “Péret solicita, numa carta, o testemunho e a solidariedade de seus camaradas brasileiros. Estes, através da voz da Comissão Executiva da Liga Brasileira, ratificam e aprovam as posições de Naville, alinhando-se, assim, com seu sectarismo estreito.” Os documentos sobre a posição da Comissão Executiva da Liga Brasileira e as cartas trocadas entre Péret e seus membros que endossaram a posição da Liga Francesa se encontram no precioso livro de Dainis Karepovs, Camarada Maurício. Depois disso, a atividade política de Péret se dará fora do Brasil, como informa seu verbete do Dicionário biográfico do movimento operário francês: “Péret se filiará ao Parti Ouvrier Internationaliste (POI) fundado em junho de 1936. Quando estoura a Revolução Espanhola, parte para Barcelona com Jean Rous, membro do secretariado internacional, para representar o comitê do movimento pela IVa Internacional junto ao Partido Obrero de Unificación Marxista (POUM), próximo dos trotskistas. Ele fica um ano na Espanha e participa de diversos combates, especialmente ao lado dos anarquistas da Primeira Companhia do Batalhão Nestor-Makhno da Coluna Durruti em Pina de Ebro. De volta à França em 1937, milita novamente no POI, depois na Federação Internacional da Arte Revolucionária (FIARI), animada pelos surrealistas após o encontro de André Breton e Leon Trótski no México. Mobilizado em fevereiro de 1940, é detido, pouco depois, por atividades políticas no seio do exército e preso em Rennes. Sai da prisão alguns meses depois de pagar fiança às autoridades da ocupação alemã que acabavam de tomar a cidade. De volta a Paris, passa a viver clandestinamente, mas é denunciado diversas vezes por jornais colaboracionistas, e deixa a capital para se juntar a seus amigos surrealistas refugiados em Marselha, na Villa Air-Bell. Proibido de entrar nos Estados Unidos por sua participação na Revolução Espanhola, exila-se, com sua companheira Remedios [Varo], no México. Fica por lá até 1948. No México, retoma contato com Grandizio Munis, que conheceu na Espanha, que dirige a seção mexicana da IVa Internacional, e é também próximo de Natalia Sedova Trotski, esposa do líder bolchevique assassinado em 1940. Com estes dois, critica as posições da IVa Internacional sobre a União Soviética (‘Estado operário burocraticamente degenerado’). Sob pseudônimo de Peralta, escreve Le Manifeste des exégètes publicado no México em 1946, que resume suas posições. Essas críticas ao trotskismo o conduzem a romper definitivamente com a IVa Internacional e a evoluir para posições marxistas-libertárias. De volta à França em 1948, milita em um grupo de veteranos da Guerra da Espanha, animado por Grandizio Munis e se dedica sobretudo à análise do fenômeno stalinista. Em 1952, publica uma série de artigos em Le Libertaire sobre os sindicatos e a revolução, opondo o comitê de fábrica, ‘motor da revolução’, ao sindicato, ‘órgão do Estado capitalista’. Ele assina declarações contra a Guerra da Argélia e apóia a Revolução Húngara de 1956.”
Bénjamin Péret abordando padre. Revista Révolution Surréaliste, 1926
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Conselho Consultivo: Carlos Quadros, Dálete Fernandes, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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