A conjuntura...
EXTRATIVISMO E EXTINÇÃO
Fernanda Pinheiro da Silva
Geógrafa e doutoranda na UFABC
Fonte: https://petronoticias.com.br/producao-de-petroleo-dos-estados-unidos-ch…
Em uma matéria recente, a Folha abordou um novo conjunto de medidas do governo Trump que, "segundo críticos, enfraqueceria a Lei de Espécies Ameaçadas de Extinção e abriria a possibilidade de exploração de paisagens frágeis do Ártico ao Grand Canyon". Nas palavras do atual secretário do Interior, Doug Burgum,
Estamos comprometidos a trabalhar em colaboração para liberar todo o potencial dos Estados Unidos no plano energético e no desenvolvimento econômico, a fim de tornar a vida mais acessível para cada família americana e, ao mesmo tempo, mostrar ao mundo o poder dos recursos naturais e da inovação dos Estados Unidos.
De acordo com o site oficial do governo americano, o objetivo é "Liberar a Energia Americana" por meio de dois caminhos:
Primeiro: "facilitar a identificação, permissão, arrendamento, desenvolvimento, produção, transporte, refino, distribuição, exportação e geração de recursos energéticos domésticos e minerais críticos" - leia-se bombar a indústria do petróleo, do gás e de demais fontes renováveis, afinal, sem extrair minerais críticos não se produz bateria para eletrificar carros da Tesla, para "transicionar" frotas de transporte coletivo, para resguardar aquela água quentinha gerada por paineis solares, entre tantas outras ações da chamada "transição energética", uma fraseologia que se quer questiona os usos dessa produção.
Segundo: "agilizar a conclusão de todos os projetos autorizados e apropriados de infraestrutura, energia, meio ambiente e recursos naturais" - leia-se, alterar legislações mil, o que inclui a comentada fragilização de políticas de proteção socioambiental e de preservação de espécies, assim como intervenções do Estado na regulação da propriedade para resguardar, como sempre, o "interesse nacional", que não por acaso coincide com o das "Big Techs".
Retornemos para a matéria da Folha.
A ilustre presença de ursos polares não impediu que, ao final, o destaque fossem as espécies ameaçadas na bacia sedimentar do Permiano - local que abrange parte do Texas e do Novo México.
O nome Permiano faz referência ao período geológico no qual se formou a maior bacia de xisto betuminoso do mundo (rocha sedimentar repleta de petróleo e gás). Não à toa, é também ali que ocorre a maior parte da produção de petróleo dos EUA.
Ano após ano de intenso extrativismo e boa parte das jazidas que jorravam "ouro negro" para sustentar o dólar na bolsa de valores e rechear de dólares o bolso dos magnatas do petróleo foi transformada em rochedos ressecados, que só podem participar do mundo da mercadoria mediante um fraturamento explosivo dos sedimentos seguido de injeções de água em quantidades absurdas - o tal "fracking". Como destacou Sam Ori, diretor do Instituto de Política Energética da Universidade de Chicago, ainda em 2016,
O fracking nos levou de uma era de escassez e incerteza de energia para uma era de abundância, acessibilidade e diversidade
Enfim, mais uma demonstração expressa do sentido social da técnica, que nos ajuda a compreender como e porque o Texas ressurge economicamente a partir de 2021 e o Novo México aparece como nova(velha) promessa de futuro para os EUA, especialmente para a massa de trabalhadores brancos empobrecidos, em detrimento de populações indígenas e seus territórios ameaçados e de comunidades negras que ocuparam a região em meio a processos de retração econômica, inclusive aquelas atingidas pelas consequências sociais, econômicas e urbanas do furacão Katrina.
Depois das eleições de 2020, democratas e republicanos começaram a prestar mais atenção no fato de que brancos já não eram maioria no Texas. Uma supremacia branca historicamente reconhecida por eleger grandes nomes da direita internacional ameaçada por latinos. Qualquer relação do quadro exposto com o fortalecimento de Trump e a ascensão de uma subjetividade fascista não é mera coincidência.
Mas não comecei a escrever esse texto por isso.
Ao atentar para a proteção de espécies endêmicas da bacia do Permiano, pensei imediatamente na atuação da Chevron, uma grande produtora de petróleo no local e, ao mesmo tempo, integrante do complexo industrial que tenho estudado nos últimos anos.
Não pesquiso essa corporação com a profundidade devida, e sim como uma parte da grande maquinaria química que deriva do refino de petróleo e se realiza por meio de ameaças e incertezas na periferia da maior metrópole da América Latina. Se a Chevron pratica fracking no Texas e no Novo México, em Mauá, ela não extrai, por óbvio, e nem refina petróleo, inclusive, essa última atividade é de controle exclusivo da Petrobras. Ali, a Chevron-Onorite controla somente uma planta industrial considerada de pequeno porte para o setor, e produz aditivos e lubrificantes. Mercadorias que servem a todos os tipos de motores, em carros, motos, ônibus, aviões, barcos ou nas máquinas exigidas por outros processos de fabricação - o visco indispensável para "azeitar" as engrenagens emperradas do valor.
Entretanto, também não comecei o texto para falar sobre a minha pesquisa.
O objetivo deste texto é expor uma disputa judicial que, aos meus olhos, ajuda a compreender os avanços contemporâneos do capital sobre sedimentos rochosos - seja no Permiano, no Ártico ou na Amazônia. Um avanço extrativista que não pode ser dissociado de violações das mais diversas, o que inclui a extinção de espécies.
Em 1993, a Chevron foi acusada por contaminar água e solo na Amazônia Equatoriana, além de abandonar mais de 1.000 poços com resíduos altamente tóxicos retratados no curta-metragem brasileiro Toxitour. O processo contra a empresa chegou a conquistar uma indenização de 9,5 bilhões de dólares em 2011. Mas, como disse Ailton Krenak, "estamos em guerra".
Em sua "defesa", a Chevron alegou que o desastre envolvia somente a Texaco, empresa que se tornou sua subsidiária em 2001. O crime, caso confirmada a existência jurídica dos fatos, teria ocorrido antes disso, resultado de uma parceria entre a Texaco e a Petroecuador - empresa estatal de petróleo. Portanto, nada mais justo para a empresa do que o Estado assumir os custos pela reparação dos danos. Em adição, a Chevron mobilizou os maiores escritórios internacionais de advocacia para processar um dos advogados que movia a ação, inclusive por fraude e suborno.
Ao fim e ao cabo, a Chevron foi absolvida até pela Corte de Haia.
Enquanto a empresa segue firme com suas dinâmicas de acumulação, que incluem operações mundiais com a Texaco, ainda sua subsidiária, milhares de pessoas seguem sem reparação pelos danos sofridos e sujeitadas à contaminação tóxica produzida no local. Para mais de 3.000 indígenas, além de milhares de colonos da Amazônia equatoriana, vale o que Marcelino Freire brilhantemente escreveu e Naruna Costa também brilhantemente interpretou, "A paz é uma desgraça".
Mas o relato ainda não acabou.
Antes da decisão judicial por indenização, em 2011, a Chevron divulgava um novo projeto de acumulação por meio de avanços extrativistas sobre o Mar do Beaufort, no Ártico Canadense. Segundo consta, a proposta apareceu de forma substantiva por volta de 2009 e a empresa esperava iniciar as perfurações em 2020. No entanto, o projeto foi interrompido. Em 2014, a empresa anunciou um primeiro recuo que, após a manifestação contrária de investidores em 2018, tornou-se um fim por "tempo indeterminado". Na carta, que sugiro leitura aos colegas, um conjunto de instituições que soma mais de 2 trilhões de dólares em ativos defende o recuo diante da necessidade de proteger o Refúgio Nacional de Vida Selvagem do Ártico, e para isso destaca riscos financeiros e reputacionais, além de possíveis impactos ecológicos e aos direitos humanos. Somada a baixas históricas no preço do barril de petróleo, a carta antecede em poucos meses a absolvição em Haia.
Dar liberdade para a energia americana, como defende e propõe Trump, exige o avanço das forças produtivas do capital sobre o Refúgio Nacional de Vida Selvagem do Ártico. O mesmo vale para todo e qualquer sedimento da bacia do Permiano e, claro, para o que há de hidrocarboneto na Amazônia e em todas as outras formações geológicas passíveis de se transformarem em mercadoria.
A rigidez locacional defendida por CEOs do extrativismo é, afinal, invertida e expõe "construções ideacionais" de um fetichismo mercadoria.
Não existe petróleo na Amazônia ou no Ártico, assim como não existe Lítio, Cobalto, Níquel, Cobre, Grafite, Nióbio, Vanádio ou Bauxita [minerais críticos] em nenhum lugar desse planeta e nem mesmo da Lua. Essa perspectiva é só mais uma fantasmagoria de um mundo invertido, no qual servimos somente para levar as mercadorias para dançar.
Vender e comprar petróleo é, antes de tudo, uma produção de mercadorias, portanto, implica necessariamente na implantação de indústrias extrativas de alta composição orgânica de capital - técnica, ciência e maquinaria aliada a cada vez menos trabalho. Em que pesem todos os deslocamentos entre os circuitos de produção e a circulação do dinheiro, especialmente se levamos em consideração o mercado de ativos futuros que se move por commodities, "Nossa investigação começa, por isso, com a análise da mercadoria".
Imersos em uma guerra permanente, creio ser necessário recusar qualquer tipo de simplificação, como a sentença de que trabalhadores em abstrato são contrários a violações e devastação provocadas pelas forças produtivas do capital. Além de simplista, o argumento desconsidera um aspecto caro ao pensamento marxista no qual me filio, a saber, uma formação histórica complexa e contraditória das subjetividades, marcada especialmente por sujeições e personificações.
Se todos levamos as mercadorias para dançar, em verdade, dançamos junto a elas.
Em processos como esse que relatei, há muitas partes interessadas na "liberação da energia americana". A guerra também se expressa por oposição. Diante de manifestações agudas da lógica sacrificial exigida pela grande maquinaria, de um lado, concentram-se os modos de expor, denunciar e confrontar as estratégias bélicas do capital contra a vida. Esse é o caso das tantas mobilizações contra a Chevron no Equador, a exemplo da organização do Dia Internacional Anti-Chevron. De outro, reforçam-se laudos, documentos, declarações, balanços financeiros e todos os tipos de material passível de judicialização, assim como o aprisionamento salarial de trabalhadores e trabalhadoras que, contraditoriamente, batalham pela sobrevivência ao lado do capital em troca do que lhes sobra. Já é amplamente reconhecido que essas batalhas tendem a se intensificar diante do horizonte regressivo imposto pela crise do trabalho.
Mas veja, oposições conflituosas não são contradições, ainda que, a meu ver, os termos do conflito se relacionem dialeticamente. Um encontro com a contradição exige outro movimento do pensamento: identificar quando um dos termos coloca necessariamente a existência (ou negação) de outro.
Esse é o caso da relação jurídica. Toda ação judicial movida contra uma corporação se realiza por meio de contratos. Em si, cada contrato é apenas a forma de aparência da relação jurídica que, por sua vez, reflete relações que sustentam a reprodução social capitalista. Como já havia dito Marx, o conteúdo de uma relação jurídica, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é, via de regra, uma relação econômica.
Enquanto janeiro de 2025 foi o mês mais quente já registrado por nossos parâmetros modernos, algo não esperado em meio ao fenômeno La Niña, as discussões nacionais e internacionais sobre produção de energia e as violações geradas por ela expressam a necessidade histórica de generalizar a produção de ruínas para viabilizar as dinâmicas de acumulação. O conteúdo desse processo, aqui chamado de guerra, é dado por relações econômicas historicamente determinadas que se espacializam de diferentes maneiras.
As ações judiciais operam por meio de oposições, o que pode eventualmente resultar em decisões como a indenização de 9,5 bilhões de dólares ou em medidas reparatórias das mais diversas. Mas a relação jurídica não. Pelo contrário, sua existência expressa a contradição que move o capitalismo: a vontade do valor ser mais valor. Se há, de fato, essa contradição, a justiça a que estamos todos submetidos sustenta essa guerra, ao passo que reflete as relações econômicas que a produzem.
O agravamento histórico das capacidades de destruição do capital impõe novas camadas de sofrimento a todas as formas de vida e, como destaca a matéria que originou este desabafo, isso inclui o enfraquecimento da Lei de Espécies Ameaçadas de Extinção e exige a exploração de minérios e petróleo em paisagens frágeis do Ártico ao Grand Canyon. Avança o extrativismo e se ampliam os caminhos para a extinção. Diante da radicalidade do presente, apelar para as relações jurídicas não vai servir para interromper a guerra. Então o que?
- Resumo
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Este ensaio propõe a seguinte reflexão: libertar a energia americana, como defendeu e agora propõe Trump, exige o avanço das forças produtivas do capital sobre o Refúgio Nacional de Vida Selvagem do Ártico. O mesmo parece válido para todo e qualquer hidrocarboneto presente na bacia Amazônica e em outras formações geológicas que podem ser transformadas em mercadoria. A outra face desse impulso ao extrativismo, parece ser a extinção.
Palavras-chave: Trump, mercadoria, caos climático, geologia.
- Abstract
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This essay proposes the following reflection: liberating American energy, as defended and now proposed by Trump, requires the advancement of the productive forces of capital over the Arctic National Wildlife Refuge. The same seems valid for any and all hydrocarbons present in the Amazon Basin and other geological formations that can be turned into commodities. The other side of this push for extractivism seems to be extinction.
Comitê de Redação: Adriana Marinho, Clara Schuartz, Gilda Walther de Almeida Prado, Giovanna Herrera, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Carlos Quadros, Dálete Fernandes, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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