A conjuntura...
E NÃO DISSEMOS NADA...
A LÓGICA EMPRESARIAL E A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO NA EDUCAÇÃO PÚBLICA
Danilo Chaves Nakamura
Professor da rede municipal de ensino de São Paulo e da Arco Escola-Cooperativa
Reportagem de A Pública - https://apublica.org/2023/10/reconhecimento-facial-no-parana-impoe-moni…
O recente anúncio da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME-SP), que afastou 25 diretores escolares dos postos de trabalho para frequentarem um curso de reciclagem, gerou muita indignação e discussão entre os educadores. Em meio às reações – atos organizados pelas comunidades escolares, debates públicos, vídeos evidenciando a precariedade do preparo do curso e inúmeros textos buscando denunciar e resistir a arbitrariedade dos concomitantes ataques que a prefeitura tem lançado contra a educação – uma postagem em particular merece ser destacada: uma releitura do poema Intertexto, de Bertolt Brecht. Essa releitura não apenas aponta para o atual ataque contra os diretores escolares e/ou denuncia uma série de ataques que foram invisibilizados ou normalizados ao longo dos últimos anos, como também aponta para o medo e a “submissão defensiva” daqueles que ainda não foram atingidos.
O histórico de ataques aos profissionais da educação pública é relembrado nesta adaptação do texto de Brecht: da terceirização das merendeiras e funcionárias da limpeza, avançaram para a extinção do cargo de agente escolar. E, ano após ano, esses ataques também atingiram os auxiliares técnicos de educação, os gestores (diretores, coordenadores e assistentes de direção) e, obviamente, os professores e professoras, que têm visto seus trabalhos cada vez mais desvalorizados e precarizados. A narrativa de inspiração brechtiana finaliza com a premonição “agora estão levando tudo, inclusive eu”, o que faz ecoar a preocupante indiferença social que tem permitido a desvalorização sistemática de todos os profissionais da educação e a desestruturação da educação pública. E, se prestarmos atenção no movimento do poema (original ou adaptado), cada vez que se repete “mas não me importei”, abre-se uma zona de indeterminação marcada pelo uso da extrema violência pelo poder e pelo desejo de sobrevivência de quem é atacado.
Como se sabe, Intertexto já é uma reapropriação com o objetivo de ampliar a crítica social através da literatura. Ainda no contexto de guerra na primeira metade do século XX, Brecht modificou o discurso do pastor luterano Martin Niemöller. Vale lembrar que Niemöller, que inicialmente simpatizava com as ideias nazistas, tornou-se um crítico ferrenho da interferência de Hitler nas igrejas protestantes. Após mudar de posição, o pastor passou os anos de guerra em prisões e campos de concentração. Como sobrevivente, ele nunca deixou de destacar a inação e a responsabilidade dos alemães em relação ao Holocausto. Assim sendo, podemos dizer que seu discurso ficou famoso por denunciar corajosamente a violência e a indiferença crescentes contra toda a sociedade e, obviamente, por ter sido parafraseado por autores da estatura de Bertolt Brecht e Vladimir Maiakóvski. No discurso original de Niemöller, temos:
Primeiro eles vieram buscar os socialistas, e eu fiquei calado — porque não era socialista. Então, vieram buscar os sindicalistas, e eu fiquei calado — porque não era sindicalista. Em seguida, vieram buscar os judeus, e eu fiquei calado — porque não era judeu. Foi então que eles vieram me buscar, e já não havia mais ninguém para me defender[1]
Em seu poema Intertexto, Bertolt Brecht amplia a abrangência histórica da violência, da humilhação e do sofrimento social. Ele menciona os negros, os trabalhadores, os desempregados e os miseráveis em geral, sem se restringir ao delineamento específico da Europa em guerra ou ser solidário a apenas determinado recorte político partidário. De forma similar, em E porque não dissemos nada..., Maiakóvski aponta como a naturalização de violências e perseguições acaba por atingir aqueles que, por medo ou indiferença, se calaram ou até mesmo colaboraram diante das injustiças.
Para reforçar nosso ponto central, as repetições dos refrões – “e eu fiquei calado” (Niemöller), “mas não me importei” (Brecht) e “e não dissemos nada” (Maiakóvski) – também abrem um diálogo interessante com o conceito de “zona cinzenta” do escritor italiano Primo Levi. Para ele, a zona cinzenta era o espaço ambíguo de um campo de concentração, uma zona de indeterminação, onde o prisioneiro, por medo de morrer, covardia ou cálculo lúcido, colaborava ou se calava diante da violência do poder. O próprio Levi se incluía nessa análise, mostrando que a incapacidade de se adaptar ou “ajustar as coisas” poderia levá-lo à aniquilação. É importante destacar, nesse sentido, que ele descreve essas estratégias sem cair no moralismo ou em uma narrativa acusatória. [2]
Contextualizadas as releituras feitas no cenário de guerra mundial e regimes totalitários, poderíamos dizer que a adaptação elaborada recentemente pelos educadores para denunciar os ataques sistemáticos aos profissionais de educação ressoa como uma crítica descalibrada, retórica política, comparação insensata ou anacronismo. Mas nem tanto. Em primeiro lugar, podemos dizer que os direitos sociais têm sofrido transformações que não devem ser analisadas isoladamente, mas sim como parte de um amplo processo de sincronização e uniformização impulsionado pela racionalidade neoliberal. John Bellamy Foster, sociólogo americano, nomeia esse fenômeno de Gleichschaltung neoliberal, uma clara alusão à forma como o nazismo se tornou uma ditadura totalitária. Em segundo lugar, mobilizando achados da sociologia francesa do trabalho, o filósofo Paulo E. Arantes demonstra que a exceção histórica do horror nazista é a chave para decifrar as violências cotidianas da normalidade neoliberal. No cerne da análise de Arantes, encontra-se a noção de trabalho e suas metamorfoses diante de um sistema automático de valorização. Sistema que busca constantemente expulsar o trabalho vivo de sua engrenagem, ao mesmo tempo em que gera a necessidade de controlar socialmente aqueles que foram descartados por essa própria lógica.
Ao analisar o histórico de desmantelamento das instituições escolares e a precarização do trabalho dos educadores, podemos perceber que amplos processos de uniformização, seleção e descarte, sempre interligados, já estão em andamento. Para uma efetiva implementação desses processos, é possível identificar um método e uma métrica para “coordenar” e “sincronizar” os aspectos da vida e do funcionamento da sociedade civil. No passado, por exemplo, a chamada Gleichschaltung nazista buscou combinar ideologia, intimidação, cooperação e coerção, frequentemente pressionando as instituições (judiciário, legislativo, mídia, comércio, indústria, instituições educacionais etc.) a “limparem suas próprias casas” com o objetivo de “exterminar a heterogeneidade”. [3] Embora a história não se repita, atualmente, os governos de direita (mas não exclusivamente) buscam acelerar as mudanças na gestão do sistema capitalista com expedientes que se assemelham a esse passado. Eles defendem a dissolução da ordem democrático-liberal, afirmando que um único caminho possível se concretizará por meio de uma aliança, sem entraves institucionais, com o grande capital.
Para efetivar a dissolução das barreiras institucionais, todos os expedientes “legais” são utilizados com o intuito de sequestrar o funcionamento público dos poderes legislativo e judiciário. Quando esses meios são insuficientes, todo tipo de ilegalidade é defendida abertamente, tal como no passado. Isso se manifesta em discursos racistas, xenofóbicos, antiambientalistas, misóginos e homofóbicos, além da defesa explícita de um militarismo extremo e da violência policial. Isso foi bem destacado por John B. Foster em um artigo que analisa o fenômeno nos Estados Unidos,
a implementação de uma tal estratégia neofascista requer um novo tipo de Gleichschaltung, através do qual várias instituições - o Congresso, o poder judicial, a burocracia civil, os governos estaduais e locais, as forças armadas, o estado de segurança nacional (o “estado profundo”), as mídias e as instituições educativas - são todas alinhadas. [4]
Ao aprofundar essa análise, percebe-se que o autor aponta a repressão à força de trabalho como o motivo central da Gleichschaltung nazista. Mas, para ele, o cenário atual difere em suas manifestações, pois o foco não estaria na repressão à força de trabalho, mas sim na espoliação, ou seja, na privatização de serviços estatais, no fortalecimento político e econômico de grandes corporações e na redefinição das políticas externas imperialistas sob uma ótica mais racializada.
No entanto, ao analisarmos as mudanças em curso – com o foco direcionado para a esfera educacional, mas cientes da possibilidade de generalização para outras áreas como moradia, assistência social, saúde, transporte e cultura – percebemos que as transformações que concebem a educação como mercadoria e insistem nos desdobramentos da privatização dos serviços públicos não se limitam à mera transferência de gestão. Essas mudanças, na verdade, atingem o mundo do trabalho, ampliando o que podemos chamar de sofrimento social. Em outras palavras, a métrica e a lógica por trás dessas transformações reproduzem a insensibilidade social do passado e reforçam o caráter totalitário de políticas que, mais uma vez, se voltam contra a força de trabalho.
Para compreender as transformações na educação, é útil analisar como as mudanças nos serviços sociais, impulsionadas pela lógica de mercado, conectam-se ao sofrimento no e pelo trabalho — um conceito explorado por Paulo Arantes. Em seu texto, que transcende a análise exclusiva da educação pública, o autor aponta uma mútua conversão entre racionalidade e obediência no mundo do trabalho, manifestada na íntima ligação entre razão e autoconservação. Percebe-se, então, que essa racionalidade neoliberal precisa ser mediada pelo trabalho e, mais do que nunca, pelo trabalho de colaboração. O trabalho, desprovido das antigas barreiras de proteção social, apresenta-se como uma ação cotidiana para a sobrevivência em duplo sentido: tanto na conservação da vida quanto na manutenção do posto de trabalho. Colaborar, nesse contexto, é uma realidade para todos aqueles submetidos à necessidade do assalariamento.
Nas palavras do autor:
Para ir direto ao ponto de nosso autor, o “mal” se reapresentaria hoje como um sistema de gestão, como um princípio organizacional: das empresas, dos governos, de todas as instituições e atividades, em suma, que, organizadas segundo esse mesmo princípio, foram se convertendo em centros difusores de uma nova violência, e incubadoras de seus agentes, os ditos colaboradores do nosso tempo. (...) Daí o caráter epidêmico do sintoma. Sob a pressão da concorrência interiorizada em seu nível histórico máximo, de um jeito ou de outro todos acabam arregimentados para o serviço da “colaboração”, que não funciona se não insensibilizar seus agentes através de mil expedientes e armadilhas defensivas. [5]
É por ter em vista esse cenário descrito por Paulo Arantes que sublinhamos as sugestões contraintuitivas da releitura do poema de Bertolt Brecht. Ao voltarmos para a realidade escolar, percebemos que, hoje, todo educador que atua no “chão da escola” vivencia a ampliação das formas de gestão e exploração do trabalho. Isso se manifesta na pressão por índices, na instabilidade dos cargos, na precarização das condições de trabalho e na desvalorização da carreira, que vai além do sentido financeiro.
Nesse contexto, o que nos convoca a continuar pensando no atual estado de coisas é o paradoxo: quanto mais o trabalho educacional é esvaziado por diversas tecnologias que buscam substituir a reflexão inerente à atividade intelectual – como plataformas de ensino, slides gerados por inteligência artificial, cursos de formação planejados por escolas de administração e publicações que reduzem a educação à mera preparação para exames externos –, mais o educador é compelido a colaborar. Essa colaboração se dá tanto com a lógica da competitividade instaurada nas (e entre) escolas, quanto no funcionamento de uma educação em “estado falso”, para usar a expressão da pesquisadora Carolina Catini. Em suma, a educação aqui se transforma em uma atividade social constantemente reformulada com “novidades” empresariais, visando à contenção, à subserviência, à alienação e à aceitação dos jovens estudantes a condições cada vez mais brutais de existência. [6]
A partir dessas “comparações insensatas” [7] que arriscamos até agora, acreditamos ser possível sugerir uma compreensão sobre o caso do afastamento de diretores pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, observando-o por outro ângulo. Mais do que uma punição pelos baixos índices alcançados pelas escolas ou uma perseguição política aos diretores que apoiam os movimentos de greve, esses afastamentos – além de serem uma aplicação de políticas formuladas nas economias avançados (detalharemos isso mais adiante) – fazem parte de um processo de sincronização e uniformização das escolas e do trabalho do diretor a um modelo empresarial. Diante desse modelo, a prefeitura parece sinalizar que projetos diferenciados, construídos ao longo de vários anos, não são mais desejáveis. Isso inclui iniciativas como a da EMEF Espaço Bitita, com seu significativo trabalho de acolhimento de estudantes migrantes. Da mesma forma, atinge espaços que simbolicamente derrubaram os muros das salas de aula para que o professor atue como orientador, oferecendo recursos para que o aluno construa seus próprios caminhos, como é o caso da EMEF Presidente Campos Salles.
Para implementar de forma definitiva essa visão reducionista da educação pública, cabe aos burocratas da Secretaria Municipal de Educação expor outra faceta do trabalho em sua dimensão negativa. Em resumo, o secretário da educação, funcionando como avatar financeiro da classe dominante interessada na privatização dos direitos públicos, institui ataques e um ressentimento latente contra todos aqueles cujo trabalho possui um claro e inegável valor social. David Graeber, antropólogo estadunidense, chama essa função executada por burocratas, administradores e executivos de setores públicos ou privados de Bullshit Jobs [Trabalhos de Merda], em síntese, trabalhos que proliferaram com as reestruturações capitalistas ao longo dos anos, mas que não produzem e não são úteis para nada. Com ou sem a existência desses desmandos burocráticos que vem da Secretaria, a escola continua funcionando, mas sem os trabalhos daqueles que são atacados cotidianamente, a escola paralisa ou funciona precariamente. Isso fica evidente em cada greve de educadores, em cada paralisação por problemas trabalhistas com terceirizadas da limpeza e, recentemente, nos afastamentos de diretores. [8]
Ao correlacionar todos esses achados teóricos, percebemos que, após inúmeros ataques aos trabalhos verdadeiramente úteis e necessários para o funcionamento de uma escola – como os dos trabalhadores da limpeza, cozinheiras da merenda, auxiliares administrativos, secretários, professores, coordenadores e diretores – a ficha dos profissionais da educação parece finalmente estar caindo quanto à compreensão de suas próprias realidades. Com certa demora, tudo se passa como se eles tivessem percebido que o trabalho docente – defendido veementemente por nosso maior educador, Paulo Freire, como uma práxis fundamentada na livre vontade, no diálogo entre educador e educando, na amorosidade entre os sujeitos e na beleza dos espaços [9] – está revelando a dura realidade da exploração do trabalho dentro da lógica neoliberal. Em suma, a inventividade, a produtividade e a entrega de resultados podem ser mobilizadas, não pelo zelo e amor pelo ofício, mas sim pelo medo. Nessa configuração do trabalho, todos são constrangidos a colaborar.
Quando pensamos na realidade nacional mais ampla, é evidente que existem diferentes formas e ritmos para essa profunda transformação do trabalho docente. Em São Paulo, por exemplo, a degradação das escolas estaduais ocorre num ritmo muito mais acelerado que nas escolas municipais. Os profissionais do município, que muitas vezes trabalham nas duas redes, costumam dizer: “Precisamos tomar cuidado para não virarmos o Estado.” Apesar dos ritmos locais e particulares, podemos criar algumas generalizações para compreender o curto-circuito entre racionalidade neoliberal e exploração do trabalho, e perceber que a direção das novas políticas educacionais aponta para o mesmo caminho. Nesse sentido, destacamos dez tópicos que se inter-relacionam nessa profunda transformação do mundo educacional:
- A educação pública está sendo sistematicamente transformada em mercadoria, moldada por um discurso que visa “converter almas” à lógica concorrencial. Esse processo, impulsionado por avaliações externas e metas de desempenho, precariza o trabalho docente e desvia recursos públicos para o setor privado. [10]
- Para a nação, alcançar bons índices nas provas externas significa seguir as receitas de “boas práticas” recomendadas pelas organizações internacionais. Para os estados e municípios, alívio nas contas públicas, pois os índices transformam-se em fatias maiores (ou menores) dos repasses do Governo Federal. Já para o empresariado, sob o véu da “responsabilidade social”, é uma porta para desviar verbas públicas e ampliar lucros privados.
- A “qualidade da educação” é reduzida a métricas empobrecidas e a uma ideia limitada do que significa o desenvolvimento da aprendizagem. Isso se manifesta em provas, índices e rankings que simulam aprendizados, tabelando estudantes em categorias como “avançado”, “adequado” e “abaixo do básico”, tudo dentro de uma dinâmica de concorrência nacional e/ou internacional. Os resultados, geralmente desconectados da realidade local, são então usados para justificar a “ineficiência” dos gastos públicos.
- O “fracasso” nesses resultados é então o pretexto para intervenções que prometem “melhorar a qualidade”. Os planejamentos e todo debate pedagógico são transformados em momentos para traçar “planos de metas”. Isso também se traduz na terceirização generalizada e na compra de serviços privados – formação de professores, materiais didáticos, plataformas de ensino, saídas pedagógicas, alimentação dos estudantes, limpeza das escolas, previdência social – canalizando o dinheiro público para empresas.
- Os profissionais da educação veem suas remunerações convertidas em “bônus” e “prêmios” condicionados a resultados. Os governos buscam destruir a carreira consolidada do funcionalismo (evolução funcional, quinquênio, direitos previdenciários etc.) E, para facilitar a seleção e o descarte, novas formas de contratação da mão-de-obra buscam destruir a estabilidade e as formas de remuneração conquistadas no passado.
- Em paralelo, onde há barreiras legais à privatização total, o dinheiro público é usado para construir novas escolas “públicas”, mas geridas por instituições privadas (igrejas, ONGs, filantrópicas), grandes empresas, ou ainda, por organizações militares. Essas escolas nascem com a promessa de “melhorar as notas”, com liberdade para os gestores: indicarem e excluírem diretores; contratarem equipes de professores que renunciam a sua estabilidade de carreira; comprar sistemas e plataformas de ensino. Nessa nova configuração, pagar servidores públicos passa ser considerado “despesa”, mas pagar produtos e serviços de empresas é noticiado como “investimento”.
- Esse ciclo culmina na intensificação do sofrimento social no e pelo trabalho onde a lógica da concorrência gerencia e avalia o trabalho dos educadores. Aqueles que não se encaixam nessa lógica são descartados, considerados péssimos trabalhadores e incapazes de se adaptarem às mudanças do sistema.
- Ao final, todo esse processo não se reverte em melhorias significativas para a formação dos estudantes. Longe de promover cidadania, pensamento crítico, ampliação do repertório cultural, ou mesmo, formação profissional, a modernização da educação pelo mercado é, em sua essência, a venda de um produto rebaixado (mas adaptado a atual rodada de acumulação), a disputa por orçamento público (pelo sistema financeiro) e a instauração de um novo management do trabalho onde acredita-se que o medo ao invés de paralisar o trabalhador pode liberar “tesouros de inventividade”. [11]
- O ensino adaptado às “vontades e desejos dos jovens” (mais moderno, flexível e ocupando o tempo integral da juventude) revela sua face mais perversa. Em suma, controle e submissão dos jovens a uma sociedade que, sob a roupagem publicitária das grandes empresas educacionais, condena a maioria dos jovens a uma formação esvaziada e, futuramente, a trabalhos desumanos, estúpidos e desnecessários.
- Fechando o ciclo, a saúde dos professores se degrada. Uma deterioração física e mental impulsionada pela desvalorização da profissão, medo do desemprego, jornadas exaustivas, acúmulo de responsabilidades, falta de estrutura e a violência escolar. Essa realidade se reflete nos altos índices de afastamentos por transtornos mentais. Em 2018, a rede municipal de ensino de São Paulo registrava 62 afastamentos diários de professores por problemas de saúde mental, superando os números da segurança urbana e saúde. [12] Mais recentemente, a rede estadual de São Paulo registrou uma média de 112 afastamentos diários de profissionais da educação por transtornos psiquiátricos como depressão, ansiedade, pânico e burnout. Os governos tentam conter as ausências diárias diminuindo o número de faltas abonadas, descontando valores das bonificações e premiações e ameaçando os profissionais com a perda de cargos e jornadas, em suma, punindo. [13]
Como já pontuamos, o processo que descrevemos acima, em sua essência, deve ser compreendido de forma abrangente, mesmo que muitos de seus impactos só se revelam plenamente a médio e longo prazo. Ao não isolarmos esses pontos, percebemos que a ideia de descartabilidade do funcionalismo público — amplamente veiculada pela mídia, empresariado e governos — transcende a mera discussão sobre a eficiência e a qualidade dos serviços. Essa narrativa, além de minar as antigas formas de emprego no setor público, fortalece a ideia de que o trabalho do funcionalismo atual deve ser pautado pela lógica da concorrência e da competitividade. Tal lógica amplia o sofrimento social ao intensificar e transformar o trabalho dos educadores, esvaziando, assim, a própria função social da educação.
Ao ligarmos os pontos, percebemos que essa iniciativa faz parte de um circuito sincronizado cujo objetivo principal é instituir a gestão neoliberal em todos os pilares da sociedade: economia, cultura, educação e além. É fundamental ressaltar, contudo, que o neoliberalismo aqui descrito não deve ser compreendido como uma simples restauração do passado liberal, uma expansão natural da lógica capitalista, ou mesmo como uma mera necessidade do capital de valorizar e anexar novos territórios para acumulação. Ele representa uma reviravolta profunda na realidade social, pois (re)centraliza negativamente o trabalho. [14] Nesse sentido, essa gestão neoliberal que destacamos produz, naturaliza e generaliza o sofrimento social para setores da classe trabalhadora que outrora tinham a dignidade, a respeitabilidade e a seguridade como marcas de sua carreira e atuação.
Ao analisarmos a literatura sobre o tema e a implementação da lógica empresarial da educação em outros países, percebemos que o processo que descrevemos já está em curso há décadas. [15] Estamos diante do que Christian Laval chamou de “nova ordem educativa mundial”, uma racionalidade que busca adaptar as escolas à gestão empresarial. Nela, a participação de pais e estudantes é vista como a de consumidores, a avaliação dos estudantes se resume a critérios quantitativos, e a educação se transforma em um checklist de habilidades e competências. [16] No cotidiano escolar, essa “nova ordem” se traduz, por exemplo, na proliferação de livros didáticos e plataformas de ensino que indicam as habilidades e competências que os professores devem trabalhar. É importante ressaltar que, nas escolas estaduais de São Paulo, esse processo está muito mais acelerado do que nas municipais. Embora haja uma dimensão mercadológica que beneficia editoras, gráficas e empresas de tecnologia – com inúmeros casos de favorecimentos ilícitos – esses materiais também revelam um claro controle e direcionamento sobre o que e como os conteúdos devem ser trabalhados para se converterem em índices. Inegavelmente, eles são mecanismos de controle e expressão da desconfiança na capacidade do professor de estudar, planejar e ensinar.
Para não cairmos no argumento “ludista” e anti tecnológico, é crucial pontuar que as publicações didáticas e as plataformas tecnológicas são apenas parte desse processo. Comparando nossa realidade com a de outros países e pensando na forma como as novidades educacionais chegam por aqui, notamos que diversas iniciativas convergem para a mesma direção e são replicadas por consórcios de empresários que dominam a narrativa perante a opinião pública por meio da repetição de um “idioma comum” a empresários e políticos. No Chile, por exemplo, a formação de diretores é orientada pelo documento Marco Para la Buena Dirección y Liderazgo Escolar, criado em 2005 e atualizado em 2015. [17] Este documento, elaborado por pesquisadores, formuladores de políticas públicas e diretores de escolas, visa a implementação de uma visão estratégica e compartilhada para toda educação nacional. No Brasil, a Fundação Lemann resume esse documento chileno de maneira simplificada, focando no que interessa ao modelo empresarial: “O objetivo é diminuir o poder que os políticos têm de nomear protegidos e de profissionalizar cada vez mais estas funções, selecionando pessoas com competência técnica comprovada”[18]. Mais uma vez, o que importa para o setor financeiro infiltrado na educação é a dimensão de como contratar e mobilizar o trabalho.
Nos Estados Unidos, diversos programas educacionais foram implementados desde os anos 2000 para aumentar a responsabilização dos educadores e criar mecanismos para substituir diretores por gestores alinhados ao modelo empresarial. Em termos de avaliações externas, só para ilustrarmos o quanto isso tem ocupado o dia a dia das escolas, um estudante estadunidense faz em média 112 provas ao longo de seu ensino básico. No entanto, enquanto esses programas são aclamados no Brasil por instituições como o Instituto Braudel e a Fundação Itaú Social [19], muitos pesquisadores norte-americanos consideram que eles falharam. De acordo com Diane Ravitch, medidas como testes padronizados, afastamento de diretores, fechamento de escolas, notas escolares, escolas charter, avaliação de professores baseada em notas de alunos, pagamento por mérito e o Common Core demonstraram ser grandes fracassos, pois os índices de desempenho não avançaram de forma alguma após décadas de aplicação.
Na mesma linha, em um artigo interessante para compreendermos essas reformas em perspectiva histórica, Perry Bacon Jr. escreveu: “A reforma da educação está morrendo. Agora podemos realmente reformar a educação”. [20] Em suma, demonstrar o fracasso desse gerencialismo pode ser uma oportunidade para pensarmos numa reforma que realmente seja pautada na formação integral dos jovens, no pensamento crítico, na autonomia de pensamento e no espírito coletivo.
No entanto, no Brasil, continuamos assistindo à expansão das práticas que timidamente começam a ser questionadas nos países que as adotaram primeiro. De forma mais concreta, influenciados pelo conglomerado empresarial Compromisso Todos pela Educação, o Ministério da Educação e as secretarias estaduais e municipais seguem implantado reformas educacionais semelhantes às do Ceará e do Paraná, administrações que supostamente obtiveram sucesso educacional ao conseguirem médias acima de outros estados. Essas reformas são noticiadas cotidianamente nos meios de comunicação como “modernização” necessária para todos estados e municípios e incluem uma lista de perder o fôlego. No atual momento, as principais medidas são: afastamento e substituição de diretores; aplicação de provas externas para gerar índices e questionar a qualidade das escolas; avaliação de desempenho de diretores, coordenadores, professores e estudantes (a chamada avaliação em 360° graus); construção de escolas com dinheiro público para serem entregues à iniciativa privada; plataformas e materiais didáticos para gerenciar o trabalho do professor e substituir seus planejamentos autorais por aulas e exercícios padronizados; e leilão de lotes de escolas para serem reformadas e administradas por empresas. Em todas essas medidas, a lógica empresarial e mudanças na exploração do trabalho são evidentes.
Para concluir este breve ensaio, vale a pena retomarmos o caráter premonitório da releitura do poema de Bertolt Brecht, elaborada pelos educadores com os quais iniciamos a reflexão. Conscientemente ou não, essa releitura encontra a chave para compreendermos o que está por trás da racionalidade que tem instrumentalizado a transformação da educação em mercadoria, ou seja, a exploração do trabalho guiada pelo atual ciclo de intensificação do sofrimento social. Enquanto uma resistência à altura não surge, relembramos um importante conselho de Paulo Freire feito décadas atrás. Mesmo após diagnosticar um cenário sombrio para a educação nos primeiros anos da redemocratização do país – que saía de um período ditatorial de intensos ataques à escola pública – ele aconselhava os educadores a criarem suas trincheiras e resistências no chão das escolas: “Não as abandonem e delas não se deixem expulsar.” [21] Enfim, que esse conselho, que necessita de uma escuta coletiva, não chegue tarde demais.
[1] HOLOCAUSTO, Enciclopédia do. Martin Niemöller: Primeiro eles vieram buscar os... Disponível em https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/martin-niemoeller-first-they-came-for-the-socialists
[2] LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes – os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
[3] FOSTER, John Bellamy. Gleichschaltung in Nazi Germany. In: Monthly Review, 01 de jun. de 2025.
[4] Ibidem.
[5] ARANTES, Paulo E. Sale boulot: uma janela sobre o mais colossal trabalho sujo da história: uma visão no laboratório francês do sofrimento social. São Paulo: [s.n.], 2021, p. 13.
[6] Ver CATINI, C. Empreendedorismo, privatização e trabalho sujo da educação. In: Revista USP, n° 127. São Paulo, novembro de 2020, p. 53-68
[7] ARANTES, Paulo E. Ibidem, p. 14
[8] Ver: GRAEBER, David. Trabalhos de merda – uma teoria. Coimbra: Edições 70, 2022.
[9] Ver: FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
[10] SHIROMA, E., GARCIA, R. e CAMPOS, R. Conversão das “almas” pela liturgia da palavra: uma análise do discurso do movimento Todos pela Educação. In: BALL, S. e MAINARDES, J. (orgs). Políticas educacionais: questões e dilemas. São Paulo: Cortez, 2011, p. 222-247.
[11] Ver: ARANTES, Paulo E. Idem, p. 52
[12] MINHOTO, M. A. P.; VITORINO, A. M.; BOCK, K. C. S. O adoecimento docente na rede pública municipal de educação de São Paulo. In: Jornal de políticas educacionais, vol. 15, 14 de outubro de 2021.
[13] MELLO, Zelda. JESUS, Cléber. 112 professores são afastados por dia em SP por problemas de saúde mental; aumento de 15% em 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/09/05/112-professores-sao-afastados-por-dia-em-sp-por-problemas-de-saude-mental-aumento-de-15percent-em-2023.ghtml
[14] ARANTES, Paulo E. Idem, p. 18.
[15] GOIS, Antônio. Líderes na escola: o que fazem bons diretores e diretoras, e como os melhores sistemas educacionais do mundo selecionam, formam e apoiam. São Paulo: Moderna, 2020.
[16] LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa – o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Boitempo, 2019.
[17] EDUCACIÓN, Ministério de. Marco para la buena dirección y liderazgo escolar. Disponível em: https://www.cpeip.cl/buena-direccion/
[18] LEMANN, Fundação. Educação no Chile – 4 aprendizados e muita inspiração. Disponível em: https://fundacaolemann.org.br/noticias/educacao-no-chile-4-aprendizados-e-muita-inspiracao/
[19] ITAÚ SOCIAL, Fundação e BRAUDEL, Instituto. A reforma educacional de Nova York Possibilidades para o Brasil. Disponível em: https://www.itausocial.org.br/.
[20] BACON JR, Perry. Education Reform is dying. Now we can actually reform education. In: Whashington Post, 8 de maio de 2023.
[21] FREIRE, Paulo. Construindo a educação pública popular. In: Diário Oficial. 1° de fev. de 1989 p. 11
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