Quem foi Edgard Carone

Por Lincoln Secco*

*Trecho de texto publicado no site A Terra é Redonda em 13/12/2021

 

Depois de décadas de trabalho dedicado à história republicana do Brasil, Edgard Carone foi considerado um historiador démodé, determinista e que operava um marxismo mecânico que substituiu a subjetividade da classe operária pela ação do Partido Comunista. O fato dele ter coletado documentos sobre o cotidiano, a circulação de livros e as ideologias; de ter estudado o anarquismo, o trabalhismo e o queremismo pouco importava para retirá-lo do ostracismo[i]. No século XXI a crise de 2008, a reaparição do fascismo e a pós verdade levaram à retomada da tradição marxista.

Os anos de formação de Edgard Carone (1923-2003) foram marcados pelo seu ingresso no curso de História e Geografia da FFCL da USP, mas também pela adesão do seu irmão, Maxim Tolstoi, ao marxismo. Maxim foi organizador da Juventude do Partido Comunista do Brasil (PCB) nos anos 1930 e acabou preso na onda repressiva do Estado Novo. Edgard não o imitou e se definiu sempre como um companheiro de viagem dos comunistas. Enquanto Maxim tinha contatos no círculo de Caio Prado Júnior e dos membros do PCB paulista, Edgard ligou-se a Antonio Candido, Paulo Emílio Sales Gomes, Azis Simão, Pasquale Petrone e outros intelectuais que o influenciaram. Foi através desses vínculos que ele se tornou primeiramente um socialista democrático.

Carone notabilizou-se já na juventude pela coleção de obras raras sobre a história do Brasil e o movimento operário. Uma parte expressiva da bibliografia que aparece em seus livros provinha dessa biblioteca pessoal. Minhas primeiras lembranças dele remontam aos sebos em que o via carregado de sacolas de livros. Depois, pude trabalhar em sua biblioteca ao lado de sua aluna Marisa Deaecto.

Um resultado de sua bibliofilia é O Marxismo no Brasil – das origens a 1964 que foi publicado em 1986. Como ele próprio declarou em nota introdutória à edição, “a maior parte dos livros recenseados… pertence ao autor”. É uma obra que hoje merece ser “completada”, pois Carone não dispunha da informática para realizar sua pesquisa[ii]. Mas outros bibliófilos marxistas como Pedro Ribas[iii] ou Maximilian Rubel,[iv] não estiveram isentos de lacunas nesta tarefa difícil que é a do deslocamento do eixo habitual da análise da produção para a difusão dos livros. O mesmo se pode afirmar de trabalhos semelhantes sobre Trotski[v] e, especialmente, sobre Gramsci.[vi]

A avaliação que Edgard Carone fez da difusão do marxismo foi pioneira. Muito antes que frutificasse entre nós toda uma gama de investigações em torno da História do livro, ele estudou os processos e os limites culturais da circulação dos livros socialistas. Com exceção de alguns exemplos isolados, como Astrojildo Pereira e Edgard Rodrigues (para a cultura anarquista), ninguém se debruçou com vagar sobre a literatura operária. Foi a partir de Carone e daqueles autores que eu mesmo escrevi A Batalha dos Livros, um esboço de história da esquerda brasileira a partir da circulação dos impressos. Um ex aluno de Carone, Dainis Karepovs, importante bibliófilo e historiador, empreendeu a tarefa de preencher algumas lacunas de Carone, além de estudar as editoras.

Carone também nos legou um pequeno artigo seminal sobre o Manifesto Comunista. No sesquicentenário de publicação[vii] houve ao menos três introduções de grande erudição histórica.[viii] Ao contrário daquela introdução clássica feita por Harold Laski, no centenário da obra, em 1948, estas tangenciaram o problema da difusão e da recepção, mas sem um levantamento próprio.

No Brasil, o prefácio que Edgard Carone preparou para o Manifesto Comunista difere daqueles estudos comemorativos[ix] e se inspira em Bert Andreas, cuja magnífica obra é uma raridade bibliográfica[x]. Mais tarde, alguns textos sobre a trajetória editorial do marxismo comentaram exatamente as mesmas edições que Carone consultou de visu (pois as tinha), sem no entanto sequer mencioná-lo. O desconhecimento revelava o silenciamento sobre a obra de Carone.

Ele também tratou da literatura de direita, como “A Coleção Azul”, e ainda escreveu os artigos “Literatura e Público”[xi] e “Notícias sobre ‘Brasilianas’, artigos acerca de formas de organização editorial e ideológica que surgem na Revolução de 1930.

Ao lado de sua bibliofilia marxista, pode-se dizer que entre dois temas oscilou a produção de Edgard Carone: a revolução brasileira e a História econômica. [...]

 

 

Notas

[i]Entre as exceções na USP que não deixaram de dar valor aos estudos de Carone e Werneck Sodré encontramos Emilia Viotti nos anos 1980. No século XXI, Marcos Silva trabalhou pela redescoberta na USP do historiador Nelson Werneck Sodré.

[ii]Outro de seus alunos, o também bibliófilo de esquerda Dainis Karepovs realizou esse trabalho (ainda inédito).

[iii] Pedro Ribas, La introducción del marxismo en España (1869-1939). Madrid: Ediciones de La Torre, 1981.

[iv] Rubel, Maximilen. Bibliographie des oeuvres de Karl Marx avec un appendice en Répertoire des oeuvres de Friedrich Engels. Paris: Librairie Marcel Rivière, 1956.

[v] Wolfgang Lubitz, Trostki, Bibliography. München: K.G.Saur, 1982.

[vi] John Cammett. Bibliografia gramsciana, 1922-1988. Roma: Riuniti, 1991.

[vii] Edgard Carone, “A trajetória do Manifesto do Partido Comunista no Brasil”. InDa direita à esquerda. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991, pp.93-99. Publicado em Edgard Carone: Leituras Marxistas e Outros Estudos. Org. por Marisa Midori Deaecto; Lincoln Secco. São Paulo, Xamã, 2004.

[viii] Eric Hobsbawm, “Introdução ao manifesto comunista”, in: id. Sobre história. São Paul o: Companhia das Letras, 1998, pp.293-308; Gareth Stedman Jones, “Introduction”, in: Karl Marx and Friedrich Engels, The Communist Manifesto. London: Penguim Books, 2002, pp. 3-187; Claude Mazauric, “Lire le manisfeste”, in Karl Marx et Friedrich Engels, Manifeste du Parti Communiste. Paris: Librio, 1998, pp.7-21.

[ix] [Vários autores], Karl Marx e Friedrich Engels: Manifesto Comunista,150 anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Perseu Abramo, 1998, pp.43-207; Vários autores, Ensaios sobre o Manifesto Comunista, São Paulo: Xamã, 1998; Osvaldo Coggiola (Org.), Manifesto comuinista ontem e hoje. São Paulo: Xamã/FFLCH, 1999.

[x] Bert Andreas, Le manifeste communiste de Marx e Engels: histoire et bibliographie (1848-1948). Milão: Feltrinelli, 1963. [Edição com apêndice que abrange os anos de 1918 a 1959].

[xi] Edgard Carone, “Literatura e Público”, InDa direita à esquerda. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991, pp.37-92. Publicado em Edgard Carone: Leituras Marxistas e Outros Estudos. Org. por Marisa Midori Deaecto; Lincoln Secco. São Paulo, Xamã, 2004.