Ano 01 nº 20/ 2020: Arte Pós-Quarentena - Mélodi Ferrari; Coluna Socialista por Ciro Saurius

boletim 20


A conjuntura ...

 

ARTE PÓS-QUARENTENA

 

Mélodi Ferrari

Historiadora da arte e produtora, mestranda Interunidades em Estética e História da Arte - USP

 

Tenho acompanhado diversos debates acerca do tema arte de quarentena. A mais emblemática talvez tenha sido a reportagem “Parem a competição já”, da Revista Select, a qual dividiu opiniões: a produção em quarentena gera um escape, uma motivação ou ansiedade e medo. É inegável que a arte esteja vinculada ao contexto histórico e às experiências pessoais, portanto, o período de confinamento irá reverberar em temáticas dentro do sistema da arte, talvez não imediatamente, afinal quais as condições de produção desses artistas nesse período difícil economicamente para a maior parcela da população? Talvez exista arte feita durante a quarentena para aqueles que tenham o privilégio de possuir recursos para tal. Mas essa é somente uma ponta do problema, se a produção de arte gera um debate amplo, a fruição igualmente é questionada.

Em meados de março, quando algumas cidades começaram a fechar o comércio, todas as atenções se voltaram ao digital. Se antes já estávamos vivendo parte do nosso dia a dia no celular, agora estamos completamente imersos, pois nosso trabalho, nossa forma de consumir produtos e de conviver com familiares e amigos necessita do intermédio de uma tela. A quantidade de lives (transmissões ao vivo) se multiplicou. No campo da arte, as instituições, sejam elas galerias de arte, espaços independentes ou museus, passaram a convidar artistas e curadores para palestras online, disponibilizaram seus acervos na internet, criaram visitas virtuais às exposições. Nesse meio tudo é rápido, aprendemos a consumir o digital dessa forma: em tweets de 150 caracteres, em vídeos de no máximo 10 minutos, contabilizando likes. Porém, a arte não pode ser consumida dessa forma.

Bolso-Regina

É impossível transferir a experiência artística de um objeto criado materialmente no mundo real para o digital. Ainda não desenvolvemos essa tecnologia. Uma obra de suporte mais tradicional como a pintura ou escultura não é igual quando reproduzida na tela de um computador, pois toda relação de espacialidade, materialidade, descoberta e temporalidade se perdem. A reportagem de Giselle Beiguelman na Folha Ilustrada traz questões importantes1: há mais de 15 anos se pensa em uma arte digital (também chamada de web specific), ou seja, uma obra feita no meio digital, para o meio digital. Porém, o que temos visto reverberar nas redes sociais são reproduções de obras físicas. Raramente os acervos de videoarte e arte digital são disponibilizados pelas instituições. Os catálogos digitais devem ser entendidos como um complemento da experiência in loco, uma possibilidade de pesquisa e divulgação da arte. Aí que está o ponto: se essas práticas se configuram como informação sobre a arte e são estratégias fundamentais para a formação de público, espero que todos que se interessaram pelo conteúdo online depois visitem as instituições.

A visitação a uma instituição artística pressupõe uma disponibilidade por parte do visitante. Essa experiência se dá desde a intenção até o momento em que efetivamente se está no local observando as obras, ou seja, abrange todo o percurso para se chegar à exposição. Agora sejamos francos, a maioria das pessoas dispõe desse tempo para contemplação? Com a terceirização dos serviços, perda de direitos trabalhistas e a crise econômica que se intensificará pós-pandemia, é esperado que ocorra também a crise das instituições culturais. Ao mesmo tempo em que a arte será necessária para o alento da população, funcionando como um subterfúgio em tempos difíceis, quem poderá ter esse acesso? As artes visuais tendem cada vez mais ao elitismo. A crise do setor é, na verdade, característica de um sistema neoliberal em decadência, onde a arte é vista como um produto para ser consumido rápido, perdendo assim seu poder de construção simbólica e reflexão crítica.

Algumas propostas digitais estão sendo colocadas em prática a fim de inverter essa lógica: a Pinacoteca de São Paulo (@pinacotecasp), o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (@mam.rio), e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (@museumargs) estão criando atividades online, desenvolvidas para todos os públicos e que estabelecem relações entre as obras dos seus acervos, investigações dos artistas e interesses pessoais. A partir dessas experiências, o público se aproxima da arte contemporânea, passa a identificar códigos e entender seu papel dentro desse mundo. As redes sociais podem facilitar esse processo de democratização. Será que há uma real expansão de público no online ou acaba-se atingindo sempre as mesmas pessoas? Pesquisas de recepção de público já eram escassas, no meio digital creio que ainda não foram pensadas.

O período de confinamento irá mudar os hábitos de consumo. A comodidade dos serviços de streamings e dos deliverys na porta de casa, repercutirá também no modo como consumimos atividades culturais. Esse comportamento será notado principalmente nas atividades que necessitam do público presente, que ficará mais exigente quando for visitar um museu, olhar uma apresentação de teatro ou comparecer a uma feira. É preciso que políticas públicas protejam o setor e mais, é urgente que estratégias inovem para reverter o sistema da arte baseado na exploração do trabalho dos artistas. As plataformas digitais tendem a desequilibrar ainda mais essa balança, onde, por visibilidade e divulgação, editais são propostos sem contrapartida financeira. A arte digital não pode ser considerada sem valor econômico, pois também requer investigação e procedimento, sendo necessária a remuneração e valorização devida da produção simbólica e artística. Para garantir a sobrevivência do setor devemos desenvolver uma nova mentalidade econômica, mais sustentável, contrária ao neoliberalismo que impera. O modelo misto de financiamento à cultura que existe no Brasil, em que a Lei Rouanet está cada vez mais burocrática e o investimento público é praticamente inexistente, precisa ser reformulado. Na França, por exemplo, os artistas recebem um subsídio mensal, garantindo seus salários em períodos de planejamento, produção ou calamidades, como essa que vivemos agora. Algumas iniciativas nesse sentido já estão sendo pensadas no contexto nacional, como o estudo realizado pelos professores e pesquisadores da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, que defende a curto prazo o pagamento de renda mínima para artistas e outros agentes do setor.

A história nos mostra que a arte sempre sobrevive. As crises são momentos de reinvenção, surgimento de novos movimentos e estilos. O momento presente pode ser o impulso necessário para a reflexão e redefinição do setor cultural, das instituições e das políticas públicas.

 


Coluna socialista…

 

A pandemia deve mudar a maternidade? Eu acho que deveria, hoje [10.05.2020] milhares de mensagens sinceras se multiplicarão homenageando o sacrifício e a beleza do amor materno...

E de fato é maravilhoso o gesto da maternidade blá, blá... mas se a quarentena nos ensinar algo, eu espero que seja para que valorizemos as coisas que nos parecem caras e que não damos a mínima, ou atribuímos vocações mágicas preestabelecidas e fica por isso mesmo... Ou seja, a sociedade deveria pagar pelo que parece gratuito mas não é, alguém está se ferrando por isso.

Uma delas é o fato de que não só a dupla jornada das mulheres é aceita bovinamente por todos, como também a reprodução em si. Sim, meu amigo. A mulher ao parir quase se vira pelo avesso para colocar no mundo mais um "suporte das relações econômicas", como definiria Marx. E de novo; sim, você é isso (não para a sua mãe, que é a única que acredita nas suas promessas de fim do ano).

A gestação, o parir, a educação tudo é trabalho aceito cinicamente pelo sistema que neste dia lhe enviará um cartão de agradecimento ...

 

Paguem as companheiras mães!

 

Coluna por Ciro Saurius

Ilustrador

 

mulheres

Fonte: https://lavrapalavra.com/2019/08/27/roswitha-scholz-e-a-critica-do-valo…

 


Expediente

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