Ano 01 nº 19/ 2020: Eternos Conflitos Internos: as periferias em meio à crise do coronavírus - Jutaí Santos; Coluna Socialista de Felipe Lacerda

boletim 19


A conjuntura ...

 

ETERNOS CONFLITOS INTERNOS: AS PERIFERIAS EM MEIO À CRISE DO CORONAVÍRUS

 

Jutaí Alves dos Santos

Historiador - Unicastelo

 

A crise sanitária/epidemiológica, econômica e social provocada pelo coronavírus chega às periferias dos grandes centros urbanos do Brasil, com resultados catastróficos para as populações periféricas. No momento, São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Manaus registram os maiores números de óbitos e casos confirmados ou suspeitos de Covid-19. Obviamente é na periferia destes grandes centros urbanos que se localiza a face mais dramática e sombria desta pandemia, com resultados e desdobramentos aterradores para as populações residentes nessas localidades.

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Historicamente privadas de infraestruturas de saneamento básico, pavimentação, redes de distribuição de água e energia elétrica, estabelecimentos de saúde pública etc., era mais do que previsível que as periferias urbanas seriam as áreas mais sensivelmente atingidas pela crise do Covid-19.

O isolamento social em período não permanente, a chamada “quarentena”, obviamente não encontraria guarida nas periferias de maneira análoga ao que foi e é recomendado para a população como um todo. A própria geografia das periferias urbanas, com suas construções improvisadas e amontoadas, com seus “puxadinhos” de maneira a acomodar o maior número de pessoas de uma mesma família em um mesmo traçado territorial, já colocaria em xeque qualquer medida de isolamento individual de um possível infectado por coronavírus. Soma-se a isso as diversas características que comportam a geografia do improviso nessas localidades, como os incontáveis traçados de becos e vielas, construções em verticalização extrema, ruas sem traçado linear, residências em beiras de córregos, entre outros fatores que se tornam provas incontestáveis de que as recomendações de isolamento horizontal excluem por definição uma boa parcela de moradores das periferias.

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Fonte: https://climainfo.org.br/2020/03/22/em-tempos-de-pandemia-a-falta-de-politicas-publicas-e-fatal-para-favelas-e-periferias/ 

Mas além dessas problemáticas, existem outros fatores ainda mais perniciosos nessa conjuntura e que dificultam um combate eficaz da pandemia de Covid-19 nas periferias: o obscurantismo disseminado em larga escala pelas igrejas evangélicas neopentecostais presentes nessas localidades, a permanência do discurso meritocrático (fruto de uma propaganda neoliberal, incutida massivamente pelos veículos midiáticos hegemônicos), e o avanço digital do protofascismo bolsonarista, difundido em larga escala pelas correntes de whatsapp, que divulgam, repercutem e multiplicam uma enxurrada de fake news e teses conspiratórias.

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Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51920196 

Esses três fatores reunidos dificultam (quando não impossibilitam) qualquer iniciativa progressista de combate à pandemia de Covid-19 nessas localidades. O obscurantismo neopentencostal faz com que qualquer diálogo com os ditos “crentes” ou evangélicos se torne quase impossível, com toda uma gama de pastores e demais líderes religiosos se tornando os paladinos da moralidade, os ícones da “razão”, os arautos modernos da esperança e bem-aventurança para um séquito de fiéis, que passam a ver em qualquer menção de socialismo, sindicalismo ou cooperativismo, sinônimos absolutos de diabólico, herege e profano. Por seu turno, o discurso meritocrático foi introjetado em vasta população subproletária que deseja prosperar na ordem capitalista, na ilusão de se tornarem os “empresários de si mesmos”. E o protofascismo (por vezes com características de neofascismo) difuso, inconsciente ou não, oriundo muitas vezes dos núcleos neopentecostais, que com o advento das redes sociais e aplicativos de conversas (mais notadamente o whatsapp) cria uma bolha reacionária e obscurantista, projetando em expressiva parcela das populações periféricas um mundo de delírios conspiratórios de ameaça comunista, nova ordem mundial e aliança de “inimigos de Deus”, onde o fiel, “patriota” e “cidadão de bem” tem o dever de informar seus familiares e amigos sobre as tais ameaças, e se preciso for, ajudar a combater fisicamente os “comunistas”, “inimigos de Deus” e “ traidores da pátria”.

É este o quadro terrível em que se situa grande parte das periferias urbanas na maior crise sanitária/epidemiológica das últimas décadas, e faz com que as heroicas resistências e iniciativas de associações de bairros, centros comunitários, lideranças bairristas, entre outros agrupamentos de combate à pandemia de coronavírus nas periferias sejam ainda ilhas em meio ao caos, pontos de luz em meio a uma vasta escuridão, exceções em meio a uma lamentável regra.

O obscurantismo neopentencostal faz com que os seus fiéis duvidem da existência do coronavírus ou minimizem seus trágicos desfechos, além de pôr em negação todas as diretrizes científicas e demais apontamentos da área da medicina. O discurso meritocrático, embora perca força em um momento onde milhares de “empresários de si mesmos” observam diante de si a derrocada dos seus “empreendimentos” e subempregos formais, ainda assim é responsável pela infeliz analogia de que qualquer renda ou auxílio por parte do governo para aqueles que de fato necessitam é “mamata para vagabundos” ou penduricalhos eleitoreiros por parte do Estado. E por fim, o protofascismo digital é responsável pela descrença nos órgãos técnicos de medicina, pela desaprovação às recomendações de isolamento e pela negação da ciência como um todo, além da exaltação de um “patriotismo” tosco e boçal.

As periferias, diversas em seu conteúdo, heterogêneas em seu âmago, díspares em suas realidades e necessidades, têm infelizmente em suas características as problemáticas aqui apontadas. O que dificulta uma saída bem-sucedida do caos que se abate diante da parcela mais desassistida, precarizada e desamparada deste país.

E como se não bastasse, a crise do coronavírus encontrou ainda o terreno fértil na maior destruição do Estado e de políticas públicas da história recente do Brasil. E por mais que um Armínio Fraga aqui, ou um Pérsio Arida acolá, cogitem (de maneira falaciosa) uma momentânea adoção de pequenas doses de keynesianismo para “salvar” a economia brasileira, a receita para depois que a crise passar e “retomar” a economia é sempre a mesma: contenção das despesas públicas, elevação de juros, diminuição do Estado, privatizações e todo o restante do pacote de maldades neoliberal, sempre utilizado para “estabilizar” a economia.

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Coluna socialista…

 

Manifestações Fascistas

Em vários países, como a Alemanha, o incômodo gerado pela lentidão do relaxamento de medidas de contenção da doença causada pelo Coronavírus tem gerado alguma sensibilidade para atos públicos em torno dos “direitos fundamentais” – agora convenientemente recordados. A situação pandêmica é tensa; e o nervosismo, a tensão, o medo são matérias-primas de predileção do fascismo. Nos atos públicos ocorridos no último sábado, 2 de maio, em Berlim, Stuttgart e mais de uma dezena de cidades, a extrema direita se fez presente em peso. Em outros países, como os Estados Unidos da América e o Brasil, não se esperou nem a situação pandêmica chegar ao momento do achatamento da curva de infecções: enquanto a doença ainda se alastra exponencialmente, setores privilegiados das classes médias comandam pequenas hordas de alucinados pelo “direito” de retirar à humanidade o direito primário à vida. Mas os grunhidos das hordas podem atingir os ouvidos de todas e todos nós: o medo da perda da ocupação profissional – o meio básico de garantia da existência –, seja ela formal ou informal (nesse último caso, os efeitos são praticamente imediatos) nos torna bastante sensíveis ao desejo de volta à “normalidade”. E assim, acaba-se num jogo sem solução: escolher entre a morte por inanição ou por infecção... Quem sabe um dia as tendências antifascistas também saberão lidar com o medo, a tensão e o irracional.

 

Medo

Nos Estados Unidos da América, a mídia já registra nas manifestações fascistas pró-Trump a versão estadunidense mais moderna do grito fascista tupiniquim “Vai pra Cuba”: Go to China! Ao que tudo indica, a sinofobia (ódio à China) é diretamente proporcional ao tamanho da dependência que os países centrais – e também os periféricos, é claro – têm em relação à grande potência do capitalismo de Estado.

 

Em Tempo(s de Corona)!

Fontes confiabilíssimas do grupo de estudos GMarx deixaram vazar que, dentro em breve, o boletim Maria Antonia contará com um artigo de Gilda Prado sobre o clássico filme de Leon Hirzsman, Eles não Usam Black-Tie(1981), baseado no texto da peça, tão clássica quanto aquele, de Gianfrancesco Guarnieri (a peça é de 1958). Sobre o tema, aliás, sairá em breve um livro pela Ateliê Editorial, sobre O Cinema Político de Leon Hirzsman, na pena de Reinaldo Cardenuto. Artigo, filme, peça e livro: todos imperdíveis antes, durante e após a situação pandêmica.

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Fonte: Banco de Conteúdos Culturais - Cinemateca Brasileira

Para mais informações do filme acesse.

Coluna por Felipe Lacerda

Doutorando em História Econômica - USP

 


Expediente

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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