Ano 01 nº 30/ 2020: Primeiro como tragédia, depois como fake - Camila Djurovic

Boletim 30


A conjuntura ...

 

PRIMEIRO COMO TRAGÉDIA, DEPOIS COMO FAKE

 

Camila Alvarez Djurovic

Mestranda em História Econômica- USP

 

Já é quase lugar comum afirmar que vivemos um novo 1964. Nós historiadores, que somos normalmente reticentes com esse tipo de analogia, não temos infelizmente conseguido escapar desta. No terreno da luta ideológica, a questão das fake news parece ser um campo especialmente fértil para traçar esses paralelos.

Em abril de 1963, exatamente um ano antes do golpe que submeteria o país a 21 anos de ditadura, uma CPI instaurada na Câmara dos Deputados investigou uma rede responsável por conduzir uma enorme operação de controle da opinião pública contra o governo de João Goulart. As acusações iniciais se referiam à interferência de duas entidades de empresários e militares anticomunistas nas eleições parlamentares de 1962. A CPI denunciou que cerca de 5 bilhões de cruzeiros foram levantados pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS) para financiar campanhas de candidatos da oposição, sendo parte dos recursos provenientes do exterior.

Os depoimentos confirmaram que a quantia foi utilizada para apoiar 250 candidatos a deputado federal, 600 a deputado estadual e oito a governador, através da compra de rádios, televisões e jornais, nos quais eram inseridos artigos, comentários e propagandas políticas travestidas de notícias1. O jornal carioca A Noite, por exemplo, foi literalmente alugado durante o período da campanha eleitoral. O vespertino, que até então tinha uma linha editorial favorável ao governo Goulart, passou a promover abertamente os candidatos da oposição e a intensificar a propaganda anticomunista. Os recursos angariados pela rede eram também utilizados para a edição de revistas, jornais, panfletos e livros com grande tiragem e distribuição gratuita. 

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Reprodução da página de abertura da CPI

 

Com a conclusão dos trabalhos da CPI, em agosto de 1963, a Justiça determinou a dissolução definitiva do IBAD. Apesar dos inúmeros indícios, o IPÊS ficou isento de acusação por falta de provas e continuou exercendo suas atividades conspirativas sem maiores aborrecimentos. Patrocinado por centenas de empresas nacionais e multinacionais e apoiado pelo consulado estadunidense, o instituto prosseguiu com sua ação editorial, produziu filmes de "doutrinação democrática", programas de rádio e televisão, realizou seminários e financiou um punhado de grupos civis e militares oposicionistas, como mais tarde comprovaram investigações históricas como a de René Dreifuss2.

Utilizando como estratégias a propaganda e a disseminação de notícias falsas, a campanha desenvolvida pelo complexo IPÊS/IBAD tinha como objetivo convencer a opinião pública, sobretudo as classes médias, da existência de uma infiltração comunista estrangeira no Brasil, associando a imagem de João Goulart e de seus apoiadores a essa “ameaça vermelha”. Com efeito, o medo/ódio do comunismo, potencializado pela tensão internacional da Guerra Fria, foi utilizado como pretexto para o golpe de Estado.

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Panfleto de candidato patrocinado pelo IPÊS/IBAD nas eleições de 1962

 

Às vésperas do 1º de abril, pesquisas de opinião apontavam que tanto Goulart quanto as propostas das reformas de base possuíam amplo apoio popular. Entretanto, as mesmas enquetes mostravam a existência de um "virtual consenso anticomunista" e uma grande rejeição às alternativas políticas de esquerda consideradas mais radicais. Talvez esse fato explique o aparente paradoxo de que, nas pesquisas realizadas imediatamente após o golpe, houve uma forte virada da opinião pública, tendo a maioria dos entrevistados se declarado favorável à derrubada inconstitucional de João Goulart3. É possível que, num curto espaço de tempo, a campanha da direita tenha conseguido “colar” o governo Goulart ao “perigo vermelho”, tornando justificável o golpe na visão de muitas pessoas.

Os órgãos e profissionais da imprensa nacionalista foram os primeiros a sofrerem com a repressão da ditadura civil-militar. Os deputados envolvidos nas investigações sobre o complexo IPÊS/IBAD tiveram os mandatos cassados e alguns foram forçados ao exílio. O brutal assassinato e desaparecimento de Rubens Paiva esteve intimamente ligado ao seu protagonismo naquela CPI de 19634. Não é de se estranhar que o general Golbery do Couto e Silva, uma das principais lideranças do IPÊS, tenha sido o idealizador e comandante do Sistema Nacional de Informações (SNI), principal órgão do aparato de vigilância e repressão da ditadura. Tampouco é inusitado o envolvimento de empresários do IPÊS no lado mais sórdido da repressão, seja na perseguição política dentro das fábricas, no financiamento de aparatos como a Operação Bandeirantes (OBAN) ou mesmo na elaboração de métodos de tortura, como a famigerada pianola Boilesen5.

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Fonte: divulgação

 

Como mostrou em diversas ocasiões a História, operações de controle da opinião pública costumam ser a ponta de lança de projetos autoritários. A disseminação do medo e do ódio são táticas antigas para influenciar eleições e desestabilizar governos. No caso do nosso passado recente, não é nenhuma novidade a aliança de conveniência entre o empresariado brasileiro e movimentos antidemocráticos para esses fins. As estratégias do grupo bolsonarista são abertamente inspiradas na experiência de 1964. É claro que a internet confere um tom de novidade ao tema, por ser esse um meio de comunicação relativamente novo, ainda pouco regulamentado e de extraordinário poder de alcance. Mas isso não exclui o fato de que as táticas são, em essência, as mesmas.

O inquérito agora conduzido pelo STF revelou a existência de um grupo de empresários autodenominado Brasil 200 Empresarial, no qual os participantes colaborariam entre si para "impulsionar vídeos e materiais contendo ofensas e notícias falsas com o objetivo de desestabilizar as instituições democráticas e a independência dos poderes". É sabido e notório que o mesmíssimo aparato foi fator decisivo para as eleições de 2018, apesar de nenhuma objeção ter sido feita na ocasião por nenhuma das "instituições democráticas". Agora que o golpismo bolsonarista se revela cada vez menos um discurso e mais uma ação concreta, elas parecem finalmente acordar para combater o monstro que ajudaram a alimentar. Está mesmo difícil escapar das analogias...

 

1 BRASIL, Câmara dos Deputados. Relatório da CPI do IBAD e do IPÊS. Vol 1. Depoimento de Hélcio José Domingues França. Brasília, 1963.Arquivos da Comissão Estadual da Memória e da Verdade Dom Helder Câmara. Disponível em: <http://www.acervocepe.com.br/acervo/arquivos-da-comissao-estadual-da-me…;. Acesso em: 22 mar. 2018.

2 DREIFUSS, R. A. 1964: a conquista do Estado - ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) baseando-se nas diversas pesquisas realizadas sobre o tema, reconheceu a atuação antidemocrática do complexo IPÊS/IBAD no período.

3 Na pesquisa do IBOPE realizada em São Paulo em maio de 1964, 54% dos entrevistados afirmaram considerar que a deposição do presidente Goulart constituiu uma medida benéfica para o país e 70% disseram acreditar que a situação do Brasil tendia a melhorar. Na mesma pesquisa, 34% dos entrevistados atribuíram a queda de Goulart ao fato de que o presidente “estava levando o Brasil para um regime comunista”. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. Revista Tempo, vol. 20, 2014, p. 1-21.

4 POR QUE Rubens Paiva foi morto. Instituto Humanitas Unisino, 24 nov. 2012. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515797-por-que-rubens-paiva-foi-morto>. Acesso em 27 mai. 2020.

5 Aparelho de tortura por eletrochoque importada dos EUA pelo empresário Henning A. Boilesen, membro do IPÊS e da FIESP.

 


Expediente

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