Ano 01 nº 32/ 2020: A Batalha dos Livros - Luis Fernando Ferreira

Boletim 32


Memória operária ...

 

A BATALHA DOS LIVROS

 

Luis Fernando Franco Martins Ferreira

Historiador (USP) e procurador federal

 

Em nossa época de revolução digital, com seus livros eletrônicos (e-books) e notícias falsas (fake news), confeccionar um livro que, em registro metalinguístico, versa precisamente sobre outros livros e demais formas impressas de leitura pode se exibir, numa primeira abordagem, um tanto anacrônico e quiçá démodé: nada mais enganoso, pois o professor de história contemporânea da Universidade de São Paulo, Lincoln Secco, em sua obra “A batalha dos livros: formação da esquerda no Brasil” (2017), faz despertar do passado e atribui dicção a mulheres e homens concretos que, por intermédio desses meios impressos de comunicação, pelejaram contra as variegadas formas de iniquidade ínsitas ao modo capitalista de produção no Brasil.

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Capa do livro "A Batalha dos Livros: formação da esquerda no Brasil", de Lincoln Secco, 2017.

 

Cuida-se de tarefa gigantesca e por vezes ingrata essa a que se dedicou o professor Secco, o qual, ao discorrer sobre o que ele denomina a “infraestrutura da superestrutura” (ou “economia do livro”), relata-nos que: “Tudo isto escapa à quantificação e permanece como conjunto de indícios lacunares de uma história subterrânea que acompanhou os partidos revolucionários clandestinos no mundo todo” (p. 109).

Nada obstante, o material empírico coligido exibe-se exauriente e impressionante, com denotar a opulenta erudição do autor, e nele divisamos seres humanos de carne e osso que, na sua materialidade histórica, alinhavam o tecido do tempo: aqui Secco filia-se à tradição metodológica de Sartre (evocado na primeira epígrafe do seu livro) e distancia-se do anti-humanismo de Althusser, sem deixar de suplantar com galhardia e airosamente a falsa dicotomia entre arte e ciência na História como disciplina acadêmica, pois Secco combina efetivamente o deleite estético literário, em sua elegante e esmerada narrativa, com o conhecimento científico, mediante evidente contribuição à intelecção de seu objeto de investigação.

Mister obtemperar, quanto à narrativa da obra ora em comento, que ela proporciona uma tensão crescente até o seu ápice derradeiro, quando o militante ou simpatizante de esquerda brasileiro toma consciência de que a leitura de tal obra consiste, em si mesma, em ato político que culmina em epifania de identificação catártica com o passado emergente em suas linhas e entrelinhas, razão pela qual eu particularmente estou convicto de que o livro aqui comentado deva servir como leitura obrigatória de formação de quadros dos partidos realmente engajados no programa máximo do comunismo.

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Jovens da Guarda Vermelha empunhando o livro “Citações do Presidente Mao Tsé-Tung”, mais conhecido como “O Pequeno Vermelho”. Fonte: https://www.fmnation.net/mystery/36388326.

 

Os mais desavisados poderiam pensar que um certo determinismo econômico marxista exige a submissão da história cultural da classe trabalhadora às injunções econômicas, com os ciclos e flutuações do capitalismo, mas esse argumento antolha-se-nos falacioso, pois para tal classe a política é mais importante do que a economia, eis que a própria teoria revolucionária do proletariado consiste numa força produtiva em contradição com as relações de produção capitalistas, tão efetiva e importante quanto, verbi gratia, a eletricidade, e nesse sentido a obra do professor Secco não se adstringe ao enquadramento como história cultural ou das ideias, mas inscreve-se no monumental esforço de constituição de uma história totalizante do modo capitalista de produção.

Nesse sentido, o objeto de investigação da vertente obra, vale dizer, a difusão da ciência e, portanto, também do socialismo científico, guarda caráter decisivo no modo capitalista de produção, parecendo oportuno relevar seus efeitos econômicos no bojo do capitalismo: a revolução microeletrônica, ou revolução na orbe da tecnologia da informação, exerceu influência com a robótica, por exemplo, que aumentou a composição orgânica do capital e provocou decréscimo tendencial, portanto, nas taxas de lucro. Ao mesmo tempo, tal revolução compensou a queda tendencial das taxas de lucro mediante o aumento da velocidade de rotação do capital, através da desinibição e desenvolvimento dos meios de telecomunicações, os quais, por seu turno, favorecem e facilitam a difusão do socialismo científico, o qual tende a erradicar o modo capitalista de produção.

Eis o movimento contraditório do capital, agarrado pelos cabelos pelo professor Secco em sua obra.

Mas à classe trabalhadora, despojada dos meios de produção e de coerção, resta a organização partidária e a teoria revolucionária: Secco já havia apresentado um exame minucioso da organização partidária da classe trabalhadora brasileira em sua magnum opusHistória do PT” (2011); agora brinda-nos com essa outra obra para tratar da difusão da teoria revolucionária da mesma classe.

Lênin já admoestava que não existe movimento revolucionário sem teoria revolucionária, o que basta para arraigar a importância social desta obra-prima que aqui humildemente procuramos comentar.

Da narrativa de Secco dessumem-se três grandes fases históricas do movimento operário brasileiro: anarco-sindicalista, predomínio do PCB e, por derradeiro, hegemonia do PT, com enfático destaque para a segunda fase: nesse aspecto, o fim da URSS provocou sísmico abalo na teoria revolucionária do partido e determinou grande dispersão de sua difusão no movimento operário, o que se evidencia por exemplo em certo descuido comparativo na formação de quadros no âmbito do PT.

Nesse diapasão, imperioso aventar que a erradicação da URSS, com a decorrente crise da teoria revolucionária e da forma partidária de organização do movimento operário, encerra provável nexo etiológico com a revolução digital: Secco evidencia o auge de tal crise, no Brasil, com as assim designadas “jornadas de junho” de 2013, quando proliferam novas formas de organização do movimento infenso ao status quo, as quais guardam como supedâneo as redes sociais da internet e se manifestam de forma horizontal e suprapartidária, o que enseja inclusive uma nova onda de interesse pela literatura de jaez anarquista. Seria uma crise terminal da forma partidária do movimento anticapitalista?

Secco ainda revela que a crítica da economia política, no âmago da teoria revolucionária, sempre foi historicamente deficiente no movimento operário brasileiro, o que nos conduz a ensaiar certa analogia com o que Perry Anderson uma vez denominou “marxismo ocidental”: não seria o caso, portanto, de procurar suprir tal deficiência nos atuais partidos da esquerda brasileira?

Por derradeiro, reitero que se cuida de obra-prima inescapável para a formação de quadros hodiernos da esquerda no Brasil, de tal sorte que o subtítulo da obra em testilha não apenas versa sobre tal formação, mas funciona também para a mesma.

lenin

Fonte: https://lavrapalavra.com/

 


Expediente

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