Ano 01 nº 57/ 2020: Resenha: Dente por Dente - Fernando Ferreira

boletim 57


Coluna ARTirando...

 

RESENHA: DENTE POR DENTE

 

Fernando Sarti Ferreira

Professor e doutor em História Econômica - USP

 

cartazFicha do Filme: Dente por Dente

Brasil | 2020 | Ficção | 85 min.

Direção: Júlio Taubkin e Pedro Arantes

Roteiro: Arthur Warren

Fotografia: Bruno Tiezzi

Montagem: Eduardo Chatagnier e Bernardo Barcellos

Música: MOWG

Elenco: Juliano Cazarré, Paolla Oliveira e Renata Sorrah

Produtores: Angelo Ravazi, Mayra Lucas e Halder Gomes

 

Produzido por: ATC Entretenimentos, Glaz Entretenimento, Massa Real

Distribuição: Vitrine Filmes

Não há dúvida de que estamos vivendo em um período de crise. E de que o aprofundamento brutal da desigualdade social é o motor e o fenômeno mais espetacular dessa crise. Neste sentido, proliferam e ganham cada vez mais espaço nos grandes circuitos da indústria cultural uma série de produções que simpatizam ou até mesmo glorificam a violência expiadora contra os ricos. O nível de stress, desespero, frustração e falta de perspectiva que a maior parte dos mais diversos estratos sociais que vivem do trabalho estão atravessando nos últimos anos talvez ajude a explicar a enorme aceitação que esses filmes têm tido, seja entre os espectadores - que se identificam com a violência contra os seus patrões ou contra os ricos arrogantes -, seja entre os barões da indústria cultural e os donos do poder - que conseguem recalcar a crescente e latente violência que vai colonizando um cotidiano cada vez mais insuportável.

Há uma outra ideia que estes filmes sugerem (ou ajudam a promover?). Não há possibilidade nenhuma de organizar essa violência de maneira coletiva e construtiva. “Bacurau”, alguém poderia responder. Contudo, acredito que “Bacurau”, apesar de dialogar com essa violência expiadora contra os ricos, tem outras características que o afasta do tipo de filme que estamos falando. Talvez o filme de Kléber Mendonça que possamos aproximar destas produções seja, na verdade, O som ao redor. Neste sentido, O som ao redor, assim como Coringa e Parasita, apresenta a violência contra os ricos como uma explosão individual, ora sem sentido, ora sem repercussão para além das contendas sociais traduzidas em enfrentamentos pessoais. Vive-se momentos prazerosos de vingança, mas de pouca ou nenhuma efetividade. Ao contrário. Se pensarmos no Coringa, o resultado daquela desordem ao fim do filme inevitavelmente será o fascismo. Em certo sentido, são filmes extremamente conservadores, pois se a violência aplaca a plateia, seu resultado é nulo.

Contudo, há um outro tipo de produção, que também nos permite expiar o ódio contra os ricos, mas que por outro caminho, também nos revela um outro drama de nossa época: a ausência de um sujeito social capaz de conduzir e organizar essa violência. De certa forma, estes filmes apontam não apenas para a miséria que vivemos, mas a miséria das soluções. Nesta vertente, o sobrenatural substitui o sujeito concreto da ação revolucionária, entendida esta ação como a violência organizada e construtiva contra os ricos. A injustiça é corrigida por uma intervenção sobrenatural, uma vez que nem a legislação vigente e nem a organização política dos explorados é capaz de dar conta de tamanha brutalidade a que estamos sendo submetidos. Atlantique (2019), de Mati Diop, talvez seja o mais emblemático destes filmes.

Dente por Dente (2020), dirigido por Pedro Arantes e Júlio Taubkin, com roteiro de Arthur Warren, exibido na 44ª Mostra de Cinema de São Paulo, apresenta-nos um thriller de terror com temática social muito bem executado e corre no mesmo sentido de Atlantique. Invertendo a ordem das coisas deste gênero, assim como em Atlantique, o terror se origina de uma realidade bem concreta. Em Dente por Dente, o pesadelo é o urbanismo excludente, mafioso e de péssimo gosto de São Paulo. Em uma espécie de A Hora do Pesadelo da justiça social, a intervenção do sobrenatural recai como uma maldição sobre os múltiplos agentes da especulação imobiliária e vai aos poucos vingando todos aqueles que lutaram e foram derrotados e soterrados pelos sofisticados empreendimentos imobiliários da cidade. Ainda que o apelo ao sobrenatural evidencie a miséria de soluções, ele ainda enxerga ânimo em um mundo sem coração e a perspectiva de salvação.

 


Expediente

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.
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