Ano 01 nº 28/ 2020: O Ensino Básico e a Pandemia - Dalmo Fernandes

Boletim 28


A conjuntura ...

 

O ENSINO BÁSICO E A PANDEMIA

 

Dalmo Alexsander Fernandes

Historiador - UNESP; professor de ensino médio da rede pública do Estado de São Paulo

 

É difícil descrever os impactos do corona vírus, pois ainda estamos vivendo tal pandemia e o horizonte não apresenta um final feliz, mas podemos afirmar que o vírus tem mudado de maneira brusca nosso estilo de vida e a maneira como nos relacionamos com o trabalho e os estudos, pois a “fronteira” entre casa, trabalho ou escola se desfez e tudo tem se resumido a uma pessoa e uma tela. Se antes do surto da doença tentávamos táticas para reduzir o uso de celulares e telas, debatíamos sobre desintoxicação digital e crises de abstinência tecnológica, atualmente a afinidade com a tela é obrigatória.

Como professor de história da rede pública do estado de São Paulo, percebo um período de incertezas e cheio de obstáculos com o ensino a distância (EAD) e os aplicativo para transmissão de aulas, pois eles determinam uma nova forma de relação entre a equipe gestora, as/os professoras/es e as/os estudantes.

aula

Fonte: Getty Images

Ao levar toda a dinâmica da sala de aula para uma tela, muitas questões devem ser levadas em conta, pois numa das maiores pandemias da história da humanidade, em meio a políticas neoliberais, com uma brutal intensificação das desigualdades sociais, raciais e de gênero através de políticas conservadoras, o ato de garantir bons conteúdos em aulas a distância e passar atividades através de plataformas digitais se mostra algo extremamente limitante e incoerente, pois reduz as oportunidades de debate e as possibilidades de empatia.

Em tempos em que a educação é encarada como mercadoria, seu único fim é satisfazer os interesses do mercado de trabalho sem incentivar nenhum tipo de questionamento, tudo se resume apenas em transmitir informações. Como mostra uma empresa de ensino a distância, ao justificar o uso de robôs para a correção de atividades:

[...] disponibilizar à sua comunidade acadêmica o que há de mais moderno e inovador no mercado, incluindo a adoção de diversas tecnologias da informação e da comunicação, [...] Comprometida com o propósito de transformar vidas promovendo o saber e a empregabilidade, a organização reforça que faz parte da autonomia universitária de suas instituições encontrar recursos para melhorar a aprendizagem de seus alunos, tendo o professor como parte fundamental nesse processo.1

Com tal panorama, os professores precisam é ter em mente que a escola é muito mais que um espaço físico que pode ser transformado em um post de um ambiente de sala virtual. Num país tão desigual e violento, a escola necessita se reconhecer como uma rede de proteção, necessária para formação crítica e humana, se preocupar com o acolhimento e com a saúde mental, pois nunca foi tão importante a atenção das/os profissionais para com as/os estudantes. Como afirma o professor de sociologia Alex Magri, da Escola Estadual Alexandre Von Humboldt:

Em termos de conteúdo, para mim este será um ano perdido [...]. Mas podemos trabalhar outras coisas: humanização, valores, consciência coletiva, o pensamento holístico, refletir sobre por que esse cenário acontece. Se professores e pensadores da educação se voltarem a entender a necessidade desse tipo de aprendizado diante desses problemas, pode sair coisa muito boa.2

O próximo passo é encontrar espaços de comunicação aberta em que os relatos não irão condicionar em notas ou frequências, mas sim para criar redes de afeto e conhecimento mútuo, pois o problema atinge a todas/os, não apenas as/os estudantes. Se estamos vivendo um momento tão singular é necessário que o tratemos como tal, somente dar sequência nos conteúdos programáticos nos tornará semelhantes a robôs que transformam estudantes em outros robôs. Na tentativa de uma didática que refletisse sobre momento atual pude ter contato com relatos de diferentes estudantes sobre esse período, analisando como suas vidas foram impactadas devido a pandemia.

A partir do relato de Ana Carolina 3, uma aluna de 14 anos da rede pública do estado, foi aplicada uma atividade que incentivava as/os estudantes a descreverem e refletirem sobre o impacto da pandemia em suas vidas e no ensino; uma aluna descreve sua rotina como algo “desgastante” e afirma: “muitas vezes me perco nas matérias, devido as pessoas da minha casa estarem fazendo barulhos ou algo do tipo e não conseguir pedir para o professor dar um feedback.”

ansiedade

Abaixo podemos consultar outros relatos, como problemas físicos e psicológicos, uma demonstração de consciência da realidade perigosa que estamos passando, a constatação de que o ensino a distância não é tão eficaz e os medos devido a cobranças por aprovação.

Com o meu sono desregulado por conta de atividades excessivas fica muito difícil se concentrar e aprender. Isso faz com que fique pensando em lições e tudo mais, angustiado, pois na maior parte do tempo estou solitário, sendo consumido por uma imensa ansiedade e pensamentos negativos gerados pela pandemia. Tenho ficado deprimido com extrema facilidade em momentos onde não tenho o que fazer.”

Tenho feito o máximo esforço possível para ficar em casa até porque minha única avó viva mora comigo e recentemente ela ganhou outro neto, então eu acho que eu seria muito ignorante colocar a vida dela em risco para o meu lazer e acabar podendo tirar o direito dela de curtir seu novo neto.”

Para ser bem sincera, não acho que esse EAD vai dar muito certo, o ano já está perdido para a maioria de nós, e isso é muito triste, pois eu mesma por exemplo já tinha planos para o ano que vem, meu último ano escolar, e agora estou aqui preocupada se irei repetir um ano inteiro, e nem vai ser por incompetência minha.”

Com essa quarentena perdemos nossas rotinas, tudo mudou, está sendo algo muito entediante, pelo fato de não ter nossa rotina de antes, hoje em dia eu já não consigo mais dormir cedo, muito menos acordar cedo, com o fato de só ficar em celular o dia todos, acabamos ficando com dores de cabeça e a visão prejudicada, tudo isso com relação ao uso executivo do celular.”

São trechos que evidenciam como as vivências de diferentes estudantes não estão sendo fáceis durante o isolamento social, e para continuarmos com qualquer projeto de aulas a distância ou para pensar no retorno às aulas presenciais essas falas devem ser levadas em conta, pois a educação existe para atender a necessidade de tais pessoas, não para satisfazer interesses de instituições governamentais ou empresariais. Nesse momento podemos citar a professora Nilma Limo Gomes:

Para que a escola consiga avançar na relação entre saberes escolares/realidade social/diversidade étnico-cultural é preciso que os(as) educadores(as) compreendam que o processo educacional também é formado por dimensões como a ética, as diferentes identidades, a diversidade, a sexualidade, a cultura, as relações raciais, entre outras. E trabalhar com essas dimensões não significa transformá-las em conteúdos escolares ou temas transversais, mas ter a sensibilidade para perceber como esses processos constituintes da nossa formação humana se manifestam na nossa vida e no próprio cotidiano escolar. Dessa maneira, poderemos construir coletivamente novas formas de convivência e de respeito entre professores, alunos e comunidade. É preciso que a escola se conscientize cada vez mais de que ela existe para atender a sociedade na qual está inserida e não aos órgãos governamentais ou aos desejos dos educadores.4

A professora Gomes não estava pensando sobre um momento de quarentena e isolamento social quando escreveu esse trecho, mas é uma fala importante para nos lembrarmos das principais motivações da educação. Se a escola tem como princípio o desafio de lidar com o avanço dos saberes escolares e ainda levar em conta as diferentes realidades, essa fala não pode ser perdida nesse momento, é necessário sensibilidade para perceber nossas limitações e os dilemas das/os estudantes. Mesmo afastadas/os devemos ter em mente que a escola ainda se faz necessária para atender à sociedade, difundindo respeito e humanização.

1 DOMENICI, Thiago. Laureate usa robôs no lugar de professores sem que alunos saibam. Pública, 30 abr. 2020. Disponível em: <https://apublica.org/2020/04/laureate-usa-robos-no-lugar-de-professores-sem-que-alunos-saibam/>. Acesso em: 7 maio 2020.

2 LIMA, Isabelle Moreira. Que sala de aula cabe em uma tela?. Gama, 3 maio 2020. Disponível em: <https://gamarevista.com.br/semana/filhos-e-telas/ensino-a-distancia-a-sala-de-aula-que-cabe-na-tela/>. Acesso em: 7 maio 2020.

3 Crianças e telas: Ana Carolina, 14. Entrevista com uma aluna sobre suas aulas a distância. 2’06”. Disponível em: <https://youtu.be/L6fkohMuugI>. Acesso em: 7 maio 2020.

4 GOMES, Nilma Lino. Educação e relações raciais: refletindo sobre algumas estratégias. In: MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo. 2ª Ed. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria Continuada, Alfabetização, 2005, p. 147.

 


Expediente

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Vivian Ayres, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Lincoln Secco e Marcela Proença.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
Endereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000

Email: mariaantoniaedicoes@riseup.net