Ano 4 nº 10/2024: Mês da Mentira - ENTREVISTA COM MARCOS NAPOLITANO - Fabiana Marchetti e Lincoln Secco

ano4-10

 

Mês da mentira...

 

Entrevista com o Historiador Marcos Napolitano, USP, 2024

 

Por Fabiana Marchetti e Lincoln Secco

 

Marcos Napolitano é professor titular de História do Brasil Independente na Universidade de São Paulo e autor de 1964: História do Regime Militar Brasileiro, publicado em 2014 pela Editora Contexto. É autor de vários livros e artigos sobre 1964, historiografia, cultura, cinema e ensino de História. É um dos mais importantes estudiosos brasileiros da temática que norteia nossa entrevista.

 

1. Marcos, vamos começar pelo seu livro mais importante sobre 1964. Na apresentação de sua obra, você menciona o intuito de “escrever para estudantes e pesquisadores de história sem menosprezar os eventuais interesses do leitor não acadêmico”. Essa intenção se refere apenas a recursos narrativos e formais aos quais o historiador deve recorrer para ampliar o alcance de sua produção, ou você considera que existem elementos metodológicos próprios do fazer acadêmico, da pesquisa em História, fundamentais para dar conta de tal articulação? Considerando apenas uma destas dimensões, ou ambas, em que medida estes recursos que você elegeu contribuem para esclarecer o senso comum e combater os atuais negacionismos em relação à ditadura?

Acho que a intenção de atingir um público mais amplo, “extramuros”, envolve as duas questões colocadas na pergunta. Ou seja, implica em articular recursos narrativos e perspectivas metodológicas de pesquisa. Para os estudantes e “pares”, importa tocar em pontos nodais do debate historiográfico, lançar novas perspectivas, ainda que este tipo de livro não permita expor a nervura do making of historiográfico (teorias, conceitos, diagnósticos arquivísticos e radiografias documentais). Já para o leitor não acadêmico, importa mais articular um determinado sentido narrativo do passado que está sendo examinado, com os devidos fundamentos historiográficos e fontes primárias que podem ficar no pano de fundo da narrativa, mas não são essenciais à leitura. Por isso, o livro tem mais de 500 notas historiográficas ao final do texto. Apesar do tom narrativo, o livro defende posições historiográficas claras e miradas críticas antiautoritárias, ainda que eu evite um tom muito proselitista ou militante. A ideia é analisar a ditadura, e não apenas adjetivá-la. Para mim, essa é a melhor forma de combater o negacionismo. É preciso partir do senso-comum, para transformá-lo em senso crítico (e voltando ser “comum”, rs).

 

2. Você é bastante direto em assumir algumas questões historiográficas sobre as quais irá se posicionar ao longo da obra. Gostaríamos de destacar aquela que se refere à diferenciação entre o caráter do Golpe de 1964 e o do regime que se instaura posteriormente, sendo o primeiro “civil-militar” e o segundo apenas “militar”. Você pode falar um pouco sobre estas duas caracterizações? Qual é a relevância de definir um posicionamento tão assertivo sobre essas caracterizações no debate historiográfico? Há efeitos deste debate no público não acadêmico?

A nomeação de um regime político, sobretudo de caráter autoritário e ditatorial, não é apenas uma questão cara a especialistas no tema. Não por acaso, os negacionistas se esforçam em intervir no nome que se dá aos processos históricos, não apenas na ocultação do seu conteúdo sensível e de responsabilidades institucionais e sociais pela violência perpetrada. A nomeação dos eventos e processos ligados a 1964 também estão mobilizando historiadores nos últimos anos. No caso do meu livro, acho que a escolha dos nomes “civil-militar” para o Golpe e “militar” para qualificar a essência do regime tenta cumprir a dupla função do livro. Posicionar-se diante do debate acadêmico e disseminar uma nomenclatura na cultura escolar e no senso comum que dê conta da natureza política dos dois processos. Entendo que o golpe foi o resultado de uma coalizão complexa de forças civis e militares, apoiados pelos Estados Unidos, com forte ativismo e liderança civil. Derrubado o governo Jango, a construção do regime passa a ser protagonizada, sob o ponto de vista político-institucional, por lideranças militares em torno das quais se mobilizavam importantes grupos civis (juristas, técnicos, empresários). A partir de então, o sistema decisório do regime foi cada vez mais militarizado, sobretudo a partir do AI-2, ou seja, antes mesmo dos “anos de chumbo”. Em outras palavras, tratou-se de um “regime de generais”, pois cabia a estes a última palavra nos processos político-administrativos e repressivos. Isso não significa inocentar as bases sociais e quadros civis que sustentaram a ditadura, mas tentar entender sua lógica de funcionamento enquanto “regime político”.

 

3. Como você vê as atitudes das principais lideranças civis antigolpistas no pré-1964, especialmente, certa polarização entre o presidente João Goulart e Leonel Brizola?

Há duas perspectivas no estudo do campo derrotado pelo Golpe de 1964. A primeira, destaca a fragmentação e o aparelhismo das esquerdas como responsáveis pela fragilidade da resistência ao golpe. A outra, enfatiza a radicalização protagonizada, principalmente pelo brizolismo, como um fator de enfraquecimento do Presidente da República, João Goulart, considerado, por outro lado, excessivamente moderado e conciliador. São perspectivas caras à memória das esquerdas derrotadas em 1964, mas que se constituíram em pautas historiográficas. Acho que temos que ir além. Fato é que, em 1964, o governo Jango perdeu a capacidade de articular lideranças em torno de um projeto reformista viável, com base parlamentar, que isolasse os golpistas e teve que se aproximar, sem ter o controle ou a liderança do processo, das massas e movimentos sociais. Mas as fontes conhecidas não autorizam dizer que ele planejava um “golpe”, como quer o revisionismo de direita. Recentemente, Daniel Aarão propôs o tema do “capitulacionismo” das esquerdas para explicar o comportamento das lideranças em 1964, mas ainda há muito que pesquisar sobre este ponto. Eu tenho uma hipótese pessoal sobre o “capitulacionismo”. Em primeiro lugar, acho que o governo João Goulart fazia parte de uma família política reformista cuja máxima poderia ser “dentro do Estado, tudo, fora do Estado, nada”. Ou seja, a falta de uma ordem para resistir ao golpe vinha desta tradição política que não arriscava mobilizar as massas para defender o governo golpeado, apoiando-se muito mais no apoio militar ou parlamentar para sustentar-se no poder. Foi assim em 1945 (neste caso, foi derrubada uma ditadura, ainda que em fase de aproximação com as massas trabalhadoras, é bom lembrar...) e em 1954. Em 1955, a parte legalista do Exército legalista deu o famoso “contragolpe preventivo” para garantir o cumprimento do resultado eleitoral ameaçado pela direita. Em 1961, a bem da verdade, Brizola destoou desta tradição, convocando a população para a defesa da Constituição, mas tinha ao seu lado grande parte do III Exército, legalista, e o mais poderoso da força terrestre. Além disso, a fórmula de superação da crise de 1961 foi parlamentar e conciliatória. Acho que em 1964 não houve ordem para resistir, pois quase todas as lideranças antigolpistas avaliaram que seria mais um golpe conjuntural seguido de um governo temporário, com a manutenção do calendário eleitoral. Neste caso, para azar da jovem democracia brasileira, o espaço da experiência criou um falso horizonte de expectativa. Além disso, nada garantiria que uma resistência popular, que chegou a se esboçar no dia 1 e 2 de abril, derrotaria os golpistas, bem mais organizados e articulados do que no passado.

 

4. E as principais lideranças civis golpistas: Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e Magalhães Pinto, a seu ver representavam quais interesses – pessoais, partidários, empresariais?

Acho que as lideranças civis citadas na pergunta eram uma mistura de interesses políticos pessoais – todos queriam ser presidente da República – com interesses de frações de classe, posto que eram lideranças burguesas importantes junto aos estados mais importantes da Federação. Mas acho que havia um grupo empresarial mais articulado em torno do chamado “capitalismo associado”, articulado pelo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) que preferia um regime mais “tecnocrata” e de longo prazo, menos sujeito a ambições personalistas e aos imprevistos do voto popular. Talvez, Magalhães Pinto fosse mais próximo destes grandes grupos. Os militares golpistas, sobretudo aqueles ligados à Escola Superior de Guerra, captaram a essência deste projeto que só poderia ser desenvolvido sob tutela autoritária, burocrática e militar. Não havia espaço para lideranças carismáticas, nem de direita.

 

5. Parte destas lideranças, que então se opunham, unem-se em 1966 na formação da Frente Ampla. Qual é a principal motivação dos elementos golpistas a essa mudança de posição? Segundo suas pesquisas, ela encerra realmente o apoio civil ao regime?

A Frente Ampla é um tema que necessita mais pesquisas no campo da História Política. Em princípio, entendo que sua criação demarca um reordenamento definitivo de forças dentro da coalização golpista e o afastamento de lideranças civis em relação ao governo militar. Ou seja, a Frente Ampla foi a tentativa de lideranças políticas civis de voltar para a cena política principal, incluindo golpistas arrependidos que não se sentiram contemplados com o desenrolar do processo político. Mas acho que faltava à Frente Ampla um efetivo apoio social. Não por acaso, quando a questão estudantil explodiu em 1968, e parte da sociedade civil voltou às ruas para protestar, o governo militar dissolveu por decreto a Frente para evitar que o barulho das lideranças civis se encontrasse com o barulho das ruas, ainda que os estudantes fizessem parte de outro espectro ideológico.

 

6. Qual o lugar do empresariado nacional entre estes dois grupos e momento da ação civil?

Acho que é preciso pensar o empresariado, como ator político coletivo, a partir de suas tensões internas, agendas setoriais e pautas comuns. A história da conspiração, do golpe e do regime, expressou estas tensões e contradições. Obviamente, como parte da “burguesia” genérica, o empresariado tem medo e ojeriza a processos sociais radicalizados e protagonizados por trabalhadores. Mas seu posicionamento político, mais ou menos conservador, mais ou menos abertos a reformas sociais, não é monolítico. No caso dos acontecimentos do golpe e da fase inicial da ditadura, o setor financeiro e o setor ligado ao capitalismo associado (empresas multinacionais e grandes grupos nacionais a elas ligados) sustentou o regime. Para estes grupos interessava uma “racionalização” do Estado brasileiro na direção de um desenvolvimentismo tecno-burocrático, com exclusão e controle dos movimentos sociais, para evitar que o custo social da modernização se transformasse em “conflitos distributivos” interclasses, tão comuns ao pré-Golpe. Depois de alguns conflitos iniciais (exemplo: proposta do Estatuto da Terra em fins de 1964), os militares souberam incorporar os latifundiários – que era o setor mais reacionário e antipopular – ao projeto modernizador. As grandes construtoras e empreiteiras se beneficiaram das políticas do regime, além deste setor ser, tradicionalmente, governista (rs). Por outro lado, setores do pequeno e médio empresariado tinham uma relação mais conjuntural com o regime, pois eram mais sensíveis a questões de crédito e inflação. De todo modo, com o fim do “milagre” e com o novo tipo de planejamento econômico pós-Geisel, focado em bens de capital, aprofundou-se a divisão no campo empresarial, com o surgimento de empresários que defendiam a desestatização da economia e o aprofundamento das liberdades públicas.

 

​​​7. E os militares. A historiografia reconhece de modo relativamente consensual a existência a cisão entre “legalistas” e “golpistas” nas crises do período pós-1945, até a posse de Goulart em 1961, que caminhou para a unidade entre os dois grupos em 1964. A que se deve esta virada? A seu ver, como devem ser tratados os expurgos internos que as Forças Armadas tiveram de executar ao longo da ditadura? Eles foram apenas residuais?

A historiografia sobre os militares avançou muito a partir dos anos 1990. Neste ponto, eu sempre destaco um livro que, incrivelmente, não é tão conhecido como deveria – O Palácio e a Caserna, de João Roberto Martins Filho. Este é um trabalho que aponta para a necessidade de superar a visão dicotômica das Forças Armadas e sua visão como “poder moderador” modulado conjunturalmente por questões corporativas, visão em grande parte herdada dos trabalhos de Alfred Stepan. Mas até 1964, é plausível analisar as Forças Armadas a partir das tensões entre nacionalistas e associativistas (chamados de “entreguistas” à época) ou entre “legalistas” e “golpistas”. No geral, as principais lideranças do generalato eram nacionalistas e legalistas, mas também se viam como tutores da política. Entre 1945 e 1961, o padrão de intervenção era pontual, derrubando governos, mas mantendo calendários eleitorais. Mesmo em 1964, a promessa dos líderes militares golpistas era devolver o poder aos civis, mediante eleições, em dois anos. Mas, na minha opinião, já havia em 1964 um projeto de reformar o Estado, que exigiu outro padrão de intervenção militar, mais de longo prazo. Talvez tenha sido isso, ao lado das famosas “ameaças à hierarquia”, que uniu os militares: a possibilidade de uma reforma política e administrativa do Estado capaz de criar mecanismos institucionais de “estabilização autoritária” na vida política brasileira e destravar uma versão associada ao capitalismo multinacional do “desenvolvimentismo”. É uma hipótese. Para tal, foi preciso expurgar os bastiões de esquerda da tropa (sobretudo entre cabos e sargentos) e lideranças nacionalistas na alta oficialidade. Nesse sentido, os expurgos não foram residuais, mas cirúrgicos, concentrados nos dois primeiros anos do regime. Eles moldaram um novo Exército para uma nova política.

 

8. É flagrante em seu texto a importância dada ao alto grau de institucionalização e complexidade da estrutura do aparato repressor. Havia duas esferas da repressão: a “comunidade de informação e segurança”, sob direção do SNI, e as polícias políticas, sistema Codi-Doi, orientados pelo Centro de Informações do Exército (CIE). Instâncias com relativo grau de autonomia, mas que compreendiam um sistema unido pela “utopia autoritária”. Dada a importância da estrutura institucional dos serviços de vigilância e inteligência, não parece contraditório considerarmos, ainda, o governo de Castelo Branco, assessorado por Golbery do Couto e Silva – principal responsável pela criação do SNI – como um possível governo tampão, representante da ala menos radical, ou “branda”, em relação à linha dura que assumiria a partir de 1968/1969? As medidas institucionais tomadas desde este governo não sinalizam uma visão autoritária de Estado e sociedade de longo prazo – algumas delas que sobrevivem até hoje?

Esse é precisamente o centro da minha hipótese: paralelo à conspiração, já se elaborava um projeto autoritário de longo prazo, sobretudo pela articulação do IPES (think tank da direita) com o núcleo militar da ESG. Lembro que esta visão já estava esboçada desde os anos 1980 na Ciência Política, mas foi colocada de lado por teses que vieram depois, como a do “golpe reativo”, sem projeto de poder, e da repressão “improvisada” e “branda” pré-AI-5. Sem dúvida, após o AI-5 e a eclosão da luta armada, a repressão ficou mais integrada e a violência mais sistemática. Mas acho que a chamada fase “branda” da ditadura, construída por uma certa memória liberal que apoiou o golpe e depois percebeu a encrenca na qual o país se meteu, já abrigava um regime autoritário, com uma sistemática violência institucional e policial, mas com uso ainda pontual do “terror de Estado”. A partir do AI-5, aprofunda-se a lógica autoritária, com a militarização da administração pública e a construção de um aparato repressivo ilegal, combinado com a repressão legalizada sob a lógica da Segurança Nacional. Esse aparato repressivo fundamentou-se no terror de Estado, marcado por quatro operações ilegais: prisões sem mandato de suspeitos, interrogatórios policiais sob tortura (transformada em “sistema” com método), execuções extrajudiciais e desaparecimento forçado. A esse momento (1969-1976), a memória social nomeou como “anos de chumbo”. Em resumo, o regime sempre foi ditatorial e autoritário, usou e abusou de cassações, censura, tutelas da Presidência da República sobre o sistema político como um todo, vigilância e repressão sobre movimentos sociais, mas com modulações no uso do terror de Estado.

 

9. Você declara ter o intuito de se distanciar das dicotomias entre “mocinhos” e “vilões” para compreender os principais agentes da ditadura e da resistência, e a relação da sociedade civil, de um modo mais amplo, com estes personagens, grupos e instituições. Esta perspectiva não pode ser confundida com uma leitura “não-revanchista” sobre o período que, afinal, foi aquela que se pretendeu construir a partir do processo negociado de abertura?

É sempre um risco ser lido desta maneira quando se defende e se pratica uma historiografia mais distanciada e objetiva, como a que eu tento desenvolver na narrativa do livro. Tenho como princípio que o engajamento do historiador deve se concentrar nas escolhas de agendas e perguntas, mas a análise, em si, deve ser o mais distanciada e objetiva possível, resguardados alguns limites ético-políticos. No caso do livro sobre 1964, para qualquer leitor mais atento, não há nenhuma relativização ou matização em relação à violência de Estado e ao autoritarismo do regime. Tampouco em relação ao caráter criminoso e abjeto da tortura como prática repressiva contra opositores. Dito isto, não adianta ficarmos, passados 60 anos do golpe e quase 40 anos do fim do regime, analisando a ditadura a partir de simplificações narrativas, clichês e adjetivações, sem entendermos as contradições do processo histórico e do processo político. Um olhar dialético sobre a ditadura e sobre a sociedade como um todo, pressupõe aprofundar o exame das suas contradições, ainda que se condene, por princípio, as opões políticas do autoritarismo e se respeite as memórias das vítimas. Essa visão mais complexa dos conflitos políticos e ideológicos do período não nos exime de apontar a grave ausência de uma justiça de transição que foi chamada de “revanchista” pelos militares. Mas também não podemos deixar de apontar que muitas forças progressistas e de esquerda, no processo de transição, optaram por uma realpolitik e não priorizaram a luta por uma justiça de transição, que ficou concentrada nas associações de vítimas e familiares. As prioridades eram outras, à época. Enfim, a historiografia não pode fugir a estas questões complexas e contraditórias que não se resumem a uma luta moral do bem contra o mal a ser chancelada pelo historiador, mas envolve conflitos e decisões políticas de sujeitos históricos pressionados pelo seu tempo. Além disso, essa narrativa histórica mais simplista, hoje em dia, acaba sendo uma aliada involuntária do negacionismo e do revisionismo ideológico, sobretudo em sala de aula.

 

10. O famoso ensaio “Cultura e Política. 1964-1969” de Roberto Schwarz antecipou uma dicotomia que parece cara à sua obra: a convivência entre uma ditadura de direita e a presença da esquerda em aparelhos de hegemonia como TV, jornais, editoras, gravadoras, universidades etc. Recentemente, Dainis Karepovs lançou uma bibliografia do marxismo no Brasil que mostra o crescimento das publicações marxistas entre 1964 e 1968. No entanto, a experiência bolsonarista colocou uma suposta guerra cultural no centro de sua estratégia, a ponto de no final de 2023 José Dirceu ter dito que a esquerda governa, mas a extrema direita tem hegemonia na sociedade. À luz da conjuntura atual e da sua experiência como historiador, como você pensa essa possível inversão de papeis?

Os processos culturais brasileiros do século XX e início do XXI, e particularmente aqueles vividos no período das duas ditaduras, constituem grandes desafios explicativos para historiadores e professores de História. Aliás, eles exemplificam aquilo que eu já respondi sobre a necessidade de superar clichês para explicar a ditadura. Em relação à pergunta, tenho algumas considerações, mais do que uma resposta objetiva. O golpe ocorreu em um momento em que a pauta modernista (identidade nacional-popular, intelectual como mediador da nacionalidade, abertura ao experimentalismo estético em diversos graus de ousadia), encontrava-se com uma agenda democratizante mais à esquerda, de “ida ao povo”. Os primeiros anos pós-golpe ainda foram a “floração tardia” deste processo, como diz Schwarz. Mas, ao mesmo tempo, como parte do processo de modernização geral imposta pela política do regime, a indústria cultural começou a se estruturar de maneira mais impactante, a começar pelas indústrias fonográfica e editorial, e pela televisão. A produção e o consumo nestas e outras áreas de ponta da cultura foi protagonizada principalmente pela classe média escolarizada e universitária que, embora minoritária no conjunto da sociedade, era a fatia mais lucrativa do mercado cultural. Sérgio Miceli já apontou esta contradição em um texto publicado nos anos 1990. Qual o resultado desta situação sociológica estrutural? A produção de conteúdos voltados para uma classe com tendência progressista em meio a uma ditadura modernizante que não tinha intelectuais orgânicos capazes de dialogar com esta faixa da sociedade. Acrescente-se a isso, um influxo progressista em nível mundial na cena cultural do Ocidente, central e periférico, com a revolução de costumes, contracultura e revolução sexual. Essa combinação de fatores estruturais e valores estéticos lastreou uma hegemonia cultural mais progressista que, paradoxalmente, ocorreu em meio a uma ditadura. Entretanto, há armadilhas neste processo, como eu tentei apontar no meu livro Coração Civil[1]. Havia fortes divisões ideológicas no campo cultural progressista, embora todos se vissem como parte de uma “resistência” genérica. Além disso, a “cultura de resistência” estava mais próxima do radicalismo progressista (no sentido que Antônio Candido definiu o termo) do que de uma esquerda revolucionária e marxista. Na perspectiva dos militares, essa produção cultural progressista não oferecia grandes perigos políticos, desde que ficasse circunscrita aos círculos da classe média escolarizada. Tanto foi assim que o esforço repressivo entre 1964 e 1968, no campo cultural, se concentrou em dissolver movimentos coletivos de intelectuais e artistas e evitar conexões com as classes populares (sobretudo, operários) em circuitos fora do mercado. De todo modo, essa hegemonia, dentro de todos estes limites, acabou minando as tentativas ideológicas de legitimação da ditadura, consolidando uma memória crítica do período. É essa memória que é combatida pela extrema direita atual. Tenho dúvidas se a direita tem a “hegemonia” na sociedade brasileira atual, embora, sem dúvida, tenha ganhado o coração da maioria da população de tendência conservadora. Mas lembremos que “hegemonia” não significa “maioria”. Os setores progressistas ainda têm muita importância nos sistemas culturais, artísticos e educacionais mais institucionalizados, embora a direita conservadora controle áreas importantes da vida brasileira (sistema político-parlamentar, operadores de segurança pública, igrejas cristãs, setores populares da mídia etc.).

 

11. Voltando à questão institucional, você não acha que ela reflete uma certa hegemonia da Ciência Política na produção acadêmica sobre 1964? Quais objetos ou perspectivas de análise podem ser considerados contribuições próprias da historiografia? E quais ainda poderão ser tratados pelos historiadores atuais e futuros?

Entre os anos 1960 e 1970, a Sociologia Política, estruturalista, weberiana ou marxista, pautava o debate acadêmico sobre o golpe e o regime. A partir dos anos 1980, a perspectiva institucionalista, de matriz liberal-progressista, oriunda da academia estadunidense, deu o tom das análises políticas, concentrando-se na análise dos atores institucionais e dos jogos políticos formais. Mas também nos anos 1980, a “sociologia do ator”, mais à esquerda, foi muito importante para analisar o papel dos movimentos sociais que surgiram contra a ditadura. Eu diria que os primeiros trabalhos de historiadores de ofício sobre a ditadura foram tributários das análises e perspectivas destes outros campos disciplinares. Entretanto, os historiadores foram responsáveis pela afirmação de temas específicos no campo acadêmico, como por exemplo, a história das conexões internacionais do golpe de 1964 e a história da luta armada. Além disso, na virada do século, os historiadores de formação entraram com muita força nos estudos sobre a estrutura e métodos da repressão e discursos autoritários (censura, vigilância, terror de Estado, propaganda política) e sobre a vida artístico-cultural. Mais recentemente, começaram a proliferar os estudos sobre memória da ditadura e sobre a repressão a grupos sociais específicos (mulheres, homossexuais, lésbicas, negros, indígenas). Em resumo, via de regra, os historiadores deixaram de fazer uma história política e social mais ampla e global, mas contribuíram com temas específicos importantes. Acho que o grande desafio para o futuro é propor uma nova história política do golpe e da ditadura, pois nestas áreas ainda precisamos construir perspectivas diacrônicas menos dependentes da Ciência Política e da Sociologia Política. Por exemplo, pensar o golpe em suas dimensões plurais, para além de uma crise institucional provocada por uma suposta “radicalização dos atores”. No livro, eu proponho uma análise que vê o golpe de 1964 como processo histórico aberto, indeterminado, combinando rebelião social conservadora, rebelião militar, imobilismo do governo e, finalmente, golpe parlamentar. Outro ponto importante de uma nova história política é pensar o processo de reconquista da democracia para além de um jogo institucional entre governo e oposição, com marchas e contramarchas históricas marcadas por certa “indeterminação” do processo e formato final.

 

12. Uma leitura "forte" da ditadura foi a marxista, tanto em obras de dirigentes políticos quanto de historiadores. Mas ela também perdeu fôlego ao longo do tempo. A luta de classes cedeu lugar à cidadania, o tipo de militância mudou e temos hoje uma esquerda pós-industrial, que prioriza temas relativos às minorias sociais, por vezes tratados como identitários. Você ainda vê espaço para as análises marxistas?

Acho que ainda há espaço para qualquer análise crítica, à luz de novas fontes, objetos e perguntas, não importa tanto a matriz teórica. Enfim, não acredito na “boa teoria” que responde todas as questões históricas. O que aconteceu com a perspectiva marxista, na minha opinião, foi a acomodação a uma narrativa genérica e valorativa sobre a ditadura, com a dificuldade de analisar aspectos da vida política e cultural para além de um certo economicismo reducionista das mediações sociais. Ou seja, essa perspectiva até pode acertar no “atacado”, mas deixa a desejar no varejo. O marxismo como macronarrativa que se contenta com a “grande teoria”, mas que prescinde das fontes, no fundo, abre mão da dialética (que é o mergulho nas contradições específicas do tempo, anda que dentro de uma lógica geral de análise). Assim, ele deixa de captar processos sociais específicos, jogos de escala, contradições que não podem ser reduzidas a análises morais ou interesses estritamente econômicos. Mas, diga-se, os grandes autores marxistas nunca caíram nesta cilada. Há autores clássicos do campo que precisam ser revisitados, até porque seus trabalhos ainda têm muito a dizer, desde que devidamente contextualizados, como Florestan Fernandes, Caio Prado e Rene Dreifuss.

 

[1] NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil: A Vida Cultural Brasileira Sob o Regime Militar (1964 a 1985). Ensaio Histórico. São Paulo: Intermeios, 2017.


Comitê de Redação: Adriana Marinho, Clara Schuartz, Gilda Walther de Almeida Prado, Marcela Piloto de Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Carlos Quadros, Dálete Fernandes, Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Deaecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
Endereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000
E-mail: maboletim@usp.br