A conjuntura ...
DOSSIÊ CUBA EM DEBATE: RÉPLICAS
Nesta edição trazemos duas críticas ao texto de Alice Rossi e Lincoln Secco sobre Cuba, "O Bloqueio a Cuba: elemento estrutural da crise", publicado neste boletim.
AINDA SOBRE CUBA E A DIALÉTICA DA REVOLUÇÃO: PARA LINCOLN E ALICE
Joana Salém Vasconcelos | Doutora em História Econômica - USP
SOBRE O DEBATE ENTRE JOANA SALÉM VASCONCELOS, DE UM LADO, E ALICE ROSSI E LINCOLN SECCO, DE OUTRO, SOBRE MANIFESTAÇÕES DE RUA EM CUBA NO MÊS DE JULHO DE 2021
Marisa de Oliveira | Professora de língua portuguesa, mestre em História Social - USP e membro do GPLIMES - FEUSP
Leia os textos abaixo
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AINDA SOBRE CUBA E A DIALÉTICA DA REVOLUÇÃO: PARA LINCOLN E ALICE Joana Salém Vasconcelos | Doutora em História Econômica - USP
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A estudante Alice Rossi e o historiador Lincoln Secco (que além de ter sido meu professor, é um amigo), publicaram no Boletim Maria Antônia um texto chamado “O bloqueio à Cuba: elemento estrutural da crise”, com objetivo de criticar minha leitura sobre os últimos acontecimentos em Cuba registrada no artigo “Raiva popular em Cuba” de 12 de julho, publicado originalmente no site da revista Movimento e republicado no mesmo boletim. Em consideração aos autores e às editoras do boletim, com quem compartilho mais de uma década de debates no GMarx, escrevo uma resposta do mesmo tamanho.
1.
A interpretação que Alice e Lincoln deram ao meu artigo está equivocada e resulta de uma leitura simplificadora do meu argumento. Os autores apontam que eu teria reduzido a importância do bloqueio na crise cubana. Deveriam ter percebido, porém, que meu artigo tem como premissa declarada que o bloqueio é o “elemento estrutural da crise”. Partindo desse consenso, me propus a avançar para outro recorte da realidade, sem o qual não é possível explicar o 11J. Aliás, essa premissa é consensual em todo universo do pensamento crítico, incluindo minhas pesquisas e publicações, que foram claramente desconsideradas pelos autores para tal conclusão. Partindo desse equívoco, Alice e Lincoln reiteram em seu texto uma afirmação consensual, produzindo uma falsa polêmica. O método que utilizam, contudo, é problemático: lançam mão da unidimensionalidade das explicações históricas, uma vez que o caráter estrutural do bloqueio (ponto consensual) é utilizado como subterfúgio para se desviar do aprofundamento crítico nas demais determinações da realidade cubana. Ora, se o professor Lincoln há anos nos ensina sobre a “síntese das múltiplas determinações”, há de concordar com os pontos a seguir.
2.
O bloqueio é a causa estrutural da crise: a partir disso, para onde vamos? Meu texto foi escrito no dia 12 de julho, data em que deve ser devidamente contextualizado (voltarei a isso depois) e tinha objetivos muito específicos. Tratava-se de uma explicação conjuntural rápida, no calor dos acontecimentos, para acrescentar ao debate elementos que pareciam ausentes ou subdimensionados. Quais? Primeiro, era importante evitar rotulações reducionistas sobre os eventos de 11 de julho, porque nem todos os manifestantes eram “mercenários” (o que foi sugerido por Miguel Diaz Canel no mesmo domingo). Segundo, as insatisfações econômicas têm muitas camadas de causas, sendo a mais imediata os efeitos colaterais da Tarea Ordenamiento. Ao tentar corrigir problemas importantes, essa medida se tornou um novo catalisador de dificuldades cotidianas - num contexto em que se somam bloqueio, pandemia e crise do turismo (múltiplas determinações). Terceiro, em perspectiva histórica, a coesão social cubana foi a fortaleza política mais importante para longevidade da revolução, proporcionada pela capacidade de diálogo entre partido e sociedade e pelo extraordinário dinamismo do poder popular. Hoje estes mecanismos não têm a mesma eficácia que antes; e a produção de consensos orgânicos é um esforço desafiado pela transição geracional (do poder e da juventude) que precipita novas tensões. Quarto, a legitimidade dos protestos em defesa de conquistas de bem-estar proporcionadas pela própria revolução estava sendo fustigada pelo oportunismo imperialista e por ações de guerra híbrida, sobre os quais não devemos ter qualquer ingenuidade.
3.
Infelizmente, os autores não quiseram analisar as múltiplas camadas dos meus argumentos e tampouco tocaram no debate cubano sobre os desafios econômico-monetários, as dificuldades cotidianas, os sentimentos de insatisfação concretamente existentes, as formas do poder popular, o terreno fértil para manobras imperialistas sem o qual estas pouco representariam. Ao reduzir a única luta possível ao fim do bloqueio, como fator unidimensional absoluto, se esquivam de debater os desafios do socialismo real cubano, dependente e periférico. O bloqueio, afinal, não vai acabar agora. Lutar contra o bloqueio é como lutar pelo impeachment de Bolsonaro: justo, necessário e insuficiente.
4.
Foram os cubanos que mostraram ser possível criar uma agenda emergencial interna de ação política e trabalho social depois do 11J: em 16 de julho, o governo declarou medidas de emergência econômica contra a escassez, como a abertura das alfândegas 1.1 e a garantia de cestas básicas para mais de 200 mil cubanos não cadastrados no Ministério de Interior1.2. No dia 26 de julho, a União da Juventude Comunista (UJC), anunciou a criação de 220 Brigadas Juvenis de Trabalho Social (BJTS), que atuarão a partir de agosto em 302 bairros pobres de Cuba, com fortalecimento comunitário e prestação de serviços de saúde, educação, construção civil e assistência social1.3. Além disso, o governo criou um sistema de distribuição de novos módulos gratuitos de alimentos a partir de 30 de julho, para atenuar as filas e os desafios diários da segurança alimentar1.4. Em resposta ao 11J, outros países também tomaram novas medidas de solidariedade: em 21 de julho, Cuba e China assinaram novos acordos de cooperação econômica e tecnológica, com foco na segurança alimentar e energia renovável1.5; e no dia 24 de julho, dois aviões russos chegaram à ilha com 88 toneladas de alimentos e medicamentos1.6. É a sociedade cubana que dirá se isso é o suficiente. A margem de manobra da revolução sempre foi estreita e, no entanto, nunca a impediu de pulsar políticas criativas para solução de problemas e exercer sua soberania como nenhum outro país do continente. Ignorar as possibilidades e dilemas internos é desconsiderar a própria agência da revolução cubana.
5.
Cuba é uma fortaleza sitiada, como dizia Fidel. Mas Fidel também foi o grande analista das contradições internas, com sua honestidade autocrítica e sua extraordinária capacidade dialógica. Se o governo revolucionário não tivesse nenhuma margem de decisão econômica e responsabilidade política, ainda que estreita, o socialismo cubano não estaria vivo hoje. O bloqueio é um monstro que está sendo misteriosamente derrotado há 60 anos por causa dessa agência interna. A política popular dentro de uma margem de manobra estreita e a compreensão dialética dos desafios internos de uma fortaleza sitiada é o grande legado do pensamento político de Fidel Castro.
6.
Nesse sentido, o debate cubano precisa ser mais acessado por Lincoln e Alice, de modo que os dilemas do socialismo dependente não sejam reduzidos ao unidimensional: o bloqueio que tudo explica, o fim do bloqueio que tudo resolve. Sugiro três leituras que evocam tais debates. O “Dosier Cuba: 11 de Julio” e o “Cuba. Nuevo dosier”, do portal Sin Permiso; além do artigo de Camila Piñero Harnecker, “Distintas visiones del socialismo que guían los cambios actuales en Cuba”1.7. As contradições e desafios internos do socialismo é um tema dinâmico de debate entre cubanos. No Brasil, são temas semi-interditados.
7.
Lincoln e Alice questionam o caráter “popular” dos protestos de 11 de julho fazendo uso de um procedimento abstracionista, ao insistir que se trata uma “adjetivação questionável”. No lugar, porém, não explicam quem eram as pessoas que participaram dos protestos e porque não podem ser consideradas “povo”. Eram todos “mercenários” e “contrarrevolucionários” financiados por Miami? Ora, dessa vez é Miguel Diaz Canel quem discorda de Lincoln e Alice quando, no dia 11, caracterizou dessa forma os manifestantes de San Antonio de los Baños: “eram compostos por pessoas do povo que tem necessidades, que estão vivendo parte destas carências, destas dificuldades”, “pessoas revolucionárias que podem estar confusas (...); pediam uma explicação, e o primeiro que diziam era: eu sou revolucionário, eu apoio a Revolução”1.8. Constatar que existiam “pessoas do povo” nos protestos em Cuba, expressando a emergência do cotidiano muito mais do que um cartaz “abaixo a ditadura”, não significa ignorar os elementos de oportunismo imperialista e agitação golpista. Novamente, essa tensão está diretamente analisada no meu artigo, mas Lincoln e Alice se esquivam dessa complexidade.
8.
Nesse ponto do “popular”, me detenho um pouco mais, pois considero um erro grave. Seguindo a linha de raciocínio de Alice e Lincoln, a palavra “popular” só pode ser utilizada para caracterizar uma determinada maioria social. Só uma visão homogeneizante e abstrata do “povo” normatiza dessa forma o uso da palavra “popular”. Thompson chamou esse procedimento de “leninismo platônico” – a ideia de um povo homogêneo que carrega o bastão revolucionário e fora do qual não existe povo. Ora, se o próprio governo cubano reconheceu “pessoas do povo” no dia 11, por que os autores se apegam a esse platonismo? Ao rechaçar o uso da palavra “popular” para expressões de heterogeneidade, insatisfação e/ou discrepância, os autores mostram um perigoso gérmen de autoritarismo em seu raciocínio. Esse gérmen se revela mais inteiramente, quando escrevem: “a sugestão de Joana Salém de que a crise política interna pode ser sanada a partir de uma abertura de canais de diálogo por parte do governo cubano não nos parece uma boa ideia”. Ora, a abertura de novos canais de diálogo entre as autoridades cubanas e a população vitimada pelo bloqueio deveria ser um pressuposto para quem considera o bloqueio um elemento estrutural e, portanto, sem solução de curto prazo. A não ser que se admitam repressões que evocam o stalinismo, mas estão distantes do modus operandi dialógico da própria revolução cubana e da liderança de Fidel Castro.
9.
Cuba é um dos países com maior grau de consenso social da América Latina, o que foi demonstrado pela aprovação de 86% da nova Constituição de 2019, dando fôlego a um triunfo político iniciado em 1959. Que este consenso não esteja hoje na sua melhor performance, é reconhecido por intelectuais cubanos respeitados como Rafael Hernández, diretor da revista Temas. Dele, recomendo o recente artigo “Conflicto, consenso, crisis. Tres notas mínimas sobre las protestas”. 1.9.
10.
Por fim, há um detalhe final que é problemático na crítica de Alice e Lincoln: desconsideram a data do meu artigo ao apontar que não dei atenção às convocatórias governamentais massivas. Foram efetivamente importantes, mas se consolidaram só uma semana depois do meu texto. Esse ponto da crítica feriu a cronologia e incorreu no pecado capital dos historiadores: o anacronismo. Como afirmei em diversas ocasiões posteriores ao texto do dia 12 de julho1.10, o Partido Comunista de Cuba conseguiu no curto prazo estabilizar a situação em termos relativos, justamente porque a revolução cubana tem agência interna e porque o partido ainda exerce hegemonia na sociedade.
11.
Concluo com uma longa citação de Rafael Hernández, que talvez fosse o suficiente para Lincoln e Alice:
“Las protestas ofrecen lecciones a todos los que quieran leerlas. Podrían enseñar a algunos economistas que el éxito de las reformas no depende solo de resolver técnicamente la planificación, el mercado, la empresa estatal socialista o el sector privado, sino de abordar problemas como la redistribución del ingreso, la estratificación del consumo, los espacios económicamente “luminosos” u “oscuros” colindantes, las desigualdades y retrancas territoriales y locales, el estado de las fuerzas productivas llamadas los trabajadores. Han demostrado además a los políticos que el problema de la unidad nacional es el del consenso, y que no se resuelve únicamente con convocatorias y movilizaciones de revolucionarios, sino mediante el diálogo sostenido con todos los ciudadanos. Han evidenciado a los aparatos del Partido, una vez más, que la eficacia de un sistema de medios públicos no es ideológica, sino política, y que se mide por su credibilidad y capacidad de convencimiento (a los no convencidos, naturalmente). Han confirmado que las fuerzas del orden pueden proveer primeros auxilios a los brotes de violencia, pero a costa de otros daños, y que no son ellas las que deberían lidiar con los problemas sociales y políticos donde se arraiga el disentimiento. Finalmente, les ha demostrado a los políticos estadounidenses que sus alianzas con esta oposición belicosa refuerzan la línea dura de los dos lados, y daña el ejercicio real de la libertad y los derechos humanos en Cuba. El denominador común de estas lecciones es la sociedad cubana, con sus luces y sus sombras. Saber descifrar su presente, sin hojas de ruta bipolares, decidirá lo que vendrá”.
31 de julho de 2021
1.1 VÉLEZ, Alejandro Martínez. Artigo: Cuba autoriza excepcionalmente a viajeros la importación de alimentos y medicamentos sin límites ni aranceles. Europa Press, 15 jul. 2021. Disponível em: <https://www.europapress.es/internacional/noticia-cuba-autoriza-excepcionalmente-viajeros-importacion-alimentos-medicamentos-limites-aranceles-20210715015155.html>. Acesso em: 03 ago. 2021. 1.
1.2 FALCÓN, Randy Alonso, et. al. Artigo: Detalles sobre las medidas económicas anunciadas por el Gobierno cubano (+ Video). Cubadebate - Contra el Terrorismo Mediático, 16 jul. 2021. Disponível em: <http://www.cubadebate.cu/noticias/2021/07/16/nuevos-detalles-sobre-las-medidas-economicas-anunciadas-por-el-gobierno-cubano-video/>. Acesso em: 03 ago. 2021.
1.3 PEREZ, Carlos Cabrera. Artigo: UJC: Cuba tiene 302 barrios y pueblos empobrecidos. CiberCuba, 04 jul. 2021. Disponível em: <https://www.cibercuba.com/noticias/2021-07-04-u207888-e207888-s27061-prensa-oficialista-reconoce-cuba-casi-todo-vende-mlc?next_infinite_amp=1>. Acesso em: 03 ago. 2021.
1.4 FALCÓN, Randy Alonso, et. al. Artigo: En detalles, entrega de módulos gratuitos y otras novedades del comercio interior en Cuba. Cubadebate - Contra el Terrorismo Mediático, 30 jul. 2021. Disponível em: <http://www.cubadebate.cu/noticias/2021/07/30/en-detalles-entrega-de-modulos-gratuitos-y-otras-novedades-del-comercio-interior-en-cuba/>. Acesso em: 03 ago. 2021.
1.5 ARTIGO: China se ratifica como segundo socio comercial de Cuba. Cubadebate - Contra el Terrorismo Mediático, 21 jul. 2014. Disponível em: <http://www.cubadebate.cu/noticias/2014/07/21/china-se-ratifica-como-segundo-socio-comercial-de-cuba/>. Acesso em: 03 ago. 2021.
1.6 ARTIGO: Rusia envía 88 toneladas de ayuda humanitaria a Cuba. Deutsche Welle (DW), 24 jul. 2021. Disponível em: <https://www.dw.com/es/rusia-env%C3%ADa-88-toneladas-de-ayuda-humanitaria-a-cuba/a-58626649>. Acesso em 03 ago. 2021.
1.7 DELGADO, Jessica Dominguez, et. al. Artigo: Cuba: 11 de julio - Dossier. Sin Permiso, 18 jul. 2021. Disponível em: <https://www.sinpermiso.info/textos/cuba-11-de-julio-dossier>. Acesso em 03 ago. 2021; SANTANA, Ailynn Torres, et. al. Artigo: Cuba - Nuevo dossier. Sin Permiso, 25 jul. 2021. Disponível em: <https://www.sinpermiso.info/textos/cuba-nuevo-dossier>. Acesso em 03 ago. 2021; HARNECKER, Camila Piñeiro. “Distintas visiones sobre el socialismo que guían los cambios actuales en Cuba”. Temas, n. 70, La Habana, 2012, p. 46-55.
1.8 BERMÚDEZ, Miguel Díaz-Canel. Comparecencia ante la Televisión Cubana en 11 jul. 2021. Disponível em: <https://www.presidencia.gob.cu/es/presidencia/intervenciones/comparecencia-ante-la-television-cubana-11-07-2021/>. Acesso em 03 ago. 2021.
1.9 HERNÁNDES, Rafael. Artigo: Conflicto, consenso, crisis. Tres notas mínimas sobre las protestas. OnCuba News, 21 jul. 2021. Disponível em: <https://oncubanews.com/opinion/columnas/con-todas-sus-letras/conflicto-consenso-crisis-tres-notas-minimas-sobre-las-protestas/>. Acesso em: 03 ago. 2021.
1.10 GUSTAVO CONDE. O que está acontecendo em Cuba? - com Joana Salém. YouTube, 14 jul. 2021, (01h31min42s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lY2ZwlZHsIg>. Acesso em: 03 ago. 2021; PODCAST ‘EM MOVIMENTO’. 11 - O grito cubano. Spotify, 23. jul. 2021, (56min). Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/1V5V3ftCIotXbdY3rWw2pg?si=N9etrAE4S8u5v7S1HECuFg&dl_branch=1&nd=1>. Acesso em 03 ago. 2021; JONES MANOEL. A conjuntura cubana e os desafios da revolução - Live com Joana Salém. Instagram, 27 jul. 2021, (01h09min17s). Disponível em: <https://www.instagram.com/tv/CR2dPv4Haa3/>. Acesso em: 03 ago. 2021; TV 247. O que realmente acontece em Cuba? (com Altman e Joana Salém). YouTube, 29 jul. 2021, (01h09min17s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gU0SpHonrU4>. Acesso em: 03 ago. 2021.
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SOBRE O DEBATE ENTRE JOANA SALÉM VASCONCELOS, DE UM LADO, E ALICE ROSSI E LINCOLN SECCO, DE OUTRO, SOBRE MANIFESTAÇÕES DE RUA EM CUBA NO MÊS DE JULHO DE 2021 Marisa de Oliveira | Professora de língua portuguesa, mestre em História Social - USP e membro do GPLIMES - FEUSP
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A Revolução Cubana é um tema apaixonante. Mesmo nos círculos do debate qualificado – o do outro tipo não merece atenção agora –, é difícil renunciar a um tom mais alto ao tratar dela. O tom é a superfície de um sentido profundo de identificação com um processo que, no Brasil, não pudemos desencadear com a radicalidade necessária.
Desde o dia 11 de julho, quando cerca de 20 mil cubanos saiu às ruas para protestar contra o governo, a imprensa alternativa de esquerda tem se dedicado a pôr panos quentes, apelando à fuga retórica parelha ao nosso conhecido “E o PT, hein?” para escapar a toda contestação.
Li os primeiros parágrafos do texto “Raiva popular em Cuba”, da historiadora Joana Salém Vasconcelos, com a impressão de que estava tendo acesso a uma abordagem diferente: trata-se, parece-me, de alguém que tem apreço pela Revolução, que busca compreendê-la na medida das suas possibilidades, a fim de apontar caminhos. Parece-me entender que a Revolução não pode limitar-se a resistir, e sim precisa revolucionar-se a si mesma sempre no sentido da radicalidade que lhe é característica desde o seu início.
O que me parece notável no texto de Joana é o fato de ela focalizar aspectos internos, precisamente de ordem econômica e política. Nos efeitos das ocorrências citadas, tratadas como equívocos e não como atos de má fé, ela encontra a motivação “popular” – entre aspas por enquanto – para a manifestação pública. Acredito que ela se dispensa a detalhar o papel do embargo econômico e outras ofensivas estadunidenses para essa crise por se tratar de um implícito que todos os que se interessam pelo tema têm em vista. É evidente que a crise interna, que ela chama precisamente de “fissuras”, tem conexão profunda com os ataques externos. Estes estão na substância de toda análise séria a respeito da situação cubana.
Em resposta ao texto de Joana, Alice Rossi e Lincoln Secco publicaram “O bloqueio a Cuba – elemento estrutural da crise”. De ponta a ponta, afirmam os autores que a causa de mais esse episódio situa-se fora de Cuba, ou fora do âmbito das decisões governamentais, uma vez que estas estão totalmente sujeitas às condições impostas pelas sanções estadunidenses; desse modo, não decorre diretamente de ações conjunturais internas, e assim as manifestações não deveriam ser encaradas como produto da raiva popular, porque nem populares são.
É interessante observar como os autores dos dois textos, embora divirjam radicalmente quanto à legitimidade das manifestações, abordam, grosso modo, quase as mesmas questões, mudando apenas a ordem dos fatores em relação à conjunção “mas”; no primeiro caso, existem as pressões externas, mas há também as fissuras internas; no segundo, há fissuras internas, mas há poderosas pressões externas. E, sabemos, o que colocamos depois do “mas” é o que realmente importa.
Daí depreendo estratégias distintas visando ao mesmo fim. Se Joana, como ela mesma declara, procura entender antes de rotular, Alice e Lincoln procuram submeter o entendimento ao “rótulo”, entre muitas aspas, de que o inimigo está a cem milhas. Todos no afã de defender a Revolução.
Pode-se dizer que os dois textos têm um ponto de concordância: “A longevidade da revolução só pode ser explicada pela sua fortaleza interna.”, nas palavras da autora do primeiro texto. No entanto, enquanto Joana chama a atenção para as fissuras na muralha, manifestadas na suposta “raiva” dos que sofrem com a carestia e no oportunismo da direita e seu rancor, Alice e Lincoln não chegam a dizer que se encontra intacta, mas sob ataque. Parece-me que, para Joana, ressaltar a vulnerabilidade é condição de fortalecimento, enquanto para Alice e Lincoln o que se discute dentro não é assunto para quem está fora.
Ambas as posturas são relevantes e fornecem munição argumentativa aos leitores interessados no assunto, porque é para eles, creio, que escrevem. Uma postura, a meu ver, não exclui a outra. Elas se complementam, e se complementam, ainda, análises que combinem fatores conjunturais e estruturais.
Concordo com os autores do segundo texto que não se pode chamar essa manifestação pública de “revolta popular”, uma vez que não se conhece o número de insatisfeitos não infiltrados, e sabe-se que os infiltrados de sempre estiveram lá. Por extensão, concordo que é difícil afirmar que se trata de uma manifestação legítima. Porém, a fim de reiterar que o embargo e a infiltração contrarrevolucionária são as únicas causas do ocorrido, os autores do segundo texto refutam a validade de considerações importantes sobre a atual conjuntura cubana e, desse modo, cometem alguns lapsos.
- Sobre a organização descentralizada das manifestações e os indícios de que não seja autóctone: os autores do segundo artigo afirmam: “Elas exploram problemas reais ou não teriam nenhum apoio [...].” Penso que têm razão. Mas não é motivo para deixar de analisar os elementos que colaboram para a adesão de cubanos não contrarrevolucionários. No contexto cubano, dadas as dificuldades materiais, a insatisfação é corrente, e as manifestações de insatisfação especialmente sensíveis. Trata-se de um importante ponto de atenção.
- Sobre a fusão das moedas, que, segundo a autora, gerou inflação e agravou a escassez: cabe observar que os autores do segundo texto não mencionam o fim dos subsídios como parte de medidas econômicas que, ressalta Joana, visavam melhora na qualidade de vida; ademais, sobre a menção ao “negacionismo”, não vejo a autora qualificando desse modo a recusa em ver a influência do imperialismo, e sim a recusa em ver as fissuras internas. Logo no início ela deixou claro que não poria o embargo no primeiro plano, o que não significa desconsiderá-lo. Entendo que os autores associam as fissuras internas ao imperialismo, e estão certos, uma coisa não se separa da outra. Porém, observemos o recorte assumido pela autora em seu artigo, e o fato de ela não negar a importância desse elemento funesto.
- Tudo está ligado ao embargo? Sim. Mas por que isso seria um impedimento para analisar a questão desde a perspectiva assumida pela autora do primeiro texto? Não a vejo recusando a participação de elementos pró-imperialismo nessas manifestações, e sim optando por analisar por que cubanos em princípio não adeptos dessas ideias juntaram-se a essa marcha pública, neste momento.
- Não há correlação obrigatória entre a gravidade de uma questão social e revolta popular: a menção a outros países não me parece um argumento suficiente, ainda mais quando se considera que os próprios autores destacam as especificidades cubanas.
- O nível do debate público, em Cuba, é elevado: então por que os autores refutam a proposta de abertura de canais de diálogo entre governo e descontentes não alinhados à contrarrevolução?
- Sobre o trecho “Em suma, é preciso entender Cuba como uma zona crítica, de tensão constante entre forças extremamente desiguais econômica e militarmente, e que portanto não opera na mesma lógica política do restante do mundo.”: se é assim, por que comparar Cuba a países como Chile e Colômbia, como foi feito no parágrafo anterior? Ademais, essa sentença, que me parece correta, indica mais um motivo para analisarmos como se movimenta o governo cubano em condições tão adversas, e o impacto dessa movimentação para os rumos da Revolução Cubana, que nos é tão cara.
Entendo a postura de defender a integridade da situação cubana de maneira intransigente, sobretudo publicamente. Consumidores ávidos por más notícias vindas de Cuba e de sua Revolução não faltam aqui e alhures. Mas quero crer que não é para eles que escrevem. O debate qualificado precisa preparar aquele que lê, que quer saber, para lidar com as contradições que nos acompanharão, nos âmbitos coletivo e individual, a cada derrota, a cada vitória, até o fim dos tempos.
Expediente
Comitê de Redação: Adriana Marinho, Alice Rossi, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: André Amano, Carlos Quadros, Dálete Fernandes , Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Daecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim, Vivian Ayres.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
Endereço: Avenida Professor Lineu Prestes, 338, Sala H4. São Paulo/SP. CEP: 05508-000
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