Ano 2 nº 19/2021: Resenha - Por uma Luta Afro-Latina-Americana - Dálete Fernandes

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ARTirando ...

 

POR UMA LUTA AFRO-LATINA-AMERICANA: FEMINICÍDIO, APAGAMENTOS E MICROPODER

 

Dálete Fernandes

Graduanda em História – USP

 

lelia

 

Selva Almada1, considerada um dos grandes nomes da literatura argentina, em Garotas Mortas traz uma investigação sobre o desaparecimento e a morte de algumas mulheres. Partindo de três casos de feminicídio, que são entrelaçados com a história da Argentina e da narradora, são descritas algumas cidades, seus habitantes e costumes presentes principalmente no interior da Argentina.

O livro conta com uma narradora que questiona os silenciamentos e apagamentos relativos às mulheres e suas histórias. Esse apagamento também é mencionado por historiadores. Maria Ligia Prado afirma que as “mulheres são tratadas pela historiografia, em termos de século XIX e XX, como inexistentes”2. Para o também historiador e escritor argentino Felipe Pigna3, essa invisibilidade ocorre na história oficial argentina pois teria havido “uma manipulação [...] na qual nem mulheres, nem povos nativos, nem afrodescendentes tinham lugar”. No entanto, Pigna acredita que esse quadro tem mudado e que está se revelando a existência de falsidades na maneira como a história oficial foi contada.

Talvez Almada esteja contribuindo com as modificações na história por meio do seu livro. Pois se “cada romance devolve ao mundo não apenas sua imagem distorcida, mas uma especulação empírica sobre o real e sobre a escrita”4, é possível que se reflita sobre essas mudanças com o auxílio da literatura.

Os casos investigados em Garotas Mortas ocorreram na década de 1980, mas a investigação narrada termina com epílogo de 2014. No início da investigação, a narradora descreve uma Argentina que comemora o retorno da democracia em meio a casos de abusos, violências e mortes de mulheres. Com uma narração que mescla ficção e não-ficção, é possível fazer um paralelo entre o autoritarismo da ditadura e suas marcas deixadas na sociedade — uma relação que foi discutida pelo cientista político argentino Guilherme O’Donnell5, que apresenta um relato dos vestígios autoritários em meio a comemorações da derrubada “desse regime maldito”6, questionando quais consequências a ditadura poderia trazer para a consolidação democrática e o futuro na Argentina.

Esse regime repressivo, terrorista e com ações clandestinas, vai penetrando na sociedade e pulverizando o autoritarismo. Assim, a sociedade foi se reorganizando de modo que aqueles que fossem a imagem do regime teriam, em seus microcontextos, o direito e obrigação de mandar. Por conseguinte, ocorreu uma tentativa de dividir a sociedade entre “os que tinham o ‘direito de mandar’, mandando despoticamente na escola, no local de trabalho, na família e na rua, e os que ‘deviam obedecer’, obedecendo mansa e caladamente”7, sendo aconselhável ainda se manter discreto — revelando o grande desafio a ser enfrentado pelos que lutam contra esses micropoderes.

A Em seu livro, Selva Almada foca nas relações de dominação entre homens e mulheres, com relatos de violências que muitas vezes são consideradas normais. Assim, os micropoderes tratados por O’Donnel mostram suas garras e seu alcance, tendo em vista que os casos de abusos e violências domésticas — vindas do pai, irmão, vizinho, professor; homens que detinham a confiança de suas vítimas — são encarados com naturalidade, e as tentativas de denúncia e indignação passam a ser malvistas.

A narradora dessa história parte da província de Entre Rios e passa por cidadezinhas pacatas, quentes e conservadoras do interior da Argentina. Descreve povoados de origem italiana, seus preconceitos e as consequências de algumas dessas repulsas, que vão além dos relatos de machismo, como a perseguição e culpabilização dos moradores de San José, acusados de encrenqueiros.

Também é descrito o universo religioso e mágico por meio de videntes e curandeiros, com relatos do carnaval e de animais como o urutu, ligando a Argentina ao Brasil, Uruguai e Paraguai. Com efeito, são apresentadas as belezas da magia por meio de curas milagrosas, as descrições dos preparativos para o carnaval, as penas vindas de África com passagem pelo Brasil e uma natureza que liga países da América Latina. No entanto, é também apresentada uma realidade de violência repleta de homofobia, transfobia, sexismo e objetificação de crianças.

A violência e o autoritarismo que cresceram com a ditadura e ultrapassaram a ação repressiva do Estado, tornaram-se difíceis de serem extinguidas da sociedade, já que essas marcas e a disposição para o autoritarismo encantam muita gente. Assim, a narradora lamenta que pessoas morram pelo simples fato de serem mulheres, sendo “objeto da misoginia, do abuso, do desprezo”8. Ademais, indigna-se ao perceber que “a casa de qualquer adolescente, não era o lugar mais seguro do mundo [...] O horror poderia viver sob o mesmo teto”9.

O livro em questão, que se inicia com uma poesia da argentina Susana Thénon sobre a banalização do sofrimento feminino, escancara um dos resquícios do autoritarismo, pois a dificuldade de ouvir e o bloqueio ao debate e à reflexão sobre essas e outras violências são características de um autoritarismo que persiste. Desse modo, a narradora procura lembrar o que a sociedade tenta esquecer, inserindo os casos narrados em um contexto mais amplo.

Lélia Gonzalez10 afirmava que o racismo latino-americano mantém negros e indígenas entre os mais explorados por conta da ideologia do branqueamento. Essa ideologia se manifesta constantemente, principalmente na boca de homens brancos11, por meio de afirmações de superioridade que supõe os valores da cultura ocidental branca como os únicos verdadeiros e universais. Lélia propõe uma luta contra a exploração de classe, e a discriminação contra negros e indígenas, que também combata o patriarcado sob uma perspectiva anti-imperialista. Pois assim, nossa luta e nosso espírito-crítico também poderão combater a violenta desintegração e fragmentação da identidade étnica, por um feminismo e uma luta afro-latina-americana.

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Garotas Mortas

2018 | 13,4 x 20,8 cm | 128 p.

Autora: Selva Almada

Editora Todavia

Portanto, faz-se necessária uma revolução para abrir a rota a uma nova cultura, reconstituindo a maneira como as mulheres e os não brancos são vistos no mundo e, de maneira especial, na América Latina — esse conjunto de experiências históricas, com várias nacionalidades e expressões plurais, capaz de construir representações de si mesma, valorizando os elos que aproximam suas populações.

 

1 ALMADA, Selva. Garotas Mortas. São Paulo: Todavia, 2018

2 PRADO. Maria L. C. Questões abertas na América Latina. Revista Fapesp. Edição 257, jul. 2017. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/maria-ligia-coelho-prado-questoes-abe…; Acesso em: 09 jun. 2021.

3 GONZÁLEZ, Jaime. Por que a escravidão foi praticamente apagada da história de Chile e Argentina: ‘Aqui não há negros’. BBC News Mundo, 16 jun. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48600318&gt; Acesso em: 09 jun. 2021.

4 FUKS, Julián Miguel Barbero. História abstrata do romance. 2016. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. DOI: 10.11606/T.8.2017.tde-14032017-160249. Acesso em: 09 jun. 2021.

5 O'DONNEL, Guilhermo. Argentina: a macropolítica e o cotidiano. Lua Nova, São Paulo, nº 14, jun. 1988, p. 3. DOI:10.1590/S0102-64451988000100005. Acesso em: 09 jun. 2021.

6 Ibidem, p. 39.

7 Ibidem, p. 40.

8 ALMADA, Selma. Garotas Mortas. São Paulo: Todavia, 2018, p. 13.

9 Ibidem, p. 12.

10 GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 139-150.

8 Seja Alberto Fernández, Mauricio Macri ou Jair Bolsonaro.

 


Expediente

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