Ano 2 nº 21/2021: O que um Conservador pode nos Ensinar? - Lincoln Secco

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Mundo acadêmico ...

 

 

O QUE UM CONSERVADOR PODE NOS ENSINAR?

GUIZOT NO BRASIL ATUAL​​​​​​​

 

 

Um comentário à tese de Livre Docência de Marisa Midori Deaecto, publicada pela Ateliê Editorial.

 

 

Lincoln Secco

Professor do Departamento de História - USP

 

         Capa do Livro               História de um Livro

                        2021 | 16 x 23 cm | 368 pg.

                        Autor: Marisa Midori Deaecto

                        Editora: Ateliê Editorial

                        https://www.atelie.com.br/livro/pre-venda/

Numa época em que políticos de extrema direita se apresentam sob as vestes do conservantismo, a própria ideia conservadora parece ter perdido qualquer interesse. Como se explica que uma autora se debruce sobre a obra de François Guizot, um historiador esquecido de uma causa de quase dois séculos atrás?

Em 2019 a historiadora Marisa Midori Deaecto obteve sua Livre-docência na Escola de Comunicações e Artes da USP com a tese História de um Livro: A Democracia na França, de François Guizot (1848-1849).

História de um livro é sempre um mistério. É possível ler o manuscrito, as várias redações, as correções, as provas tipográficas, o contrato de cada edição e a correspondência do autor. Mas a historiadora que aceita a tarefa não pode sentar-se ao lado do autor, indagar-lhe os motivos, surpreender suas indecisões. Assim, resta contornar a mesa de trabalho do seu personagem, visitar-lhe o escritório ainda hoje conservado, compulsar uma vasta mole documental e reviver um François Guizot em seus vários espaços e tempos.

A autora transpassa as muitas temporalidades que envolvem seu tema de estudo: aborda o objeto livro na longa duração; conduz-nos por uma conjuntura revolucionária desde 1789; por fim, submergimos no próprio evento que foi a publicação da obra de François Guizot em plena Primavera dos Povos.

A autora mobiliza as técnicas, descreve os paratextos editoriais, a recepção, as resenhas, as missivas, os debates; demonstra como se dá a sobrevivência comercial e pública de uma obra. Aquela que vende muito no lançamento e a que vende (mais ou menos) por muitos anos.

Basta uma comparação: o Manifesto Comunista de Marx e Engels, por exemplo, visava o mesmo objetivo de Democracia em França de Guizot: intervir nos acontecimentos (embora o Manifesto tenha sido publicado pouco antes da vaga revolucionária de 1848). Marx também buscava uma difusão europeia, mas as edições anunciadas se frustraram.

Já o livro de Guizot teve ampla difusão imediata em várias línguas e países: foram 47 edições em 5 meses (além das reimpressões e possíveis contrafações). No entanto, o Manifesto Comunista continua a ser editado em muitos países e é encontrado ainda hoje em bancas de jornal. Já Guizot é um senhor desconhecido do grande público ledor.

Por que então resgatar o libelo de um conservador 170 anos depois?

 

Um Incômodo Passado Revolucionário

 

É possível que a autora nos envolva em movimentos contraditórios. Primeiro, ao recordar a Revolução para os que procuram esquecê-la; depois, ao resgatar uma crítica conservadora à Democracia; finalmente, a crítica da Democracia é reencontrada, mas como a atitude de duvidar de sua modalidade liberal, sempre capaz de engendrar o monstro da tirania.

Guizot fez parte da geração de historiadores da Restauração (1815-1830) que militou pela derrubada de Carlos X do trono francês e erigiu um modelo liberal de compreensão da Revolução Francesa; modelo que através dos adeptos de Marx, ainda persiste. Suprema ironia captada por Eric Hobsbawm!

A plêiade de historiadores liberais era composta por Guizot, Thiers, Mignet e a notável Madame de Stäel (cuja obra é editada, postumamente, em francês e alemão, no ano do nascimento de Marx: 1818). Acrescente-se depois Tocqueville.

Foram eles que viram uma Revolução bifronte: uma face liberal voltada para a Inglaterra (1789); outra radical e que olha para o povo da rua (1792-94). Abominaram o Terror, mas reconheceram na grande Revolução o que nela havia de “inevitável” para a ascensão da classe média (a burguesia).

É essa leitura que, paradoxalmente, permitirá aos marxistas se colocarem como continuadores da Revolução Burguesa e, de certa forma, da própria obra de Guizot. Em sua História da Civilização na Europa ele já havia situado a ideia de Luta de Classes como a originalidade histórica europeia. Não é preciso adivinhar de onde Marx retirou um conceito fundamental do chamado materialismo histórico. Ele leu e resenhou Guizot!

Eric Hobsbawm (em seu livro Ecos da Marselhesa)ofereceu a explicação cabal de porque a França entronizou a sua Revolução em bloco durante o primeiro centenário. Já no segundo, vários historiadores tiveram audiência para dizer o que antes fora uma heresia: que a Revolução nunca existiu, foi uma derrapagem irrelevante ou um prenúncio do totalitarismo.

 

Gestores

 

A França do bicentenário em 1989 que temia seus imigrantes e buscaria depois meros gestores, em vez de presidentes, permitiu que o discurso dominante esvaziasse o caráter nacional da Revolução.

Os historiadores liberais, entretanto, ao atacarem a interpretação marxista da Revolução, ofendiam na verdade o seu próprio paradigma liberal, como notou Hobsbawm. Ao mirar em Marx, atingiam Guizot, esse desconhecido autor que deixou de ser editado e é citado anualmente apenas em algumas aulas de História na universidade.

Para a geração de Guizot a Revolução foi necessária e não um desvio, embora tivesse horrores. Guizot e outros historiadores que lhe foram contemporâneos recolheram-na como um todo irrenunciável que precisava ser depurado dos excessos e chegar ao meio termo: o juste milieu. Assim, a luta de classes acabaria em 1830, quando uma nova Revolução destrona Carlos X, um Bourbon, e entroniza um Orleans: Luís Filipe.

E como bem demonstra Marisa, Guizot, em 1849 apenas um ex-ministro todo poderoso da era orleanista, tentava encontrar em seu panfleto político o antídoto à Democracia, ou seja, exatamente ao “exagero” da Revolução. Foi o “exagero” de fevereiro de 1848 que derrubou um trono liberal e o próprio Guizot.

O primeiro movimento da crítica da autora será, portanto, o de desnudar a origem revolucionária do liberalismo conservador; gênese esquecida por seu próprio personagem porque ele foi derrubado pela continuidade da mesma Revolução que lhe tinha alçado ao poder.

A crítica da autora não se encerra neste primeiro momento. Será preciso examinar o modelo de Guizot. Afinal, seu resgate do passado não é tarefa simples. Ele estaria em casa ao lado dos críticos de direita do totalitarismo no século XX, mas estes o veriam com estranhamento ao lado da Revolução de 1789 ou mesmo de 1830.

 

O Modelo

 

Somente os que souberem terminar uma Revolução terão o direito à sua herança. Não bastará domá-la, como Napoleão Bonaparte. Para os liberais de 1830 o melhor seria encontrar instituições que pudessem estabilizar a nova ordem social.

Aqui Guizot poderia postar-se, nos anos 1980, ao lado de François Furet, esse historiador conservador que um dia abandonou o marxismo para desconstituir a Revolução Francesa. Mas a historiadora Marisa Deaecto bem sabe que os neoliberais podem muito facilmente aceitar a crítica de Guizot à Democracia, mas não seu pecado de origem: a Revolução. É porque Furet e seus colegas não miravam 1789, mas 1917.

Foi Marx, em o 18 Brumário, quem escreveu que, absorvida pela luta pacífica da concorrência, a burguesia não percebia mais que, por menos heroica que seja a sociedade burguesa, trazê-la ao mundo exigiu do povo heroísmo, abnegação, terror e guerra civil.

Com essa fina ironia de quem pode escrever depois de 1989, mas também após a crise econômica mundial de 2008, Marisa resgata o livro esquecido de Guizot. O menos conhecido, quase anatematizado. A escolha não foi casual. Porque assim a historiadora mergulha no debate político de sua época com um segundo movimento da crítica, depois de ter lembrado o quanto o liberalismo deveu a uma Revolução popular.

Agora a autora trata de negar o primeiro momento da sua crítica e revela as origens antidemocráticas do liberalismo, dissimuladas numa visão reificada da Democracia.

O modelo de Guizot seria hoje plenamente aceitável aos ultraliberais. Um regime monárquico constitucional no qual um rei tinha seus poderes vigiados pela oposição de uma Assembleia (eleita com voto censitário), cabendo à Câmara dos Pares a mediação.

Se o absolutismo tornou-se intolerável por ser o despotismo de um só, a Democracia por si mesma seria niveladora e conduziria à tirania do povo. Tema tocquevilleano. Antes de tudo, uma causa comum do liberalismo conservador que floresceu na Restauração e exerceu o poder na Monarquia de Julho de 1830.

É verdade que houve dissensões entre Guizot, Thiers e Tocqueville. O primeiro foi apeado do poder para sempre em fevereiro de 1848. O segundo continuaria na vida política até encerrá-la como carrasco da Comuna de Paris e primeiro presidente da III República. Já Tocqueville viu com um desapaixonado ceticismo o reinado orleanista. Julgou seus contemporâneos de maneira acerba e irônica, posto que fosse dotado de espírito e estilo superiores. Exibia um certo desprezo dissimulado, aquela sprezzatura de um aristocrata inteligente e desiludido.

Tocqueville sabia que a ascensão da burguesia, industriosa e desonesta (a expressão é dele), era inevitável; admirou o heroísmo da classe operária de Paris, sem deixar de combatê-la; e terminou sua vida pública como o ministro de um governo então ridicularizado: o de Luis Napoleão. Como afirmou August H. Nimtz Jr. (https://aterraeredonda.com.br/o-momento-trump/): “Tocqueville, ao contrário de seus admiradores modernos, teve pelo menos a honestidade de admitir por que ele poderia ter permitido, e de fato permitiu, que a ‘mediocridade grotesca’ original tomasse o poder, Luís Bonaparte, em 1851: ‘sou instintivamente aristocrático porque eu desprezo e temo as multidões’”.

Dos três, Guizot seria o de menor valor à luz da historiografia? Marisa Deaecto lembra ter sido Guizot aquele que, em 1833, criou a lei que determinou uma escola em cada comuna; que tornou os professores funcionários públicos; que criou um programa permanente de aquisição de livros para as bibliotecas. Ele foi o best seller político em 1849 e era figura de proa antes da Primavera dos Povos. Não tinha sido um simples escritor da corte.

E aqui voltamos ao início. Ao verdadeiro problema que move o texto de Marisa Deaecto. Guizot escreveu dezenas de volumes, incluindo extensos textos memorialísticos. Suas edições abarcaram centenas de milhares de exemplares. Como tratar daquela personagem?

 

De Volta à Mesa de Trabalho

 

Ele escreveu demasiado. Também exerceu cargos em que falou muito. Deixou farta documentação, contratos, manuscritos, discursos, aulas, livros, registros de contemporâneos. Tudo mereceu o escrutínio da historiadora que o integrou até na cadeia produtiva do livro francês com um posto de destaque. Erudita, a autora contornou a mera crítica biográfica. Mas não caiu no ocultamento do autor.

Enfim, Guizot disse muito. Mas o que foi que ele não contou à historiadora? Ela volta mais de uma vez ao redor do seu autor. Insatisfeita, se recosta de novo à volta de sua mesa, enquanto ele escreve uma carta à sua tradutora inglesa ou no momento em que negocia um contrato.

A alegoria é uma alusão que faço às páginas finais de O Mediterrâneo de Fernand Braudel. A morte do Rei, que deveria ser um grande acontecimento, é deslocada do lugar que a historiografia outrora lhe concedia. Num espaço vazio, fora da história mais profunda, o Rei somente balbucia, o historiador se aproxima, mas nada ouve, como lembrou Jacques Rancière.

Assim como Felipe II não tinha ideia da extensão econômica dos espaços mediterrânicos sobre os quais ele reinou, terá Guizot compreendido a era das Revoluções?

Marisa Deaecto é econômica na descrição da trajetória de Guizot, embora nos conte o essencial. Esse burguês protestante não possuiu a herança de Tocqueville e, como uma personagem de Balzac, ascendeu pelas alianças, pelo dom da oratória e pelo esforço para se tornar um historiador numa época em que toda a carreira estava aberta ao talento, na expressão de Hobsbawm.

Guizot se casou com uma aristocrata já com seus 40 anos de idade (que a leitora e o leitor se transportem para o universo de valores da época). Mas se apoiou decisivamente na esposa para pavimentar sua ascensão social porque Pauline Meulan também traduziu as obras que sustentaram o casal.

Depois dos anos de poder na Monarquia de Julho, aquele político decaído em 1848 volta a viver da pena como sua principal fonte de renda, segundo a autora afirma. Ele jamais deixou de ser um burguês. A Convenção guilhotinou-lhe o pai, é verdade, mas sem ela Guizot jamais teria sido ministro. É simples: sem a Revolução sua classe não teria ascendido ao poder.

Guizot é um liberal que precisa ser conservador. Tocqueville é um conservador que aceita ser liberal. Eles vêm de polos sociais opostos e se encontram no campo da defesa do último dos privilégios: a propriedade. A oposição ao socialismo os unifica.

 

Um Liberalismo que Engendra a Tirania

 

Chegamos por fim ao momento derradeiro da crítica. Agora, a origem revolucionária da ordem burguesa e a negação liberal da Democracia reencontram sua unidade na hipótese da superação da própria Democracia liberal.

Nem esses movimentos emergem facilmente na forma de exposição; nem a crítica se deixa levar pela apresentação fácil de fórmulas para o presente. Será preciso seguir a leitura para retirar das entrelinhas os limites do liberalismo, especialmente latino-americano, espaço onde vicejaram as edições da obra de Guizot no século XIX.

Marisa Deaecto não vislumbra o passado de forma desinteressada. Não deseja simplesmente reconstituir algo. Seu objetivo é também explicar o momento em que vive. Outrossim, a superação da díade democracia – liberalismo emerge de suas linhas, mas nos empurra para fora do texto.

Podemos então nos permitir outra indagação que emerge de sua escrita: o quanto o questionamento de Guizot à Democracia, por mais que ofenda democratas de nosso tempo, não carrega a inquietante desconfiança que devemos ter pelas maiorias eventuais? Pela excitação momentânea que tudo pode colocar a perder? Aqui estamos nos Estados Unidos de 2016, no Brasil de 2018, na Inglaterra de 2019… Embora nada se compare à tragédia brasileira.

Que se não julgue o supradito como menosprezo à participação popular e sim ao poder da riqueza e de todos os mecanismos e argumentos que pervertem a livre escolha desde a Grécia antiga.

As próprias vanguardas revolucionárias afinal sempre conceberam o povo pela sua parte ativa e organizada, ao menos no momento da Revolução. E não é o senhor Guizot a nos alertar que a Democracia produz as perspectivas da liberdade, “mas na sua embriaguez, ela se entrega cegamente aos charlatões que a lisonjeiam?”.

O mundo em que a historiadora investigou tão minuciosamente o seu objeto não convida simultaneamente à defesa da Democracia e à suspeita de que houve algo de errado com ela? Obviamente que podemos fazer essa pergunta com o objetivo oposto ao de Guizot, que se apegava ao ilusório compromisso da monarquia orleanista de julho de 1830. Para ele, tratava-se de defender a Democracia de seus excessos; para nós de realizar verdadeiramente as suas promessas; ele julgava evitar a ditadura com instituições distantes do povo, mas do que se trata é de derrotar o despotismo com instituições separadas da classe média.

Como a autora nos ensina, nossos liberais sempre foram conservadores e tiveram dificuldade de adaptar as matrizes intelectuais francesas à realidade brasileira. Justiniano José da Rocha é o exemplo mor. “Fui um liberal, mas…”. O complemento sempre justifica um conservantismo muito mais agravado porque jamais temperado por uma Revolução e por uma classe trabalhadora ameaçadora.

Em 1848 a primavera foi dos povos e não do povo. Foi das nacionalidades e não das classes subalternas. Mas elas adentraram a cena histórica em junho daquele ano. Guizot quis que seu livro fosse o da França naquele instante. Felizmente as pessoas nem sempre se comprazem com um único livro.

A obra de Marisa Deaecto permite reencontrar a defesa da Civilização sem barbárie; da Democracia sem adjetivos; da cultura do livro sem os adoradores de um único, como os fundamentalistas; ou de nenhum, como os fascistas.


Expediente

Comitê de Redação: Adriana Marinho, Carlos Quadros, Gilda Walther de Almeida Prado, Daniel Ferraz, Marcela Proença, Rosa Rosa Gomes.
Conselho Consultivo: Dálete Fernandes , Felipe Lacerda, Fernando Ferreira, Frederico Bartz, Lincoln Secco, Marisa Daecto, Osvaldo Coggiola, Patrícia Valim.
Publicação do GMARX (Grupo de Estudos de História e Economia Política) / FFLCH-USP
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