Ano 5 nº 08/2024: A Conjuntura - Venezuela: um balanço à luz do 28J - Lucas Marangão

boletim-05-08


A conjuntura...

 

VENEZUELA: UM BREVE BALANÇO À LUZ DO 28J

 

Lucas Rodrigues Marangão

Bacharel em História pela FFLCH-USP e Mestre em Integração da América Latina pelo Prolam-USP

 

Armando Reverón. Fonte: https://bienal.org.br/armando-reveron-oramas-e-a-bienal/

 

As eleições presidenciais venezuelanas realizadas no último 28 de Julho (28 J) engendraram uma crise sem precedentes para o governo de Nicolás Maduro, possivelmente a maior desde as eleições legislativas de 2015, a qual representou a maior derrota eleitoral até então ao bolivarianismo e culminou na projeção do famigerado Juan Guaidó à arena pública. Ainda que ocorra em um cenário bem distinto, há uma nota de continuidade em relação ao cenário de 2015: o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), partido governista durante a maior parte da experiência bolivariana, continua se mostrando um partido fraco e incapaz de dirigir e galvanizar a sociedade venezuelana em geral, mas cada vez mais a própria classe trabalhadora. Vamos aos dados.

Nos primórdios do partido, em 2009, o PSUV afirmava ter mais de 5,5 milhões de aspirantes inscritos em suas fileiras [1]. Em 2015, a votação legislativa indicou que a aliança partidária do Gran Polo Patriótico, liderada pelo PSUV, recebeu 5.203.487 de votos - ou seja, menos do que os inscritos no Partido em anos anteriores [2]. Talvez por esta debilidade, a solução que o governo de Maduro adotou para lidar com o conflito entre Poder Legislativo e Executivo neste momento passou por uma estratégia que sim, mobilizou as bases partidárias, mas que utilizou-se sobretudo de tecnicismos jurídicos para invalidar a Assembleia então existente, recorrendo ao Judiciário e aos militares para se manter no poder. 

Poder-se-ia argumentar que a tradição de certa esquerda latino-americana de focar suas disputas no Executivo, em detrimento do Legislativo, teria levado a tal participação inferior e à incapacidade de mobilização por parte do PSUV. Contudo, analisando o 28J, os dados do próprio Estado venezuelano apontam em outro sentido: segundo o Consejo Nacional Electoral, com 80% dos votos apurados, Maduro teria recebido aproximadamente 5,1 milhões de votos na última eleição presidencial - um número cerca de 10% inferior ao número de aspirantes ao que o próprio PSUV apontava como de inscritos no Partido, em 2009. Ainda que sejamos generosos e eventualmente os dados referentes ao 28J sejam fornecidos de forma integral pelo CNE, parece improvável que a fração indicada pelo Estado venezuelano varie de forma aguda: a seguir-se a tendência observada nos dados iniciais divulgados pelo próprio Estado, o total chegaria a cerca de 6,4 milhões - ou seja, apenas cerca de 900 mil pessoas fora do PSUV apoiariam eleitoralmente Maduro, mesmo após mais de 15 anos de fundação do partido. Como se pode ver, a incapacidade do PSUV de mobilizar a sociedade venezuelana é gritante: de fato, ele tem se mostrado incapaz de mobilizar até mesmo aqueles que se dispuseram a militar no Partido em determinado momento. Nesse sentido, o 28J já pode ser considerado uma grande derrota política ao PSUV, com atas do CNE ou sem atas do CNE (as quais, a essa altura do campeonato, dificilmente seriam levadas plenamente a sério por pessoas que não são convictas apoiadoras do madurismo). O fato do governo de Maduro precisar recorrer ao Judiciário para sacramentar sua vitória e estabelecer sigilo sobre as atas do 28J, contudo, apenas piora a situação.

Aliás, essa debilidade já foi demonstrada em outros momentos históricos. Por exemplo, a Assembleia Nacional Constituinte de 2017, instaurada para lidar com a crise venezuelana, não foi presidida pelo PSUV, mas pelo Movimiento Somos Venezuela, através de Delcy Rodríguez. 

E quais as consequências dessa debilidade para a esquerda e a classe trabalhadora na Venezuela? A ausência de um partido que efetivamente mobilize a sociedade venezuelana e seja capaz de absorver e elaborar demandas, em diálogo com a população (que possui, ademais, outros motivos de base material à rejeição ao PSUV), implica que o governo de Maduro deve sufocar os concorrentes ao seu discurso político, que se pretende anti-imperialista e socialista, e buscar apoio político em outras instâncias.

A repressão aos concorrentes dentro do mesmo campo já se materializou diversas vezes na história recente da Venezuela. Em Agosto de 2020, o Judiciário venezuelano interveio no Pátria Para Todos (PPT), depondo sua liderança e instalando uma fração fiel ao governo de Maduro, e nos Tupamaros venezuelanos - grupos que não podem nem de longe ser considerados pertencentes à direita venezuelana. A mesma tática foi implementada em 2023 contra o Partido Comunista da Venezuela (PCV), tendo sido denunciada por vários Partidos irmãos por todo o globo, muitos dos quais possuem proximidade política e organizacional com o governo de Cuba, como o Partido Comunista do México - distantes, assim, de qualquer classificação como agentes imperialistas.

A perseguição policial de Maduro, contudo, não se restringe a organizações partidárias que possam ameaçar o PSUV: em 2023, o governo venezuelano teve de lidar  duas grandes greves, a greve da educação em Janeiro e Fevereiro, e a greve da Siderúrgica del Orinoco (Sidor), entre Junho e Julho. Para além da repressão in loco, tivemos lideranças da primeira detidos por conspiração, como Víctor Venegas, enquanto líderes da segunda ainda hoje encontram-se na prisão, como Leonardo Azócar e Daniel Romero - detenções todas feitas com base no Decreto 2792, de 2018, que cerceia de modo visceral a liberdade sindical e reivindicatória da classe trabalhadora venezuelana, em moldes que fariam qualquer patrão bolsonarista salivar.

O tratamento de Maduro com estes setores que, à primeira vista, seriam seus aliados naturais em razão de seu discurso político e da trajetória histórica do bolivarianismo contrasta com a docilidade de sua postura com outros grupos no mínimo problemáticos. Por exemplo, em aceno ao neopentecostalismo no país, Maduro criou em 2019 um movimento Cristão Evangélico pela Venezuela (MOCEV) e instituiu o Dia do Pastor no País - aceno que talvez explique a debilidade do debate governamental com relação aos direitos da população LGBTQIA+ no país e casos como a detenção em massa de 33 pessoas em uma casa LGBTQIA+ em Valência, em meados de 2023, ou dos ativistas Koddy Campos e Leandro Villoria, em Caracas. No mesmo sentido, o governo tem ótimas relações com a Igreja Universal na Venezuela.

Sobretudo, na falta de um indiscutível apoio de massas, o governo de Maduro desde 2013 tem se esforçado sobremaneira para angariar o apoio dos militares venezuelanos. É verdade, a obra de fusão entre a Administração Pública e os militares na Venezuela não tem início com Maduro ou mesmo com Chávez. Contudo, é necessário ter clareza de que a situação atingiu um patamar mais agudo durante o madurismo. O exemplo mais acabado disso talvez seja a Companhia Anônima Militar de Indústrias Mineiras, Petrolíferas e de Gás (CAMIMPEG), criada em 2016, totalmente vinculada ao Ministério da Defesa e entregue aos militares.  Tal empresa possui competência para gerir a chamada Zona de Desenvolvimento Estratégico do Arco Mineiro do Orinoco em praticamente todas as atividades econômicas relevantes. Ressaltamos que em tais Zonas direitos trabalhistas, indígenas ou individuais podem facilmente ser suspensos, com base no Artigo 25 do Decreto 2248 de 2016, em nome do interesse nacional - uma política que dificilmente poderia ser classificada como progressista, mas que casa bem com os sonhos de um Aldo Rebelo de uma Amazônia militarizada e extrativista. A CAMIMPEG caminha a passos largos para se tornar uma das maiores empresas nacionais, tendo já atuado em áreas antigamente destinadas à gigante PDVSA, como perfuração petrolífera. 

O ato de fazer críticas ao madurismo como as feitas no presente texto é sempre classificado como “fazendo coro à direita” por parte de certa esquerda que privilegia a geopolítica e um pretenso anti-imperialismo por parte do governo venezuelano em detrimento da situação de classe e de horizontes de emancipação humanos em suas análises sobre a Venezuela. É comum que apontar o nível de degeneração do governo Maduro leve a acusações inquisitoriais de complacência e mesmo de aliança com o fascismo e o colonialismo de setores das classes médias e da antiga burguesia pró-EUA da Venezuela. 

Contudo, chega a ser ridículo afirmar que as críticas ao madurismo significam um desejo de retorno à situação colonial de exportação de petróleo barato aos EUA. Explicamos: o governo Maduro já restaurou tal situação, e em certos níveis que nem mesmo o regime puntofijista anterior ao bolivarianismo permitiu chegar. Hoje, a Venezuela é o 6º maior fornecedor de petróleo aos Estados Unidos - sedentos por sanar a crise energética gerada pela Guerra da Ucrânia, que nesse sentido bem serve ao madurismo [3]. Além disso, empresas como a Chevron puderam voltar a atuar na extração do petróleo venezuelano nos últimos anos, mas sem o ônus de pagamento de impostos, dividendos e royalties ao Estado venezuelano e à PDVSA [4].

No entanto, o cenário atual nos permite também apontar que o fascismo internacional está há muito tempo cindido quanto à Venezuela, em parte com verdadeira complacência por parte do governo venezuelano. De fato, é notório que um dos principais aliados do governo Maduro no plano internacional é o regime neofascista de Putin, o que leva a posicionamentos aparentemente conflitantes dentro da extrema-direita mundial: no caso do 28J, por exemplo, o bloco neofascista do Parlamento Europeu Patriotas pela Europa vetou que União Européia condenasse as eleições venezuelanas. Este bloco, cabe lembrar, é capitaneado pelo partido Fidesz de Viktor Orbán (aliado de Putin e, tragicomicamente, de Bolsonaro) e conta entre seus membros com o partido espanhol Vox, de aberta inspiração franquista [3]. No mesmo contexto da recente crise eleitoral, foi convidado para participar de conferência de imprensa junto ao próprio Maduro  ninguém menos que Jackson Hinkle, do American Communist Party, um pequeno grupo político de rojipardos dos Estados Unidos que se reivindicam comunistas, borram a fronteira entre anti-sionismo e antissemitismo e defendem o trumpismo como “revolta de classe”. Ainda nas aproximações entre a direita internacional e o governo de Maduro, a Telesur recentemente passou a convidar membros de um grupo duginista brasileiro para atuarem como comentaristas políticos. Diante disso, questionamos a esquerda geopolítica: existem direitistas apenas ao lado da oposição venezuelana?

Nos primórdios do bolivarianismo no poder, muito antes do PSUV e do sonho de um “socialismo do século XXI”, Hugo Chávez se aproximou da figura bizarra de Norberto Ceresole, um negacionista do Holocausto que via uma conspiração judaica anti-hispânica como fio de compreensão da História e que transitou entre a esquerda radical e a extrema direita. Ceresole pretendia utilizar o chavismo como a concretização da instauração de uma dinâmica “pós-democrática” entre Caudilho, Exército e Povo, com as Forças Armadas venezuelanas funcionando como os fiadores da estabilidade e mediadores da relação entre o líder revolucionário e as massas mobilizadas “organicamente” (leia-se, sem instituições como sindicatos e partidos). Com o passar do tempo, Ceresole entrou em conflito com diversos setores do bolivarianismo, especialmente os mais à esquerda, criticando os desejos de democratização (oriundos, segundo ele, sobretudo dos bolivarianos de inspiração marxista) como corruptores da “tradição hispânica caudilhista” encarnada em Chávez. Tais conflitos levaram à sua expulsão da Venezuela e repulsa por parte de Chávez, que buscou depois sempre minimizar a antiga proximidade. Diante do cenário atual, nos questionamos se hoje Ceresole não teria uma acolhida melhor por parte do governo de Maduro - e, o que é pior, por parte de certa esquerda geopoliticista que vê menos problemas nas aproximações duvidosas do madurismo e no seu desprezo pelo processo democrático do que nas reivindicações dos próprios venezuelanos - os quais, impossibilitados de renovar uma tradição de esquerda própria, desde baixo, talvez tenham recorrido em sua revolta à miragem de Edmundo González no 28J.

 

[1] PSUV. “PSUV, corazón de los grandes procesos políticos de Venezuela”. PSUV, 2009d.

Disponível em:

<http://www.psuv.org.ve/temas/noticias/PSUV-corazon-de-los-grandes-proce…-

Venezuela/#.Y8B3vRXMJPZ>. Acesso em: 01 Jan 2023.

[2] CONSEJO NACIONAL ELECTORAL DE VENEZUELA. Resultados Electorales. CNE,

2023. Disponível em:

<http://www.cne.gob.ve/web/estadisticas/index_resultados_elecciones.php>.

[3] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/06/03/eua-compram-cada-vez-mais-petroleo-de-caracas-enquanto-enquanto-dificultam-vendas-venezuelanas-para-outros-paises

[4] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/12/08/menos-sancoes-mais-petroleo-o-que-significa-o-retorno-da-chevron-a-venezuela.

[5] Disponível em: https://www.prensalatina.com.br/2024/07/31/hungria-veta-declaracao-da-ue-sobre-eleicoes-na-venezuela/

[6] Disponível em: https://www.dailymotion.com/video/x8yx3x8.

 


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